Introdução
A apresentação pélvica ocorre em 3 a 4% das gestações de termo. A decisão da via de parto neste contexto é controversa e tem sido alvo de debate ao longo dos anos1.
O Term Breech Trial2, publicado no ano 2000, foi o primeiro estudo aleatorizado sobre esta matéria e concluiu que a cesariana se associava a uma redução significativa da morbilidade e mortalidade neonatal em comparação com o parto pélvico vaginal. Estes resultados foram posteriormente corroborados por uma revisão da Cochrane3.
Apesar das enormes limitações posteriormente verificadas neste estudo, a realidade é que a partir da publicação do mesmo se assistiu a uma mudança na abordagem na via de parto do feto em apresentação pélvica no termo, com um incremento substancial no número de cesarianas eletivas e urgentes por esta indicação e decréscimo do número de clínicos com experiência na orientação deste tipo de parto. Contudo, a cesariana não é um procedimento inócuo, podendo associar-se a potenciais complicações maternas e neonatais, bem como a riscos para uma gestação futura, sobretudo se um parto vaginal for desejado4.
A versão cefálica externa (VCE) permite, utilizando manobras externas sobre o abdómen materno, converter um feto em apresentação não cefálica num feto em apresentação cefálica.
Uma grande série, de 2614 tentativas de VCE ao longo de 18 anos, além de evidenciar a segurança da manobra, reportou uma taxa de sucesso de 40% em mulheres nulíparas e 64% em multíparas. Nos casos de VCE com sucesso 97% dos fetos permaneceram cefálicos até ao parto e, destes 86% nasceram por via vaginal1.
Este procedimento tem como objetivo não só aumentar a probabilidade de parto vaginal mas também reduzir a morbilidade materna e neonatal associada à cesariana e ao parto pélvico vaginal, pelo que é recomendada por várias associações internacionais, das quais se destacam o American College of Obstetrics and Gynecologists (ACOG), o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), o Colégio Francês de Ginecologistas e Obstetras, o Royal Australian and New Zealand College of Obstetricians and Gynaecologists (RANZOG) e a Cochrane4-8.
Em Portugal, esta manobra é recomendada pela Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF) 9 e pela Direção Geral de Saúde (DGS) 10. Estas duas entidades sugerem que a VCE seja proposta a todas as grávidas com feto em apresentação não cefálica, a partir das 36 semanas, desde que não existam contraindicações para a sua realização. Apesar desta recomendação, e de se considerar um procedimento seguro, não se conhece a adesão da comunidade médica portuguesa à VCE.
Assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar a opinião dos obstetras e médicos internos de formação especifica de Obstetrícia/Ginecologia (IFE) sobre a VCE e quais os condicionantes para a sua não realização.
Métodos
Este estudo transversal envolveu a construção e aplicação de um questionário por um grupo de obstetras com experiência na realização de VCE (Anexo 1). Avaliou o local de trabalho habitual, o nível de experiência clínica do inquirido, a experiência, motivação, e capacidade de realização da VCE e as razões apresentadas pelos clínicos para não proporem/realizarem a manobra. Foi permitido aos participantes selecionar uma ou mais opções para justificar a não realização da VCE.
Os questionários foram distribuídos no V Congresso Nacional de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal em 2019. A participação no estudo foi voluntária, os questionários foram preenchidos de forma anónima após consentimento informado oral e devolvidos pelos próprios participantes. Os dados recolhidos foram utilizados apenas para o presente estudo pelos investigadores principais cumprindo-se as normas de ética e confidencialidade segundo as recomendações do Committee on Publication Ethics International Standards for Authors11.
A análise estatística foi efetuada usando o Microsoft Excel ® e o Stata Statistical Software ® versão 13 e englobou a análise estatística descritiva e análise comparativa com recurso ao teste qui-quadrado de Pearson. Este último foi utilizado a fim de procurar alguma relação entre características dos inquiridos e a probabilidade de recomendar a realização da manobra. O nível de significância para rejeitar a hipótese nula foi fixado em (α) ≤ 0,05.
Resultados
Responderam ao questionário 99 médicos. A caracterização da amostra encontra-se no Quadro I e a categoria profissional foi dividida em apenas 3 subgrupos (médicos internos de formação especifica - IFE, especialistas com < 20 anos e ≥ 20 anos de experiência clínica). A maioria dos participantes era do sexo feminino (80,8%, n=80), com idade superior a 50 anos (44.4%, n=44) e especialistas há mais de 20 anos (43,4%, n=43). Cinquenta e dois clínicos (52,5%) trabalhavam em hospitais de Apoio Perinatal Diferenciado, 39 (39,4%) em hospitais de Apoio Perinatal e 8 (8,1%) em hospitais privados. Participaram médicos de todas as regiões do país embora com maior taxa de resposta a região Norte (35,4%, n=35) e Lisboa e Vale do Tejo (34,3%, n=34). Sessenta e cinco clínicos (65,6%) referiram nunca ter assistido à realização de VCE. Quando questionados se proporiam à grávida a realização da VCE, 41 (41,2%) responderam afirmativamente e 58 (58,6%) negativamente; destes últimos 42 eram especialistas e 16 IFE.
Foram selecionados os questionários em que a VCE era uma alternativa proposta às grávidas com feto em apresentação não cefálica (n=41) e foi comparada a percentagem de médicos que propunha a manobra entre as categorias profissionais e entre os tipos de hospitais em que os clínicos exerciam a sua atividade (Quadro II). Nos hospitais de apoio perinatal diferenciado mais de metade dos médicos propunham a VCE (55,7%, n=29). Entre os três tipos de hospitais, a VCE foi proposta com maior frequência nos hospitais de apoio perinatal diferenciado (p=0,010). A categoria profissional que mais propôs a VCE foi a que incluiu especialistas com ≥ 20 anos de prática clínica (48,8%, n=21), embora a diferença entre as 3 categorias (IFE, médicos com < 20 anos e ≥ 20 anos de prática clínica) não tenha sido estatisticamente significativa (p=0,062).
Apenas dezoito médicos (18.2%) se sentiam aptos para realizar esta manobra. Metade dos clínicos apresentava ≥ 20 anos de experiência clínica (50%, n=9) e a maioria pertencia a um hospital de apoio perinatal diferenciado (72,2%, n=13) (Quadro III).
As principais razões para não sugerir/propor a VCE foram a falta de experiência na sua realização (39; 95,1%) e o facto de considerarem a cesariana como a alternativa mais adequada perante um feto em apresentação pélvica (15; 36,6%) (Quadro IV).
As razões para não propor a VCE foram também estratificadas de acordo com a categoria profissional (Quadro V). A razão apontada pela maioria dos IFE (40,6%, n=13) e dos especialistas com < 20 anos de prática clínica (58,3%, n=14) foi a ausência de experiência na realização de VCE no local de trabalho. Os especialistas com ≥ 20 anos de prática médica evocaram a ausência de experiência na realização de VCE e que a cesariana eletiva seria a alternativa mais adequada como principais razões para não propor VCE.
Oitenta e um inquiridos (81.8%) teriam interesse em participar num curso no sentido de adquirirem competências para realizar esta manobra de forma autónoma.
Discussão
Até à data, a evidência científica demonstra que a versão cefálica externa não é uma técnica amplamente difundida na comunidade médica. Apesar das várias sociedades internacionais e nacionais encorajarem a realização da VCE, a cesariana continua a ser a abordagem preferencial em situações de fetos em apresentação não cefálica. O nosso estudo, é concordante com outros trabalhos dado que, na nossa população, a maioria dos inquiridos nunca tinha assistido a uma VCE e não proporia a realização da manobra às suas grávidas.
Destaca-se um estudo conduzido na conferência das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia de África do Sul e da África Central, que decorreu no Quénia em 2009, envolvendo 14 países e na qual foram distribuídos inquéritos sobre VCE aos participantes com o objetivo de avaliar a adesão a esta manobra, as limitações à sua realização e o interesse dos clínicos em aprender esta técnica. A maioria dos clínicos (79%) não ofereceria esta manobra às grávidas por ausência de experiência na sua execução, pela perceção do pouco sucesso da VCE, pela falta de segurança do procedimento, por questões médico-legais e receio de que as grávidas não aceitassem esta manobra12. Um estudo português publicado em 2022 também avaliou a difusão da VCE em Portugal através da realização de um inquérito online aos Chefes de Serviço das Maternidades nacionais. Foram obtidas respostas de 41 das 43 maternidades e, em apenas 16 destas a VCE era proposta às grávidas com uma frequência anual que variava entre 3 a 51 procedimentos. Os principais motivos para a não realização da VCE foram a falta de experiência por parte dos obstetras e a falta de condições para realizar a técnica em segurança. Este estudo reforça os nossos resultados uma vez que concluiu que a VCE era apenas realizada em uma minoria dos hospitais portugueses13.
Adicionalmente, os fatores limitantes à realização da VCE foram também avaliados por um grupo holandês que concluiu que a falta de conhecimento sobre a técnica e a incapacidade de aconselhar as grávidas de forma adequada constituíam os principais motivos os enumerados para a ausência de realização da VCE14. No nosso estudo os principais motivos referidos foram a falta de experiência dos clínicos na execução da técnica nos seus hospitais, e a crença de que a cesariana é mais segura.
Nove participantes não realizariam/proporiam VCE por ausência de segurança associada à técnica. Vários estudos avaliaram a segurança da VCE e consideraram o procedimento seguro, mesmo em grávidas com cesariana anterior15,16. Uma revisão sistemática com mais de 9000 gestantes, que incluiu mais de 40 estudos, demonstrou que a VCE é um procedimento seguro com uma taxa de complicações inferior a 1%. Oito estudos reportaram episódios de bradicardia transitória em 1 a 47% dos casos. Apenas dois estudos relataram desacelerações variáveis e prolongadas com necessidade de parto subsequente em 1,1% dos casos, com bom desfecho neonatal e, um estudo reportou 3 casos de taquicardia fetal com resolução espontânea17.
S. Dhingra e os seus colaboradores avaliaram a experiência dos obstetras no Reino Unido através de um inquérito e constataram que a formação médica nesta manobra é fundamental. Observaram que todos os médicos ofereceram VCE às grávidas e que a maioria destes (63%) tinha tido formação prática na realização desta manobra. Concluíram também que é fundamental que cada unidade obstétrica disponha de um protocolo de atuação para diminuir o risco de maus desfechos obstétricos e as questões médico-legais eventualmente decorrentes de intercorrências ou complicações que ocorram18.
Apesar da maioria dos inquiridos nunca ter assistido a uma VCE e não a propor, a maioria estaria interessado em receber formação sobre esta manobra. A realização de formações poderá difundir a realização de VCE em Portugal, melhorar o aconselhamento das grávidas em relação a este procedimento e mudar o paradigma da cesariana eletiva por feto em apresentação não-cefálica. Consequentemente, esta medida simples poderá contribuir para uma menor taxa de cesarianas com um impacto importante nos desfechos maternos e neonatais, mas também reduzindo o risco de complicações em gestações subsequentes.
O presente estudo tem algumas limitações, nomeadamente o risco de viés. A amostra poderá não ser significativa e não refletir a realidade de todo o país. Ainda assim, foi selecionado o V Congresso de Medicina Materno-Fetal para a distribuição dos questionários, uma vez que este congresso é frequentado por clínicos de todas as regiões, de diferentes faixas etárias e com diferentes graus de experiência clínica.
O facto de os inquéritos terem sido anónimos e confidenciais permitiu reduzir o enviesamento das respostas.
Neste inquérito não foi questionado se o parto vaginal em apresentação pélvica era uma alternativa mais segura que a VCE mas é pouco provável que os participantes assim o considerassem.
Este é um estudo importante, uma vez avaliou a atitude dos médicos obstetras portugueses relativamente à VCE e os resultados mostraram a necessidade de investir na formação e treino de profissionais em versão cefálica externa.
Em conclusão, a VCE não parece ser amplamente realizada nos hospitais portugueses, apesar de ser uma manobra segura e recomendada por várias sociedades internacionais e pela Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal. Motivos como a falta de experiência e a ausência de condições de segurança para a sua realização parecem justificar a não recomendação da manobra pelos obstetras portugueses mais jovens. Assim, devem ser feitos esforços para formar e treinar os profissionais na realização deste procedimento e fomentar a referenciação de grávidas para instituições que disponibilizem esta manobra obstétrica.
Contribuição dos autores
Laura Cruz, Nuno Clode, Andreia Fonseca: concetualização e desenho do artigo. Recolha e análise de dados. Interpretação de dados parciais. Redação do artigo. Revisão crítica de todos os conteúdos. Elaboração e revisão de aspetos estruturais. Aprovação final do artigo. Susana Santo, Luísa Pinto: Interpretação de dados parciais. Redação do artigo. Revisão crítica de todos os conteúdos. Elaboração e revisão de aspetos estruturais. Aprovação final do artigo.