Nos últimos anos, com a rápida expansão das plataformas de comunicação digital, vimos emergir com significativa robustez diferentes formas de política alternativa. Desde ativistas que constroem nas redes sociais campanhas contra a violência, o sexismo e o assédio, até vítimas que partilham online as suas experiências pessoais de injustiça, o contributo da digitalização para criar formas inovadoras de mobilização transnacional em torno de questões críticas feministas é assinalável. Justamente por oferecerem oportunidades de participação no espaço público, as tecnologias digitais têm, ao mesmo tempo, impulsionado novas formas de abuso online e de discurso de ódio misógino, restringindo e limitando o alcance das ações da nova política feminista emergente. Uma miríade de modalidades de discurso de ódio misógino ou sexista tem sido documentada em plataformas digitais, com frequência em resposta à maior expressão dos ativismos feministas (e.g. Ging e Siapera 2018, 2019; Vickery e Everbach 2018).
Seja focando-se nos limites do que conta como dano, no impacto nas vidas individuais, ou nas consequências culturais e democráticas mais amplas da misoginia online, a investigação neste domínio tem explorado a forma como os domínios socioculturais e socio-tecnológicos estão não apenas interligados, mas, mais importante, como são mutuamente constitutivos. Através deste entendimento, o que acontece online pode ser melhor articulado com os contextos sociopolíticos mais amplos, inscritos em estruturas patriarcais enraizadas, mas também marcados por fenómenos mais recentes, como o pós-feminismo, o antifeminismo, os movimentos masculinos ou as masculinidades tóxicas.
Apesar das crescentes preocupações com o aumento da prevalência do discurso de ódio misógino em diversas plataformas digitais populares, a pesquisa neste domínio é relativamente recente e tem resultado, principalmente, em evidências fragmentadas acerca da sua ocorrência, impactos individuais e consequências culturais e democráticas. Verifica-se que o ódio misógino se cruza frequentemente com outras manifestações de intolerância e formas de abuso tecnológico, incluindo assédio, perseguição, ameaças e ofensas verbais, que afetam de maneira desproporcional as mulheres (Duggan 2014; FRA 2014; EIGE 2017; Vogels 2021). Contudo, a compreensão das maneiras pelas quais o ódio é expresso e percebido permanece limitada e a atenção voltada para as estratégias de combate é ainda menos expressiva. A operacionalização desse conhecimento por atores sociais de destaque para conceber respostas adequadas é uma questão que, com algumas exceções (Free et al. 2017; Henry, Flynn e Powell 2018), tem sido igualmente pouco explorada. O trabalho científico neste domínio também não tem proporcionado elementos consensuais para sustentar uma definição amplamente aceite do problema na esfera jurídico-política. A expressão “discurso de ódio” tem sido utilizada de maneira indiferenciada para referir vários tipos de discurso negativo, englobando ódio e o seu incitamento, conteúdo abusivo e difamatório com base em características de pertença a um grupo social específico, incluindo formas extremas de discriminação e preconceito (Siegle 2020).
Além da complexidade na criação de um quadro definitório consensual, o frágil equilíbrio no reconhecimento de diferentes grupos sociais como vulneráveis ao ódio é também um desafio. Ao contrário do discurso de ódio racista, que é sempre considerado contrário aos padrões europeus e internacionais de direitos humanos, o discurso de ódio sexista não é, por vezes, avaliado da mesma forma, uma situação que alguns instrumentos internacionais têm procurado contrariar1, incentivando os Estados a garantir uma abordagem semelhante para lidar com o discurso racista e o discurso sexista, em particular no que diz respeito à intervenção jurídica.
Foi destas preocupações que partiu originalmente o dossier intitulado “Discurso de ódio misógino: representações, impactos e intervenções”, visando oferecer um espaço para aprofundar o conhecimento sobre os modos como o discurso de ódio sexista presente em ambiente digital é expresso, percebido e enfrentado a partir de uma multiplicidade de abordagens feministas e referenciável a diferentes contextos internacionais. Não havendo na roupagem final do número temático que aqui apresentamos uma qualquer pretensão de que constitua um repositório ilustrativo desse propósito vasto, há, todavia, a ambição de que os estudos nele reunidos confrontem e façam avançar o conhecimento, sempre com referência comum à problemática nuclear da ubiquidade do discurso de ódio misógino.
O primeiro artigo, “Busca, busca, perrita: comunidades digitales misóginas de difusión de imágenes sexuales sin consentimiento”, é de Jacinto G. Lorca e Elisa García-Mingo. O texto analisa a comunidade digital masculina Hispasexy para explorar um tipo específico de violência sexual: a criação e divulgação de ficheiros de nudez violenta. É particularmente interessante a forma como são analisadas as múltiplas possibilidades que estas comunidades misóginas têm de gerar violência. O autor e a autora salientam que a Hispasexy é um exemplo da forte competição homossocial ligada a estas comunidades digitais, que contribuem para a escalada da violência sexual no espaço digital. A forte misoginia que está na base da Hispasexy, assim como as possibilidades da própria plataforma, revelam os processos de construção de um tipo de comunidades colaborativas destinadas a tornar visível e a incitar aquilo que Lorca e García-Mingo denominam de cultura de exibição, que é praticada tanto pela estrutura da própria plataforma como pelos seus utilizadores.
Dirigido para a análise de vídeos protagonizados por adolescentes espanhóis que surgiram na plataforma TikTok durante o verão de 2022, em resposta à ratificação da Lei Orgânica 10/2022, de 6 de setembro, que posicionou o consentimento, e não a violência e intimidação, como elemento-chave da agressão sexual, o segundo artigo aqui reunido mostra como a desinformação se entrelaça, favorecendo o discurso de ódio misógino. No estudo intitulado “El bulo del ‘contrato sexual’ del Ministerio de Igualdad español en TikTok: un análisis de caso de posverdad antifeminista en redes sociales”, Ignacio Moreno Segarra e Asunción Bernárdez Rodal mostram como as narrativas abertamente falsas em torno da existência de um “contrato de consentimento sexual” criado pelo Ministério da Igualdade são utilizadas para retaliar a alteração legislativa e normalizar a aceitação dos discursos de ódio contra as mulheres, independentemente da sua veracidade.
O terceiro artigo presente neste dossier aborda a intricada natureza do viés misógino na inteligência artificial (IA), ressaltando a necessidade de compreender de maneira profunda a linguagem e o contexto. Este entendimento torna-se crucial devido à propensão dos dados programados em perpetuar preconceitos, particularmente evidenciados em discursos de ódio contra mulheres. No artigo intitulado “How AI Bots Have Reinforced Gender Bias in Hate Speech”, Daniele Battista e Jessica Camargo Molano sustentam a tese de que, ao incorporar técnicas de deteção avançadas e considerar o contexto mais amplo do uso de linguagem agressiva, existe um potencial significativo para atenuar os riscos associados ao preconceito e à discriminação nas estruturas da IA. O autor e a autora sublinham a importância crucial da regulamentação do discurso de ódio, especialmente no contexto das plataformas digitais e da própria IA, como um meio de fomentar uma cultura fundamentada em respeito, tolerância e inclusão.
No texto “¿Son los jóvenes la raíz del auge de la misoginia en España? Sesgos y problemas en la cobertura mediática de la Manosfera y el antifeminismo español”, Lionel S. Delgado Ontivero analisa o contexto mediático espanhol, abordando as reações antifeministas às mudanças sociais promovidas pelo feminismo. O autor salienta o facto de a cobertura mediática simplificada e descontextualizada contribuir, de certa forma, para reproduzir as condições de possibilidade da reação antifeminista, que é precisamente aquilo que se pretende noticiar. O artigo apresenta uma reflexão sobre as possíveis causas da radicalização antifeminista de alguns jovens, apontando para a existência de um mal-estar social ligado a razões económicas, políticas e culturais.
“Modos de habitar la rabia contra la misoginia en Vis a Vis (2015-2020)”, de Emma Gómez Nicolau, Rebeca Maseda García e María José Gámez Fuentes, é o quinto artigo reunido neste dossier. As autoras apresentam um estudo que analisa a série televisiva espanhola Vis a Vis a partir da sua capacidade ambivalente de apresentar a raiva feminina. No que concerne à construção de personagens, a série apresenta arquétipos emocionais que associam as mulheres racializadas à alteridade, legitimando a raiva quando esta está relacionada com a maternidade. Ao longo da série, as personagens evoluem desafiando as narrativas hegemónicas, entranhando a raiva nas mulheres perante a violência patriarcal. Apesar da espetacularização da raiva ser vinculada a elementos meramente narrativos e visuais, ocorre um processo de politização das personagens em relação às violências misóginas que se articula em torno da raiva. O artigo conclui que a raiva sororal da série subverte o discurso do pós-feminismo neoliberal que promove o empoderamento e a resiliência diante da misoginia estrutural e cultural.
Assinado por Joan Sanfélix Albelda e Anastasia Téllez Infantes, o artigo “La base social de los discursos del odio misógino: una lectura cuantitativa de los hombres valencianos” apresenta um estudo direcionado para a compreensão das dinâmicas ideológicas que ocorrem a montante e a jusante dos discursos de ódio. Investigando a relação entre a orientação ideológica e a manifestação de posições, opiniões e valores relativos à igualdade, feminismo, violência de género e masculinidade por parte de homens urbanos da Comunidade Valenciana espanhola, o estudo correlaciona o discurso de ódio misógino com o contexto social mais amplo. Além de revelar a maior ou menor propensão dos participantes para a identificação com discursos que afirmam, negam ou minimizam os progressos em matéria de igualdade em função do seu posicionamento político-ideológico, a investigação explora as possíveis interconexões entre a ideologia e a narrativa no seio da base social dos discursos misóginos.
O último estudo do dossier incide sobre a problemática da desinformação perspetivada a partir da lente de género com o propósito de compreender mais profundamente a dimensão de género na circulação online de conteúdos falsos e enganosos. Juliana Alcantara e Juliana Valentim apresentam uma revisão sistemática de estudos interdisciplinares sobre desinformação, que mapeiam com recurso ao método PRISMA, a fim de elencar as principais evidências documentadas pela pesquisa e identificar áreas negligenciadas pela investigação. Documentando como a perspetiva feminista está, em grande medida, ausente na investigação, as autoras mostram como ela é importante para permitir entender como as narrativas enganosas e falsas interagem com as desigualdades estruturais e afetam os grupos mais marginalizados.