Introdução
O contexto do ensino superior em Portugal sofreu grandes alterações com o surgimento do ensino politécnico, responsável pela sua efetiva democratização, contudo, o seu contexto social, geográfico e político, continua a evidenciar persistentes diferenciações a nível estatutário, de configuração formativa e de reconhecimento social. Com o crescimento exponencial do ensino superior em Portugal no início do século XX, aumentou a competitividade entre instituições de ensino superior universitário e politécnico. Este movimento aprofundou-se com a criação da agência de avaliação e creditação do ensino superior (A3ES), com a implementação do processo de Bolonha e consequente estandardização da configuração dos cursos (1ºs, 2ºs e 3ºs ciclos), num contexto de progressiva internacionalização de alunos e conhecimento.
Tendo presente os novos desafios demográficos e institucionais, têm-se intensificado, nas últimas duas décadas, vários fenómenos: o aumento do desemprego de diplomados e consequente preocupação das instituições com esta problemática; a avaliação do ensino superior e aumento de competitividade institucional, ao nível da produção científica e captação de financiamento; a queda abrupta da oferta educativa em determinadas áreas científicas (o exemplo mais evidente é a área de formação de professores); a progressiva necessidade de doutorados no corpo docente dos politécnicos/universidades a nível nacional e finalmente a entrada em vigor do processo de Bolonha e das formações do 2ºs e 3ºs ciclos, aspeto diferenciador entre Universidades e Politécnicos (sobretudo ao nível dos 3ºs ciclos). É este o encadeamento que circunscreve esta abordagem, que pretende contribuir para a reflexão sobre o papel que o ensino politécnico tem desempenhado na efetiva democratização do acesso ao ensino superior, como forma de minimizar as dicotomias sociais, económicas e regionais que persistem em Portugal. Pretendemos apresentar contributos que permitam percecionar, de uma forma mais aprofundada, o papel desempenhado pelo Instituto Politécnico de Viseu (IPV) neste processo, tendo presente a agenda 2030 (UN, 2015), nomeadamente no que respeita à promoção do trabalho digno e desenvolvimento económico e à redução das desigualdades.
Contornos do surgimento do sistema binário de ensino superior em Portugal
A atual estrutura do ensino superior em Portugal (universitário público, politécnico) é relativamente recente, porque, até 1960, a oferta deste tipo de ensino era exclusivamente pública e de carácter universitário, estando ao alcance de uma pequena parcela da população. Assim, até 1970, o ensino superior em Portugal é manifestamente um sistema de elites, caracterizado por baixos níveis de participação. Foi a implementação do Decreto-Lei nº 513-T/79, que permitiu o “nascimento do Ensino Superior Politécnico”, cujo objetivo era a formação de profissionais que permitissem promover o desenvolvimento do país. Este subsistema de ensino possui, na sua génese, uma “tónica vincadamente profissionalizante”, contrastando com o ensino universitário, “de características mais conceptuais e teóricas”, procurando-se garantir uma “dignidade idêntica ao universitário”.
A expansão da rede do ensino superior politécnico, foi alicerçada, inicialmente, na instituição das escolas superiores de educação, processo particularmente moroso, comprovado pelo facto de no ano letivo 1984/85, somente se encontrar em atividade a Escola Superior de Educação de Viseu. Só em 1986, com a instituição da Lei de Bases do Sistema Educativo, este processo ganha vitalidade na sua implementação. Contudo, somente dez anos mais tarde, com a implementação da Lei nº 115/97, de 19 de setembro, existem alterações à LBSE de 1986, passando o ensino politécnico a conferir graus de bacharel e licenciado e a possibilidade de formação de professores ao nível do 3º ciclo. Até meados da década de 90 do século XX verifica-se que “(...) ao nível do ensino não universitário parece haver uma estratégia nítida de diversificação do campo de oferta de formação, cobrindo áreas em que o ensino não universitário não é agressivo.” (Cruz e Cruzeiro, 1995:20).
As bases da criação do ensino politécnico em Portugal, segundo Simão e Costa (2000), remontam ao relatório “Le Project Regional Mediterraneen”, elaborado nos inícios da década de 60 do século XX, em colaboração com a OCDE. O alargamento da escolaridade obrigatória e a sua democratização levou à criação dos sistemas binários , nesta mesma década, no Reino Unido e na Austrália; os “(…) governos destes países consideraram que os custos da expansão do ensino universitário tornar-se-iam proibitivos (…) as universidades não eram instituições apropriadas para educarem uma grande proporção da população (…)” (Clark; Neave, 1992: 1066-1067). Esta situação, para Lapeyronnie e Marie (1992), origina o surgimento dos estudantes de massas, transformando-os nos novos protagonistas deste sistema de ensino em mutação profunda. A dinamização do binómio ensino universitário e ensino politécnico é uma das reformas mais importantes dos anos 70 do século XX em Portugal, exteriorizando uma premente necessidade de desenvolvimento regional e nacional.
O Decreto-Lei nº402/73 distingue as universidades e os politécnicos no seu artigo 3º; “As Universidades são instituições pluridisciplinares que procuram assegurar a convergência dos diversos ramos do saber e às quais compete especialmente ministrar o ensino superior de curta e longa duração e de pós-graduação, promover a investigação fundamental e aplicada nas diferentes disciplinas científicas e em áreas interdisciplinares e no âmbito da sua missão de serviço à comunidade considerar o estudo da cultura portuguesa (…)”; no artigo 4º, afirma que “Os Institutos Politécnicos são centros de formação técnico-profissional, aos quais compete essencialmente ministrar o ensino superior de curta duração, orientado de forma a dar proeminência a problemas concretos e de aplicação prática, e prover a investigação aplicada e o desenvolvimento experimental, tendo em conta as necessidades no domínio tecnológico e no sector dos serviços, particularmente as de carácter regional”. A criação do sistema de ensino superior binário procura responder à crescente procura verificada no ensino secundário, consequência da obrigatoriedade e gratuitidade do ensino básico. Este alargamento da oferta de ensino superior procurava promover a sua democratização, expansão, regionalização e diversificação.
Contudo, desde logo se verificou que o processo não seria linear sendo que as “(…) perspetivas oferecidas pelo politécnico estão por isso longe de corresponder quer às representações sociais que grande parte dos candidatos ao ensino superior e respetivas famílias têm deste nível de ensino, quer às aspirações produzidas e incorporadas por uma frequência prolongada da escola. Daí que não sejam de estranhar as reservas com que esta variante do ensino superior foi inicialmente acolhida por parte da maioria dos estudantes, que continuam a manifestar uma clara preferência pelos cursos universitários (…)” (Vieira, 1995: 336-337). Apesar disso, temos assistido nas últimas duas décadas a diversas alterações no enino superior em Portugal: destaque-se o alargamento da escolaridade obrigatória (12 anos) e o aumento do número vagas e diplomados nos diversos níveis de ensino (1ºs,2ºs,3ºs ciclos). Apresentamos de seguida dados que permitem comprovar este movimento de expansão.
Diplomados | 1996/97 | 2000/01 | 2005/06 | 2010/11 | 2015/16 | 2018/19 |
Ensino Superior Público | 26 152 | 37 870 | 48 487 | 56 309 | 60 876 | 66 407 |
Universitário | 16 572 | 18 719 | 25 618 | 37 013 | 42 082 | 43 023 |
Politécnico | 9 580 | 19 151 | 22 869 | 19 296 | 18 794 | 23 384 |
Ensino Superior Privado | 16 031 | 22 221 | 20 722 | 19 173 | 12 210 | 14 731 |
Universitário | 10 219 | 11 927 | 10 697 | 12 156 | 8 986 | 10 001 |
Politécnico | 5 812 | 10 294 | 10 025 | 7 017 | 3 224 | 4 730 |
Total | 42 183 | 60 091 | 69 209 | 75 482 | 73 086 | 81 138 |
Vagas para cursos de formação inicial | ||||||
Ensino superior Público | 36876 | 48042 | 47433 | 54284 | 51362 | 51796 |
Universitário | 21945 | 26847 | 26129 | 28914 | 28529 | 28520 |
Politécnico | 14928 | 21195 | 21304 | 25370 | 22833 | 23276 |
Ensino superior Privado | 43561 | 36088 | 36498 | 35529 | 22085 | 22356 |
Universitário | 29923 | 24114 | 23971 | 22553 | 14406 | 14952 |
Politécnico | 12638 | 11974 | 12527 | 12976 | 7679 | 7404 |
Total | 80434 | 84130 | 83931 | 89813 | 73447 | 74152 |
fonte: https://www.dgeec.mec.pt
Os dados apresentados no Quadro 1 permitem-nos retirar as algumas ilações. Verifica-se um aumento progressivo do número de diplomados do ensino superior em Portugal (salientando-se dois movimentos, o das licenciaturas na 1ª década e mestrados na 2ª década do século XXI) e uma duplicação dos valores desde o início dos registos (ano letivo de 1996/97). Este aumento é suportado, fundamentalmente, pelo ensino superior público, sendo que existe uma estagnação ao nível do ensino privado.
É evidente uma flutuação do número de diplomados do ensino politécnico até 2015/16, sendo que, a partir desse ano letivo, institui-se uma recuperação, que coincide com a criação dos cursos técnicos superiores profissionais e consequente aumento progressivo do nº de vagas no ensino superior público.
Assiste-se a uma diminuição global do número de vagas no ensino superior em Portugal, sendo que a mesma é, sobretudo, consequência da diminuição de 50% da oferta no ensino privado. Paralelamente, no ensino superior público assiste-se ao movimento contrário, o de um aumento significativo, com saliência do ensino politécnico, alicerçada, sobretudo, ao nível das licenciaturas na 1ª década e mestrados na 2ª década do século XXI. Saliente-se que, no ano letivo 2020/21, verificou-se um novo aumento de vagas disponibilizadas no sistema de ensino superior público , sendo que a diferença entre ensino universitário e politécnico se tem mantido relativamente estável nos últimos anos (as universidades disponibilizam, em média, mais 5000 vagas). Confirma-se, assim, uma tendência de expansão do ensino público em detrimento do ensino privado, sendo que o papel da agência de avaliação e acreditação do ensino superior (A3ES) neste processo, não pode deixar de ser salientado.
Particularidades sociogeográficas no acesso ao ensino superior
Tendo presente Alves (2007), existem três tipos de dualidades verificáveis entre ensino superior em Portugal: entre universitário e ensino politécnico (maior reconhecimento social do ensino universitário, originado pela ancestralidade, prestígio acumulado e especificidade do tipo e objetivos de ensino), entre ensino público e ensino privado (com este último a ser alvo de um menor reconhecimento social e prestígio) e entre instituições geograficamente centrais (Lisboa, Porto e Coimbra) e periféricas (consequência de uma progressiva regionalização do ensino politécnico e a proliferação/dispersão territorial da oferta privada).
Atualmente, continuam a verificar-se persistentes desequilíbrios de oferta a nível geográfico, apesar de, em termos de oferta formativa e com a implantação do processo de Bolonha, o tipo de oferta formativa no ensino superior se tenha aproximado progressivamente entre os dois subsistemas na última década. Segundo Amaral e Teixeira (2000), a oferta privada e pública, sobretudo de índole universitária, persiste em concentrar-se, preferencialmente, no Norte Litoral e na zona de Lisboa e Vale do Tejo. A quantidade e a natureza dos cursos oferecidos no litoral do país são, na sua globalidade, distintas das restantes ofertas, não só o número de cursos, que continua, ainda hoje, a ser incomparavelmente superior ao existente nas outras universidades e politécnicos do resto do país, como também ao nível da diversidade de níveis de ensino e áreas do saber.
Cabrito (1997), de uma forma mais evidente, e Balsa et al. (2001) e Machado et al. (2003) de uma forma mais moderada, evidenciam desigualdades sociais no acesso ao ensino superior, materializando uma diferenciação social de origem e confirmando uma lógica reprodutora e de seleção social. Os contextos económicos e socioeducativos familiares persistem em influenciar escolhas e possibilidades de aceder a determinadas instituições/cursos e espaços geográficos. Assim, vários estudos, nas últimas décadas, comprovam que a origem social possui papel central nas trajetórias académicas dos mais jovens, sendo que, o ensino superior politécnico é frequentado, tendencialmente, por jovens originários de famílias com menores recursos económicos e socioeducativos, comparativamente ao ensino universitário.
Contudo, esta questão não é uma característica exclusiva do nosso país, Ellersgaard (2015) e Savage (2015), demonstram que, a nível internacional, o capital social económico e cultural dos progenitores continua, também, a exercer uma influência significativa nas opções académicas e profissionais dos seus filhos. Este contexto permite-nos continuar a estabelecer uma relação direta entre trajetórias sociais, académicas e profissionais e reprodução social e profissional . Esta situação foi corroborada, no caso específico do Instituto Politécnico de Viseu (IPV), em diversas análises sobre o processo de transição para o trabalho dos seus diplomados (Sousa, 2004; 2010; 2014; 2021), verificando-se que, maioritariamente, o acesso a um diploma de ensino superior não tinha permitido movimentos evidentes de mobilidade social ascendente.
Não podemos esquecer que, segundo Mauritti (2002), os recursos educacionais e mais especificamente, a forma como são mobilizados na construção de aspirações e expectativas profissionais são, assim, elementos centrais para a compreensão dos mecanismos que, do ponto de vista da procura de trabalho, pautam os processos de transição para a vida profissional ativa dos jovens mais escolarizados. Mas a educação pode não constituir um investimento dirigido, exclusivamente, pelo menos de forma prioritária, para o alargamento de oportunidades profissionais.
Para Resende e Vieira (1992), a população estudantil do politécnico apresenta um perfil sociológico tendencialmente distinto dos seus congéneres das universidades, enquanto os primeiros são oriundos das classes médias regionais (urbanas e não urbanas) e de outros grupos sociais tradicionalmente afastados da cultura escolar, no segundo caso a origem é igualmente diversificada, mas com forte expressão nos círculos sociais das grandes cidades e das regiões detentoras de maiores recursos económicos e culturais. Estamos, assim, perante duas vias que acolhem alunos de meios sociais distintos, consolidando o valor simbólico atribuido às universidades, comparativamente ao menor crédito reconhecido ao politécnico.
A questão da origem social possui, particular pertinência neste processo, influencia as aspirações escolares dos jovens, como assinala Boudon (1977), e reflete simultaneamente a imagem social que a família possui de si própria . Bourdieu (1980b) avança, neste contexto, com o conceito de capital social, conceptualizando a teoria da dominação, que surge como um mecanismo social alicerçado nos recursos sociais do ator, nas relações de conhecimento e reconhecimento. Werfhorst e Andersen (2005) comprovam a influência do background social na trajetória escolar, principalmente da origem social e do nível educacional dos pais, “(…) parents’ education and social status and the gender of the graduates, is generally seen as being influential (…) To have parents with higher education seems to be a clear advantage for one’s own success.” (Schomburg, 2007: 47-48).
Atualmente, novos desafios são colocados ao ensino politécnico, Haug (2001) defende que, urge a este sector melhorar a sua visibilidade como um todo, efetivar o seu direito de competir na arena internacional, aumentar a mobilidade de alunos entre politécnicos e universidades e desenvolver mecanismos que permitam o reconhecimento destas qualificações à escala europeia.
Questões metodológicas
Face às dicotomias nacionais, sobretudo as de carácter sociogeográficas (litoral/interior) e institucionais (universidades/politécnicos), a nossa análise possui características com particular pertinência sociológica. Consequentemente, de uma forma ampla, procuramos evidenciar o papel detido pelo IPV no desenvolvimento local, sobretudo através da atração e fixação de estudantes/diplomados na região, tendo presente a pertinência deste movimento a nível demográfico (concentração urbana), cultural (elevação dos níveis culturais médios da população a nível distrital) e económico (oferta de mão de obra qualificada a nível local). Pretende-se, especificamente, caracterizar perfis socioeconómicos, motivações de acesso e expetativas profissionais dos alunos do IPV, assumindo, indiretamente, a pertinência da transição para o trabalho como uma condição de integração, seleção ou exclusão dos jovens na sociedade .
Utilizaremos os dados recolhidos em momentos temporais diferenciados, originários dos inquéritos por questionário aos finalistas do IPV dos anos letivos 2005/2006 (244 inquéritos), 2018/2019 (152 inquéritos) e 2019/2020 (161 inquéritos), de forma a permitir uma análise longitudinal. Esclareça-se que em 2005/2006 a análise incidiu somente sobre o IPV, sendo a aplicação do inquérito realizada de forma presencial. Nos anos letivos 2018/2019 e 2019/2020, a aplicação do inquérito decorreu simultaneamente em três Politécnicos (Guarda, Leiria e Viseu), tendo sido a sua aplicação e preenchimento efetuado on-line. Assim, apresentamos somente os dados relativos ao IPV, sendo que, a maior dimensão do objeto de estudo e o tipo de aplicação utilizada (on-line), explicam a diferença entre o número de inquéritos preenchidos nos três períodos temporais.
Face à dimensão do objeto de estudo, que abrangia a totalidade dos finalistas das respetivas licenciaturas do IPV , a amostra recolhida é aleatória e não probabilística. Na análise estatística foi utilizado o programa SPSS, versão 27.
Estudantes e origens sociais: o caso do IPV
Iniciamos a presente reflexão pela caracterização sociogeográfica dos finalistas, de forma a percecionar que tipo de população acede ao IPV e que particularidades encerram, tendo presente o seu enquadramento institucional.
2005/06 | 2018/19 | 2019/20 | |||
Sexo | Feminino | 38,5 | 70,4 | 77,0 | |
Masculino | 61,5 | 29,6 | 23,0 | ||
Total | /*800 | 100 | 100 | ||
Idade | 20-23 anos | 62,7 | 78,3 | 83,2 | |
24-30 anos | 26,2 | 12,5 | 11,2 | ||
31-40 anos | 6,9 | 5,3 | 3,1 | ||
+ de 40 anos | 3,2 | 3,9 | 2,5 | ||
Total | 100 | 100 | 100 | ||
Residência/Distrito | Viseu | 66,0 | 61,8 | 60,9 | |
Aveiro | 12,3 | 13,2 | 16,8 | ||
Porto | 3,7 | 5,9 | 6,8 | ||
Guarda | 4,9 | 3,3 | 4,3 | ||
Braga | 2,0 | 2,0 | 1,2 | ||
Vila Real | 1,6 | 2,6 | 0,6 | ||
Outros | 9,5 | 13,2 | 9,4 | ||
Total | 100 | 100 | 100 |
Nota (N= 557 - Fonte própria)
Como podemos constatar no Quadro 2 assiste-se a uma alteração, no que respeita ao sexo, do perfil dos alunos. Salientamos que, no respeita a esta amostra, verifica-se uma progressiva feminização dos estudantes, movimento que se enquadra nas tendências globais verificadas no ensino superior em Portugal nas últimas décadas. Já relativamente à idade, constata-se que a maioria dos finalistas encontra-se na faixa etária dos 21 aos 23 anos, sendo que esta representatividade tem-se intensificado, paralelamente a uma diminuição do número de alunos de faixas etárias mais elevadas.
Esta situação comprova uma linearidade progressiva das trajetórias escolares dos mais jovens, a que não é alheio o aumento do nível da escolaridade obrigatória, mas também o fim de um ciclo, onde se assistiu a um regresso à formação superior por parte de uma geração que tinha abandonado, precocemente, o sistema de ensino (salientamos o movimento de formação superior dos quadros intermédios do Estado na 1ª década do século XX, como podemos comprovar, no caso do IPV em Sousa, 2010). São, na maioria, solteiros e originários da região centro do país, destacando-se a proeminência evidente do distrito de Viseu (acima de 60%), corroborando tendências de procura regional da educação superior, verificadas desde a década de 90 do século XX em Portugal (Cruz e Cruzeiro, 1995; Vieira, 1995). Contudo, verifica-se, paralelamente, um aumento da atratividade do IPV para os jovens oriundos de outros distritos, tendencialmente limítrofes ao distrito de Viseu. Saliente-se o distrito de Aveiro e do Porto, sendo que, a progressiva melhoria das vias de comunicação terrestres, não podem deixar de ser tidas em consideração no processo de promoção de mobilidade geográfica e progressiva proximidade entre distritos. A influência direta do contexto familiar (recursos económicos, qualificacionais e organizacionais) na trajetória escolar dos seus filhos e no nível de ensino frequentado, abrange, para Resende e Vieira (1992), o nível da instituição e área científica escolhida, “(…) the analysis of the socio-educational indicators revealed that the student’s household of origin had a marked effect on access to higher education and that Portugal was still far from offering equitable access to higher education. The influence of family background was also observable in the choice of students between university and polytechnic degrees.” (Tavares et al. 2008: 112). Consequentemente, revela-se relevante analisar a origem social dos finalistas. De forma a determinar os seus lugares de classe, utilizamos a tipologia apresentada por Costa et al. (2007), que defende que a maioria das propostas teóricas e de investigações empíricas vinculadas na atual sociologia das classes sociais convergem para a atribuição de uma importância central aos indicadores socioeducacionais e socioprofissionais. Estes autores falam em estrutura de classes, definindo as respetivas categorias ou lugares de classe.
Lugares de classe de origem | 2005/06 | 2018/19 | 2019/20 |
EDL - Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais | 10,3 | 19,7 | 12,3 |
PTE - Profissionais Técnicos e de Enquadramento | 12,9 | 15,5 | 12,9 |
TI - Trabalhadores Independentes | 12,5 | 4,9 | 3,2 |
TIPL - Trabalhadores independentes Pluriativos | 35,8 | 2,8 | 1,9 |
AI - Agricultores Independentes | 0,4 | 1,4 | 0,6 |
AIPL - Agricultores Independentes Pluriativos | 0,9 | 1,4 | 0,6 |
EE - Empregados Executantes | 11,2 | 15,5 | 21,3 |
O - Operários | 4,7 | 22,5 | 17,1 |
AA - Assalariados agrícolas | 0,4 | 0,0 | 1,3 |
AEPL - Assalariados Executantes Pluriactivos | 10,8 | 15,5 | 28,4 |
Total | 100 | 100 | 100 |
Nota (N: 557 - Fonte própria).
Tendo presente o quadro anterior, podermos evidenciar três tendências evidentes: verifica-se uma proeminência das categorias mais baixas, nomeadamente AEPL, O e EE, cuja representatividade tem aumentado ao longo deste período; nas categorias mais elevadas (EDL e PTE) assiste-se a um movimento de estabilização, sendo que o aumento registado na categoria mais elevada EDL (saliente-se 19,5% em 2019) suporta-se, maioritariamente, em circunstâncias nas quais os progenitores detêm negócios próprios com uma dimensão reduzida, sobretudo na área comercial e restauração; por último, constata-se uma diminuição da representatividade das categorias intermédias (saliente-se TIPL e TI). Estes resultados poderão ser enquadrados em movimentos comprovados nos últimos anos, que suportam o equacionar de uma crise da classe média em Portugal (Louça, Lopes e Ferro, 2019). O facto é que estes resultados permitem-nos equacionar a pertinência da origem social nas trajetórias académicas, nomeadamente a persistência de um movimento de desigualdade social no acesso ao ensino superior e uma diferenciação social que confirma uma lógica reprodutora e de seleção social do sistema binário nacional, conforme se pode constatar anteriormente em Cabrito (1997), Balsa et al. (2001) e Machado et al. (2003). Podemos concluir que nos encontrarmos face a uma população predominantemente feminina, originária de classes sociais, tendencialmente, de baixos recursos económicos, qualificacionais e organizacionais, que poderão enquadrar a procura regional de educação de índole superior.
Motivações e expetativas dos finalistas do IPV
O desemprego persiste como uma preocupação central de responsáveis políticos, económicos e das famílias, tendo presente a progressiva desvalorização dos diplomas e a constituição de novos parâmetros, exigências e competitividade do mercado de trabalho. Esta questão afeta, particularmente, os que, progressivamente, veem um dos únicos veículos de ascensão social ser inflacionado. Esta desvalorização dos diplomas pode ter várias explicações, a título de exemplo refira-se a perspetiva de Amaral e Teixeira (2000), que defendem que este movimento é originado pela melhoria dos recursos financeiros da população portuguesa, um maior investimento na educação e também pela implantação de novas políticas educativa, nomeadamente o alargamento progressivo da oferta de ensino superior. Consequentemente, são instituídos novos desafios ao tradicional papel do Estado na regulamentação do sistema de ensino superior, mas também ao nível das expetativas dos jovens e respetivas famílias. De forma a tentar aprofundar estas questões, apresentamos de seguida, dados sobre as motivações de acesso e representações e expetativas simbólicas dos finalistas face ao diploma e ao emprego.
2005/06 | 2018/19 | 2019/20 | |
Entrada na 1ª opção de candidatura ao ensino superior | 67,6 | 68,1 | 74,0 |
Motivações de acesso ao ensino superior (indique até 3 opções) | |||
Procurei, mas não encontrei emprego após a conclusão do 12º ano | 3,2 | 0,7 | 1,2 |
Pressão familiar | 12,7 | 9,9 | 7,5 |
O prestígio social associado à posse de um diploma | 39,7 | 17,8 | 20,5 |
Era a forma mais certa de vir a ter um emprego bem remunerado | 84,4 | 55,9 | 59,0 |
Oportunidades de emprego nesta área de formação | 42,2 | 56,6 | 60,2 |
Era a forma mais segura de obter um emprego | 72,6 | 42,1 | 44,7 |
Subir hierarquicamente no emprego já estabelecido | 11,5 | 6,6 | 6,8 |
Nota (N: 557 - Fonte própria
Analisando os resultados apresentados no Quadro 4, os finalistas declaram que acederam ao ensino superior, sobretudo, na sua primeira opção, corroborando o já avançado anteriormente no que respeita à procura regional de educação. Face a este elevado nível de correspondência, importa analisar as motivações de acesso dos finalistas. Assim, são questões relacionadas com a “possibilidade de acesso a um emprego bem remunerado” e a “forma mais segura de acesso a um emprego” as motivações mais referidas pelos finalistas. Contudo, refira-se que estes dois indicadores e ainda o “prestígio social associado à posse de um diploma”, evidenciam uma diminuição significativa da sua representatividade para os finalistas de 2018/19 e 2019/20. Somente no indicador “oportunidades de emprego nesta área de formação” se verifica um aumento de referência nos três momentos temporais analisados.
Se considerarmos as variáveis sexo, idade e classe social, verifica-se a particular representatividade dos finalistas maiores de 30 anos na 1ª opção de entrada no ensino superior, evidenciando, também, a importância deste acesso, na possibilidade de permitir mais oportunidades de emprego, de constituir uma forma mais segura de obter um emprego ou mesmo de subir hierarquicamente no emprego detido. Saliente-se que são, tendencialmente, os pertencentes a classes sociais mais baixas que exteriorizam estas posturas.
Importa aprofundar esta análise, de forma a verificar se, no último ano da sua formação académica estas perspetivas foram alteradas.
O quadro 5 permite aprofundar a reflexão anterior, assim, verificamos que os finalistas continuam a reconhecer a importância da obtenção de um diploma, assumindo que interfere, directamente, nas possibilidades de encontrar emprego, que influencia as condições salariais e que poderá permitir um aumento do seu estatuto social. Assim, as representações dos alunos sobre o diploma e emprego, no último ano da formação académica, apresentam-se mais elevadas do que as referidas aquando do seu acesso ao ensino superior, sendo que as variáveis sexo, idade e classe social não possuem aqui relevância analítica.
A obtenção do diploma de licenciado interfere: | 2005/06 | 2019/20 | 2020/21 |
Possibilidade de encontrar emprego | 87,1 | 87,1 | 95,5 |
No salário e proveitos materiais | 83,9 | 82,4 | 86,9 |
Aumento do estatuto social | 66,3 | 73,6 | 67,2 |
Nota: N = 557 - Fonte própria
Apesar do movimento de inflação escolar (Hartog et al. 2001), os alunos do IPV continuam a revelar elevadas expetativas profissionais e uma representatividade simbólica significativa, no que respeita ao estatuto de licenciado, sendo que, face aos dados apresentados, as mesmas aumentam durante o decurso da sua formação académica. Esta situação permite-nos equacionar se não os podemos considerar, na esteira de Marques (2006), alunos de diploma.
Conclusão
Tendo presente a análise anterior, podemos afirmar, neste caso específico, que o IPV continua a apresentar uma população maioritariamente feminina (movimento que se tem intensificado na última década) e progressivamente mais jovem (consequência direta do aumento da escolaridade obrigatória para 12 anos e da redução dos alunos de faixas etárias superiores que, pertencendo às gerações anteriores, tinham abandonado precocemente o sistema de ensino). Verificamos, paralelamente, tendo presente a classe social de origem dos finalistas, uma bipolarização: um aumento da representatividade das classes mais baixas (AELP; O; EE) e uma diminuição efetiva das classes médias (sobretudo dos TILP, TI), sendo que, genericamente, os dados das classes mais elevadas (EDL; PTE) se mantiveram estáveis. Podemos afirmar que são, tendencialmente, jovens oriundos de famílias com baixos recursos económicos e qualificacionais, o que torna ainda mais evidente, neste caso, a importância do papel do ensino superior politécnico, na possibilidade, dos mesmos, melhorarem o seu contexto social de origem.
Consequentemente, é compreensível que persista uma procura regional de educação, apesar de este movimento caracterizar o ensino superior em Portugal, como podemos comprovar nas análises de Cruz et al. (1992), Resende e Vieira (1992), Cabrito (1997), Balsa et al. (2001) e Machado et al. (2003) a nível nacional, ou em Sousa (2004; 2012; 2017; 2021) no que respeita ao IPV.
Apesar de tudo, é ao nível do ensino politécnico, do interior do país, que se intensificam as lógicas reprodutoras e de seleção social, movimento que se enquadra na constatação no fenómeno de desigualdade social no acesso e na afirmação de uma diferenciação social, suportada numa lógica reprodutora e de seleção social do próprio sistema de ensino superior binário. A maioria dos finalistas procuram a instituição de ensino superior mais próxima do seu distrito de residência, sendo que a ligação desta opção com o contexto socioeconómico familiar, não pode deixar de ser estabelecida.
Esta situação é comprovada pelos vários indicadores nos diversos momentos temporais abordados, evidenciando uma realidade social dicotómica e uma elevada correspondência entre origens socioeconómicas, motivações de acesso ao ensino superior e expetativas profissionais. Este contexto reflete também que, com trajetórias académicas cada vez mais longas, aumenta a idade média de acesso ao emprego estável e a entrada na vida adulta, o que prolonga temporalmente a dependência residencial e económica face à família (Sousa, 2012).
Quanto à representatividade simbólica do diploma, para muitos finalistas, a obtenção do grau de licenciado assume uma importância central no acesso a um emprego bem remunerado e estatuto social. Os alunos revelam elevadas expetativas face à importância que obtenção de um diploma representará no seu futuro profissional. Esta situação é particularmente evidente no último ano da sua formação académica, comparativamente às motivações que evidenciaram aquando do acesso ao ensino superior.
Podemos afirmar que o ensino politécnico em Portugal, sobretudo em regiões do interior do país, continua a representar um papel central no esbater das dicotomias sociais e económicas do país. Para muitos, ainda representa a única possibilidade de prolongar as suas trajetórias escolares no período pós-secundário ou mesmo de regressar ao sistema de ensino. Assim, o processo de afirmação do ensino politécnico, num contexto da democratização do ensino superior, não se encontra concluído, continua a representar, para muitos, uma possibilidade de frequentar o ensino superior, possibilitando criar expetativas legítimas, de melhoria da sua condição socioeconómica de origem ou mesmo da situação profissional detida.