Introdução
O consumo abusivo de bebidas alcoólicas e tabaco traz prejuízos à saúde e está associado a altos custos individuais e sociais (Witkiewitz et al., 2017; Drope et al., 2018). Estima-se que 16% da população mundial faz uso pesado de bebidas alcoólicas (60 gramas ou mais de álcool por episódio de consumo) e 5% são considerados dependentes (Witkiewitz et al., 2017).
Em relação ao tabaco, embora se tenha observado maior conscientização acerca do impacto do hábito tabágico, ainda são alarmantes os indicadores. Somente em 2016, o consumo de tabaco causou mais de 7,1 milhões de mortes no mundo, sendo mais de dois milhões de mulheres (Drope et al., 2018).
O uso dessas substâncias, historicamente, sempre esteve relacionado à conduta tipicamente masculina (Porto et al., 2018). No entanto, atualmente, é notável o crescimento do número de mulheres que têm adotado esta prática. No contexto brasileiro, o panorama estatístico descrito no II Levantamento Nacional sobre Drogas, realizado em 2012, aponta prevalência de 39,0% de mulheres que faziam uso regular do álcool e 12,8% que usavam tabaco (Laranjeira, 2014).
Nessa perspectiva histórica, homens e mulheres sempre diferiram em seus papéis, responsabilidades, status e poder. Estas diferenças, socialmente construídas, interagem com especificidades biológicas e podem contribuir para particularidades relacionadas ao consumo de bebidas alcoólicas, tabaco e para o desenvolvimento de ideias suicidas (Emslie, Hunt, & Lyons, 2015).
Restrições biológicas, sociais, culturais e religiosas, em alguns contextos, também fortalecem a existência de relações de poder entre homens e mulheres, contribuindo para que estas permaneçam em situação de vulnerabilidade. Muitas vezes, a variedade de papéis desempenhados e as inúmeras circunstâncias estressoras às quais as mulheres estão mais predispostas, por sua vez, podem favorecer a manifestação de desequilíbrios afetivos, sociais e emocionais, evidenciados por meio de sentimentos de tristeza, isolamento e não pertencimento, até ideias de tirar a própria vida (Sclhösser, Rosa, e More, 2014).
Estas se caracterizam por pensamentos, ideias, planejamento e desejo em atentar contra a própria vida (Gonçalves, Ponce, e Leyton, 2015; Machado e Santos, 2015). Neste tipo de comportamento, dados revelam que a população feminina apresenta maiores taxas de ideação e tentativa de suicídio (Machado e Santos, 2015).
Notavelmente, poucos estudos abordam a ideação suicida e suas complexas relações sob a perspectiva de género (Vijayakumar, 2015). Essa realidade encontra justificativa na tendência em considerar a ideação suicida por mulheres como prática manipuladora e pitiática. Entretanto, com as mudanças dos papéis sociais femininos observa-se maior vulnerabilidade deste grupo para o consumo abusivo de bebidas alcoólicas e tabaco, que podem estar implicadas, inclusive, em desfechos trágicos.
Metanálise evidenciou o aumento da probabilidade de espectros do comportamento suicida relacionados, sobretudo, com altas doses de bebidas alcoólicas (Borges et al., 2017). Esse estudo descreve que o baixo padrão do consumo de bebidas aumenta a probabilidade de comportamento suicida em 2,71 vezes, enquanto consumo pesado em 37,18 vezes (Borges et al., 2017). Estudo congênere sugere, por sua vez, que o tabaco aumenta também significativamente o risco de suicídio. Em comparação com não-fumantes, o risco relativo de ideação suicida foi de 1,28, para ex-fumantes, e 1,81 para fumantes atuais, respetivamente (Li et al., 2012).
O comportamento suicida, configura-se em problema sério, com impacto na vida do indivíduo, família e sociedade. Conhecer variáveis que influenciam nesta problemática é relevante e necessário para o redireccionamento de ações e políticas que possam repercutir na redução desse tipo de comportamento.
Frente a esse contexto, ratifica-se a necessidade de se discutir acerca dessa problemática, sobretudo, no Brasil e no universo feminino, cuja ampliação do consumo de bebidas alcoólicas e tabaco tem sido uma prática, sobremaneira, recente e seus desfechos ainda necessitam ser estudados. Assim, objetivou-se analisar a relação entre ideação suicida, consumo de bebidas alcoólicas e tabaco por mulheres atendidas em unidades de cuidados de saúde primários, em cinco municípios do Piauí, Brasil.
Métodos
Trata-se de pesquisa com abordagem quantitativa, transversal e analítica, realizada nos municípios de Bom Jesus, Floriano, Parnaíba, Picos e Teresina, pertencentes ao Estado do Piauí, Brasil.
Participaram do estudo 369 mulheres que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ter idade entre 20 e 59 anos e ser atendida em unidades de cuidados de saúde primários dos referidos municípios. Foram excluídas aquelas com alguma doença mental, conforme dados contidos em sistema de informação de saúde.
Para definição do tamanho da amostra optou-se pela técnica de amostragem estratificada proporcional ao número de mulheres dos referidos municípios, que totalizou 347.414 mulheres (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010). Adotou-se nível de confiança de 95% e erro tolerável de 5%, sendo determinado o tamanho da amostra. Realizou-se distribuição proporcional entre os cinco municípios, de modo que foram recrutadas: 232 mulheres em Teresina, 36 em Parnaíba, 46 em Picos, 38 em Floriano e 17 em Bom Jesus. Não houve perdas amostrais.
Para proceder o recrutamento das mulheres, realizou-se sorteio por meio do software Excel 2010, considerando listagem numérica das mulheres atendidas nas unidades de cuidados de saúde primários, nos respetivos municípios.
A coleta de dados ocorreu no período de agosto de 2015 a março de 2016, em consultórios das unidades básicas de saúde, o que garantiu privacidade das participantes. Realizou-se entrevista, norteada por formulário para caracterização sociodemográfica e identificação do uso do tabaco. Este foi elaborado e previamente testado para atender ao objetivo do estudo e validado por pesquisadores com expertise em estudos quantitativos. O formulário contemplou as seguintes variáveis: idade, tempo de estudo, situação conjugal, religião, ocupação, rendimento familiar e uso de tabaco.
Além disso, foi utilizado o Alcohol Use Desorders Identification Test (AUDIT), o Non-Student Drugs Use Questionnaire (NSDUQ) e do Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20).
O AUDIT foi desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para identificação de transtornos pelo uso de álcool em estágios iniciais. Aborda o padrão de consumo e suas consequências nos últimos 12 meses, por meio de dez perguntas, das quais as três primeiras avaliam quantidade, frequência e embriaguez; as três seguintes, sintomas de dependência; e as quatro últimas, o risco de consequências danosas. Neste instrumento as respostas a cada questão são pontuadas de 1 a 4 e prediz quatro zonas de risco: zona I (até 7 pontos: indica uso de baixo risco ou abstinência); zona II (de 8 a 15 pontos: indica uso de risco); zona III (de 16 a 19 pontos: sugere uso nocivo) e zona IV (acima de 20 pontos: mostra uma possível dependência) (Lima et al., 2005).
Para avaliar o consumo de tabaco utilizou-se o Non-Student Drugs Use Questionnaire (NSDUQ) (Smart et al., 1981). Para identificar mulheres com ideação suicida utilizou-se o SRQ-20, trata-se de um instrumento composto por quatro dimensões com a finalidade de avaliar elementos referentes à saúde mental (Mari, 1987). Neste estudo, utilizou-se apenas o item específico da dimensão “pensamentos depressivos”, que questionava se a entrevistada “tem tido ideias de acabar com a vida” e a resposta era dicotómica (sim/não).
É importante destacar que todos os instrumentos utilizados, neste estudo, foram validados para realidade brasileira e estão sob domínio público.
Para a análise dos dados utilizou-se o software Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 22.0. Foram calculadas medidas de tendência central e de dispersão. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi aplicado nas variáveis numéricas para verificação do pressuposto de normalidade, sendo encontrado distribuição não paramétrica. Neste sentido, para comparação de médias realizou-se teste de Mann-Whitney.
Para verificar associação entre as variáveis qualitativas utilizou-se teste qui-quadrado (x²). A força das associações entre as variáveis foi aferida pelo odds-ratio (OR) e intervalos de confiança (IC 95%). Foi realizada modelagem múltipla com as variáveis: zonas de avaliação do consumo de bebidas alcoólicas e uso de tabaco, que tiveram p<0,01 na análise bivariada, com a finalidade de melhor explicar o efeito delas sobre a ideação suicida das mulheres. Para todas as demais análises realizadas, foi adotado o nível de significância de 0,05.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (Parecer nº. 1.630.831). A participação das mulheres foi voluntária, após leitura, esclarecimentos e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Os dados mostraram que houve predomínio de mulheres adultas jovens (20 a 39 anos) (75,1%), com média de idade de 33,1 anos (Desvio padrão=9,9), casadas/união estável (71,8%), católicas (60,9%), com emprego formal (57,3%) e rendimento familiar médio de 799,80 reais (Desvio padrão=637,0).
Verificou-se que houve diferença estatisticamente significativa na média do tempo de estudo. As mulheres com ideação suicida possuem média do tempo de estudo inferior (Média=9,85; Desvio padrão=2,36) quando comparadas àquelas que não possuem ideação suicida (Média=10,25; Desvio padrão=3,67) (p-valor=0,020). Observou-se também diferença estatisticamente significativa no escore do AUDIT. Aquelas com ideação suicida possuem padrão de consumo de bebidas alcoólica mais intenso (Média=8,30; Desvio padrão=4,99) quando comparadas com as que não referem ideação (Média=6,21; Desvio padrão=4,80) (p-valor=0,020). Não há diferença estatisticamente significativa na média da idade, quantidade de pessoas por domicílio e rendimento familiar quando comparadas às mulheres sem e com ideação suicida (Tabela 1).
Legenda: *O p valor foi obtido pelo teste Mann-Whitney. A significância estatística foi fixada em p≤0,05.
Na Tabela 2 verifica-se associação da ideação suicida com uso de bebidas alcoólicas (p-valor<0,001) e de tabaco (p-valor<0,001), sendo que mulheres que fazem uso de bebidas alcoólicas possuem 4,20 vezes mais chance de terem ideação suicida quando comparadas com aquelas que não fazem uso. O uso de tabaco, por sua vez, aumenta em 4,63 vezes as chances das mulheres terem ideação suicida.
A análise de regressão logística das variáveis que apresentaram significância com a presença de ideação suicida é apresentada na Tabela 3. Observou-se que no modelo final ajustado as variáveis zonas de avaliação do consumo de bebidas alcoólicas e uso de tabaco demonstraram significância estatística. As mulheres com padrão de consumo (Zona IV - possível dependência) tem 3,9 vezes (IC=1,957-8,153) mais chances de terem ideação suicida e as que fazem uso de tabaco tem 3,3 vezes (IC=1,456-6,720) mais chances de possuírem ideação suicida.
Discussão
Neste estudo, as mulheres entrevistadas eram adultas jovens, casadas/união estável, católicas e com emprego formal. Em relação à idade, na literatura há registro que mostra a presença de ideação suicida em mulheres com idades mais jovens (Patel et al., 2012).
Quanto à situação conjugal, é importante refletir que, embora se acredite que o casamento ou a presença de companheiro exerça um papel protetivo que favoreça as mulheres, o estudo aponta que, em alguns casos, ele parece contribuir para o surgimento da ideação suicida. Nesta perspectiva, circunstâncias conjugais podem torná-las mais vulneráveis, a citar: casamento precoce, jovem maternidade, baixo status social, dependência econômica e violência doméstica (Vijayakumar, 2015).
Observou-se, neste estudo, que as mulheres com ideação suicida possuíam média do tempo de estudo inferior quando comparadas àquelas que não possuíam essa ideação. O comportamento suicida resulta de complexa relação entre diversas variáveis - desigualdade social, baixa escolaridade, baixo rendimento familiar e, consequentemente, desemprego. Há evidência de que a posição socioeconômica reflete no padrão de vida e exposição a fatores de risco ambientais, que incluem: violências, feminização da pobreza, sentimentos de privação e estresse. Estes fatores têm impacto na saúde do indivíduo, inclusive na saúde mental, e em alguns casos, relacionam-se ao comportamento suicida (Machado e Santos, 2015).
Entre os fatores de risco ambientais, este estudo aponta especificamente que o consumo de bebidas alcoólicas e tabaco, também repercutem na vida da mulher de forma que o seu uso aumenta as chances de terem ideias em tirar a própria vida.
Esse fato encontra justificativa considerando que o uso de bebidas alcoólicas prejudica o juízo crítico da realidade e repercute no autocontrole. Assim, os bebedores tendem a tornar-se mais impulsivos, contribuindo para situações trágicas como automutilação e comportamento suicida (Klimkiewicz et al., 2012).
A literatura demonstra que há variação na magnitude e nas relações estabelecidas entre uso de bebidas alcoólicas com ideação, tentativa e suicídio (Darvishi, Farhadi, Haghtalab & Poorolajal, 2015). De acordo com o estudo que analisou casos de suicídio por enforcamento e intoxicação exógena, identificou-se alcoolemia positiva em 30% dos casos por enforcamento (média de 1,39 g/L) e em 36% dos casos por intoxicação exógena (média de 1,39 g/L) (Jones, Holmgren, & Ahlner, 2013).
Além da relação entre ideação suicida e frequência do uso de bebidas alcoólicas é importante analisar de que modo o padrão de consumo pode potencializar o surgimento dessas ideias em tirar a própria vida. Uma vez que, no presente estudo, observou-se que entre as mulheres que referiram ideação suicida a média do escore do AUDIT foi mais elevada, o que demonstra um padrão de consumo mais intenso.
Corroborando a isso, o estudo realizado no Missouri, Estados Unidos, com mulheres jovens, demonstra a existência de forte associação entre uso abusivo de álcool e história de ideação suicida ao longo da vida (Agrawal et al., 2013).
Os resultados do presente estudo, além de mostrarem relação entre ideação suicida e consumo de bebidas alcoólicas, identificou também relação com o hábito tabágico. Esse achado é reforçado a partir de estudo que demonstra que fumantes com grande dependência do tabaco realizaram mais tentativas e atingiram maior letalidade em comparação aos não fumantes. Já fumantes que tinham dependência moderada não foram associados às características de gravidade nas tentativas de suicídio (Lopez-Castroman et al., 2016).
Embora o estudo apresente resultados relevantes, o próprio desenho (transversal), impede afirmar a existência de relação de causa e efeito entre os fenómenos investigados (ideação suicida, consumo de bebidas alcoólicas e de tabaco).
Conclusões
A problemática do consumo de bebidas alcoólicas e tabaco, pelas mulheres, é um grave problema de saúde pública, pois trata-se de práticas que se têm tornado protagonistas de diversas implicações, dentre elas o sofrimento mental e as suas diversas formas de expressão.
O conhecimento produzido, no presente estudo, demonstra que há uma relação complexa entre o consumo de álcool, tabaco e ideação suicida. Desse modo, quanto mais intenso o padrão de consumo de álcool, maiores são as chances de mulheres terem ideias de tirar a própria vida.
Implicações para prática clínica
Acredita-se, portanto, que este estudo poderá contribuir para a sensibilização de profissionais da saúde, gestão pública e áreas afins quanto à necessidade de desenvolvimento de estratégias que visem discutir a questão do consumo de álcool e tabaco e suas implicações, sobretudo, entre as mulheres.
Recomenda-se, diante dos achados, que seja encorajada a utilização de ferramentas de rastreio para o consumo de álcool e tabaco, com perspectiva de intervenções precoces, bem como de escuta qualificada que possibilitará a tomada de decisões mais adequadas nos atendimentos realizados pelos enfermeiros, nas unidades de cuidados de saúde primários.
Os achados encontrados reforçam a necessidade de se repensar tanto as políticas públicas sobre drogas quanto aquelas voltadas, especificamente, para saúde das mulheres e saúde mental, pois, embora tenha se observado, ao longo dos anos, avanços dos dispositivos legais brasileiros, ainda há lacunas na legislação vigente que impedem efetivo rastreamento do consumo de álcool e tabaco, bem como dos impactos causados por esta prática e isto inclui a ideação suicida.