1. Introdução
O mundo mudou após o ano de 2020 devido à pandemia provocada pelo vírus SARS-COV-2, que originou inúmeros desafios, nomeadamente, na área da saúde. O mundo global onde vivemos tornou impossível a contenção da pandemia e a 6 de fevereiro de 2022, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), existiam mais de 392 milhões de casos confirmados e mais de 5.7 milhões de mortes a nível mundial. Numa tentativa de mitigar o número de contágios, foram implementadas medidas de contenção com confinamentos, encerramento das escolas e distanciamento social.
Portugal registou a 2 de março de 2020, os primeiros dois casos de infeção pelo vírus SARS-Cov-2, e passados dois anos, em fevereiro de 2022, segundo dados da Direção Geral da Saúde (2022), registaram-se cerca de 3 milhões de casos confirmados e 20 mil óbitos.
A nível nacional, no último biénio, foram implementadas medidas recomendadas pela OMS para a prevenção da disseminação do vírus, tendo sido decretados dois períodos de confinamento obrigatório.
As medidas de confinamento obrigaram a uma alteração do quotidiano das famílias, verificando-se um forte impacto ao nível psicológico, nomeadamente nas crianças que ficaram privadas da convivência com os seus pares, da aprendizagem em regime presencial e da sensação de segurança (Rao & Fischer, 2021; Ghosh et al., 2020).
A infância corresponde ao período temporal em que a mente humana floresce, desenvolvendo-se através da aprendizagem de valores, de princípios, da interação social, entre outros (Ghosh, et al., 2020). Este desenvolvimento é condicionado pelo ambiente onde a criança está inserida, facilitando ou constrangido o desenvolvimento de competências, sendo que a família, a escola, e os meios de comunicação, são vectores fundamentais neste processo. O desenvolvimento de habilidades sociais influência a forma como, no futuro, as crianças vão gerir os seus sentimentos e situações de stress, estando este facto diretamente relacionado com a forma como estas habilidades foram desenvolvidas. Assim, as alterações abruptas associadas ao confinamento vivenciado durante a pandemia, bem como as restantes mudanças do quotidiano, podem condicionar o desenvolvimento infantil (Almeida & Júnior, 2021), em áreas como o desenvolvimento da linguagem, dificuldades no estabelecimento de relações interpessoais ou ainda potenciar situações de mutismo seletivo (Araújo, et al., 2021).
Um estudo realizado nos Estados Unidos, descreve não só os efeitos que as alterações no ambiente podem ter no desenvolvimento infantil, mas destaca também como estas alterações são vivenciadas de formas diferentes, podendo ocorrer um aumento da agressividade, ansiedade e depressão (Suarez-Lopez, et al., 2021). No seguimento deste estudo, Fegert et al., (2020), descrevem que eventos como o confinamento podem originar a longo prazo, na vida adulta, alterações como uma diminuição na qualidade de vida, uma maior probabilidade de sofrer de perturbações mentais ou ainda problemas ao nível da socialização.
Considerando que é na interação entre as crianças e o ambiente que se processa o desenvolvimento de competências, é pertinente questionar se as restrições implementadas durante a pandemia, tiveram consequências ao nível do desenvolvimento infantil.
2. Metodologia
O estudo de revisão scoping teve por base a seguinte pergunta de investigação: Quais as repercussões da vivência da pandemia COVID-19 no desenvolvimento infantil? O objetivo da revisão é mapear e sintetizar a evidência científica sobre as repercussões da pandemia covid-19 no desenvolvimento infantil.
A presente revisão teve como documento orientador o Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses for systematic review (PRISMA)(Peters, et al., 2020). Para realização da revisão scoping serão consideradas as orientações metodológicas do Joanna Briggs Institute.
A pesquisa foi orientada de acordo com a mnemônica PCC (Peters, et al., 2020): população - crianças; conceito - desenvolvimento infantil; contexto - pandemia ou COVID 19 a nível mundial, que será desenvolvida em seguida.
Uma pesquisa preliminar foi realizada entre os meses de Maio e Junho de 2022, utilizando a pesquisa na literatura “cinzenta” e pesquisa nas bases de dados CINAHL, MEDLINE, Scopus, The Joanna Briggs Institute EBP Database, Science Direct, LILACS e Google Academics. Durante esta pesquisa, foram identificadas revisões sistemáticas da literatura, bem como revisões narrativas, expositivas e integrativas, para além de artigos sobre pesquisas primárias realizadas sobre o tema. Não foi possível no entanto identificar nenhuma revisão scoping, o que justifica a pertinência do desenvolvimento desta revisão, por forma a apresentar uma visão geral sobre o tema.
2.1.1 Tipos de Participantes
Foram considerados todos os estudos que abordam o tema do desenvolvimento infantil. A criança é um ser em constante desenvolvimento motor, cognitivo, social e emocional. A avaliação do desenvolvimento infantil, pode ser realizada utilizando diferentes escalas, que tem por base diferentes teorias. Em Portugal, o Plano Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (DGS, 2013), dá-nos indicação para sermos oportunistas na realização da avaliação do desenvolvimento infantil, recomendando que esta avaliação seja efetuada nas idades chave, coincidindo com a realização das consultas de vigilância de saúde infantil e juvenil.
Porém, o desenvolvimento infantil não é estanque, ou seja, nem todas as crianças se encontram no mesmo estádio de desenvolvimento em determinada idade, havendo desvios significativos.
É na identificação, e interpretação destes desvios, que o enfermeiro tem papel fundamental. Assim, de acordo com as indicações estabelecidas no Plano Nacional de Saúde Infantil e Juvenil, consideramos incluir neste estudo, as crianças com idades compreendidas entre o primeiro ano de vida até aos 10 anos.
2.1.2 Conceito
Na presente revisão, foram incluídos estudos que versam sobre o desenvolvimento infantil, definindo-se este conceito como um processo dinâmico e contínuo, que engloba as competências motoras, sociais e psicológicas, em constante processo de desenvolvimento, possibilitando um envolvimento progressivamente maior em atividades mais complexas (DGS, 2013). Foram também incluídos estudos que abordam as repercussões da pandemia COVID 19 no desenvolvimento infantil, sendo que esta foi declarada como uma doença pandêmica pela OMS, a 11 de março de 2020, devido ao crescente número de casos a nível mundial.
2.1.3 Contexto
Foram considerados todos os estudos que versam sobre as repercussões da pandemia COVID-19 no desenvolvimento infantil a nível mundial. Todos os estudos fora do contexto definido, ou que mencionem outras pandemias, serão excluídos.
2.1.4 Tipos de Estudos
Irão ser considerados todos os estudos de investigação primários, quantitativos ou qualitativos, mas também revisões sistemáticas da literatura, revisões da literatura, artigos de opinião de peritos e projetos. Se for encontrada duplicação de dados dos estudos primários nas revisões sistemáticas da literatura, nas revisões da literatura, será discutido, analisado e reportado (Peters, et al., 2020).
Os estudos quantitativos que serão considerados para inclusão são os ensaios controlados randomizados, os ensaios controlados não randomizados, os estudos de coortes quase- experimentais, prospectivos e retrospectivos, os estudos de caso-controlo e os estudos descritivo, na pesquisa de explicações possíveis para a temática em estudo.
Estudos qualitativos incluindo, mas não se limitando a, desenhos fenomenológicos, etnográficos, grounded theory, estudos de caso e pesquisa histórica também serão considerados para inclusão.
As revisões sistemáticas de literatura incluem meta-análise e meta-síntese. As revisões de literatura incluem informação de investigação realizada e conhecimento sobre o estado da arte de uma temática de forma resumida.
3. Resultados
A apresentação dos resultados desta revisão scoping, baseia-se numa narrativa descritiva, tendo a pesquisa sido realizada no mês de junho de 2022.
Na pesquisa foi utilizada a mnemônica PCC (Peters, et al., 2020): população - crianças; conceito - desenvolvimento infantil; contexto - pandemia ou COVID 19 a nível mundial.
Foram selecionados os termos de pesquisa utilizando os descritores disponíveis no Descriptors in Health Science (DeCS) e no Medical Subject Headings (MeSH) (Peters, et al., 2020). Os termos de pesquisa foram utilizados de acordo com a seguinte estratégia de pesquisa: “child development” AND “pandemic” OR “pandemics” AND “COVID 19”. O termo de pesquisa “child development” dava resposta à identificação da população do estudo, motivo pelo qual não foi realizada uma repetição da pesquisa deste termo.
Após a primeira fase de pesquisa foram identificados 2 estudos potenciais, 1 na base de dados CINAHL e 1 na base de dados MEDLINE. Posteriormente, foi realizada nova pesquisa nas bases de dados The Joanna Briggs Institute EBP Database, Science Direct, Scopus, LILACS e Google academics, tendo identificado um total de 483 artigos, de um total de 485, havendo, após exclusão de duplicados, um universo de 455 artigos.
O título e o resumo foram analisados consecutivamente, restando 15 artigos para avaliação do texto completo. Destes 15, 4 foram excluídos após a leitura completa. A lista de referências bibliográficas dos 11 artigos selecionados também foi analisada, sendo incluídos mais 2 artigos, perfazendo um total de 13 artigos para análise nesta scoping review.
A tabela de extração de dados, recomendada pelo The Joanna Briggs Institute (JBI), foi utilizada para mapear e resumir os dados obtidos, que estão de acordo com os objetivos definidos (Peters et al., 2020).
Seguindo as indicações dos autores, a tabela preparada para extração de dados inclui as seguintes informações: autor(es), ano de publicação, periódico de publicação, título, país de origem do estudo, objetivos, população e tamanho da amostra (se aplicável), metodologia, resultados e detalhes dos resultados (se aplicável), principais descobertas relacionadas com a questão de revisão.
A pesquisa, seleção e extração dos dados foi realizada por dois revisores de forma independente. Não foram verificadas situações de discordância, motivo pelo qual não foi necessário recorrer a um terceiro revisor.
Os estudos incluídos foram desenvolvidos maioritariamente no Brasil, seguindo-se a China, Estados Unidos, Índia, Itália, Alemanha e a Áustria, além de um estudo que não identificava concretamente os países de origem. Os estudos foram publicados entre o ano de 2020 e o ano de 2022 (Tabela 1).
Os estudos identificados utilizam metodologias quantitativas e qualitativas, foram identificadas quatro revisões sistemáticas da literatura, uma revisão narrativa, uma pesquisa expositiva sistematizada, uma revisão integrativa da literatura, um estudo transversal descritivo, um artigo de opinião, um estudo retrospectivo, um estudo de reflexão artigo sobre a prática e um artigo de revisão (Tabela 1). A PRISMA representa a metodologia de extração de dados utilizada (Figura 1).
A evidência científica sintetizada na presente revisão, permite inferir que as repercussões da pandemia covid-19 no desenvolvimento infantil encontram-se atualmente numa fase de estudo inicial, verificando-se um crescente interesse e proliferação de publicações sobre esta temática. A pandemia provocou alterações profundas no quotidiano, sendo que algumas dessas alterações já se encontram documentadas pela evidência científica. Ghosh et al. (2020), descrevem que as adversidades inerentes aos períodos de confinamento, que foi decretado em diversos pontos do globo, como medidas de contenção da pandemia. Contudo esta medida teve como consequência alterações ao nível da atividade física, da saúde mental e adoção de estilos de vida saudáveis.
Partindo do impacto do confinamento, Tavares et al. (2021), retratam o stress desencadeado pelo medo do contágio, o excesso de informação, e a diminuição das experiências interativas proporcionadas na escola. Neste estudo, é evidenciado que em 320 crianças, as alterações provocadas pelo confinamento originaram dependência excessiva dos pais (36%), desatenção (32%), preocupação (29%), problemas de sono (21%), falta de apetite (18%) , pesadelos (14%), desconforto e inquietação (13%). No total, 30% das crianças apresentaram stress pós-traumático.
Os autores Fegert et al. (2020) documentam no seu estudo, realizado na China, que no início da pandemia, 54% dos participantes (crianças e adolescentes) sentiam-se mais ansiosos e deprimidos, impossibilitados de contactar com os seus pares ou mesmo com a própria família, referindo que este contacto é essencial para um desenvolvimento saudável. Os pais relataram também um aumento da irritabilidade e stress nas crianças (Ceylan et al., 2021).
A evidência científica descreve também aspetos positivos relacionados com o período de confinamento, como o aumento do tempo de convívio entre os membros do núcleo familiar, potenciando assim o estreitamento das relações entre os membros da família (Nascimento et al., 2021).
Contudo, estão também documentados aspetos negativos, como o aumento dos abusos perpetrados, aumentando os números de negligência, exploração, violência ou outros tipos de abuso, como o sexual e psicológico; bem como uma reconfiguração ao nível socioeconómico por parte das famílias (Ghosh et al., 2020; Araújo et al., 2021). Ainda na esfera familiar, Silva et al. (2021) referem um aumento de sentimentos como poder, desejo, domínio, ódio, stress, obediência e por vezes submissão, o que resulta num aumento da violência direcionada aos filhos.
Durante o período pandêmico, onde se verificou o encerramento das escolas, a utilização das tecnologias registou um crescimento exponencial. A utilização destes recursos permitiu a implementação de programas de ensino à distância, facilitando o contacto entre pares e fora do âmbito escolar com familiares (Yoshikawa et al., 2020). Os estudos recentes reconhecem o papel fundamental das tecnologias durante este período, mas alertam também para o facto de que a utilização excessive das tecnologias pode levar a problemas como o défice de atenção e hiperatividade, irritabilidade, ansiedade, depressão (Silva et al., 2021) sensação de cansaço, distração, isolamento social (Nascimento et al., 2021), bem como a dependência da internet e cyberbulling (Tavares et al., 2021).
Estudos realizados, sobretudo a nível dos países em vias de desenvolvimento, envolvendo crianças e adolescentes em idade escolar, revelou que a utilização destas ferramentas acentuaram as disparidades a nível económico, verificando-se também um atraso significativo na aprendizagem, uma vez que 33% das crianças não tinham acesso ao computador, internet, telemóvel, rede telefónica e por vezes a televisão (Ghosh et al., 2020; Rao & Fisher, 2021).
O impacto da pandemia verificou-se também na dimensão emocional, sendo que uma das medidas implementadas para diminuir o contágio foi a utilização de máscaras. Esta utilização limita a assimilação das expressões faciais, promovendo o enfraquecimento das conexões sociais e cognitivas, bem como a identificação das diferentes emoções por parte das crianças (Fan et al., 2021). Para além disso, com o distanciamento, a demonstração de afetos foi altamente desencorajada (Araújo et al., 2020).
A distância física reduziu as oportunidades para as crianças brincarem, contactarem com os pares, envolverem-se na aprendizagem de situações adversas e desenvolverem soluções para as mesmas, ou ainda desenvolverem competências como a empatia e estratégias de coping (Suarez-Lopez et al., 2021; Fegert et al., 2020). Também Freitas et al., (2021) e Liu & Fisher (2022), falam de algumas das repercussões ao nível emocional, dado a pandemia ser um evento potencialmente stressante e imprevisível. As crianças irão, segundo as autoras supracitadas, experimentar sentimentos de impotência e desconforto, sendo esperado que as crianças estejam sensíveis e tenham comportamentos inesperados. A nível do pré-escolar, por exemplo, altura em que ainda não compreendem a pandemia, podem manifestar-se situações como alterações do sono, diminuição da ingestão de alimentos, choro, comportamentos lesivos como o morder, demonstrar apatia ou distanciamento, sendo estas manifestações do seu desconforto e mal-estar emocional.
4. Discussão
A evidência científica sintetizada na presente revisão, evidencia uma relação entre a pandemia e quatro variáveis que impactam o desenvolvimento infantil, sendo elas confinamento, a utilização de tecnologias, a utilização de máscaras e o distanciamento físico.
Ao nível do confinamento, Panchal et al (2021), realizaram uma revisão sistemática da literatura, cujos resultados revelam que 41% das crianças apresentaram distúrbios alimentares, sintomas como stress, irritabilidade e medo. Referem ainda que foram identificados sintomas de stress pos traumático em 3,7% das crianças, ressalvando no entanto que a sintomatologia só se manifesta meses após o evento traumático, o que permite refletir sobre a importância de monitorizar estes sintomas a longo prazo.
Por outro lado, o aumento na utilização de tecnologias, tornou-se problemático. Freitas et al (2022) referem no seu estudo, que levou a um aumento do stress, raiva, pensamentos negativos, tensão, desapontamento, tristeza e depressão.
A nível emocional, Tognetta et al. (2022), num estudo realizado com 1041 crianças, identificaram que as crianças têm apresentado sentimentos e comportamentos que indicam sofrimento emocional, como medo, ansiedade, solidão e automutilação.
Os autores consideram que a pandemia COVID-19 interfere negativamente com o desenvolvimento estrutural do cérebro, entre outras áreas do desenvolvimento infantil, potenciando situações de depressão, distúrbios ansiosos, alimentares e também mudanças comportamentais.
5. Considerações finais
A presente revisão scoping permitiu mapear a evidência científica e destacar o impacto que a vivência da pandemia COVID 19 teve ao nível do desenvolvimento infantil. Nos estudos incluídos, foram identificadas alterações no estabelecimento de relações interpessoais, no desenvolvimento de competências relacionais, estratégias de coping e no reconhecimento e gestão das emoções. Todos estes aspetos, que possuem potencial para condicionar o desenvolvimento infantil, podem ter consequências a curto, médio e longo prazo.
Esta temática tem particular importância para a Enfermagem, uma vez que a avaliação do desenvolvimento infantil faz parte das competências dos enfermeiros, nomeadamente dos Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Infantil e Pediatria. Estando explícito na evidência científica que as medidas adotadas para contenção da pandemia impactaram negativamente o desenvolvimento infantil, importa avaliar o desenvolvimento, compreender as alterações contextuais que originaram uma eventual alteração, e em parceria com os cuidadores, implementar estratégias para a promoção de um desenvolvimento infantil adequado.
Assim, como implicações para a prática, os planos de cuidados devem ser construídos e implementados em parceria com a criança e seus cuidadores, orientando-os na promoção do desenvolvimento infantil, atuando de forma integrada na equipe multiprofissional.
Neste contexto, como implicações para a investigação, devem ser desenvolvidos estudos adicionais sobre o tema, que versem sobre as alterações a médio e longo prazo, destacando quais os novos desafios na área da promoção do desenvolvimento infantil e efetividade das intervenções que já estão a ser implementadas.