A construção de um modelo ideal de monarca no livro de linhagens do Conde Pedro de Barcelos
Comunicação apresentada a 13 de agosto de 2009, no VIII Encontro Internacional de Estudos Medievais organizado pela Associação Brasileira de Estudos Medievais.
O Livro de Linhagens escrito pelo Conde Pedro Afonso apresenta exemplos de tradições familiares, destaca a importância da linhagem, do sangue, na constituição da nobreza, fornece uma galeria de tipos exemplares, modelos de virtude. A obra constitui-se como uma forma de transmissão ideológica, que ao mesmo tempo reforça a legitimidade de sangue da nobreza, que cerca o rei, e fornece a ela um modelo de estruturação interna, a partir da caracterização do bom e do mau rei, além da caracterização do nobre ideal.
Ao longo do Livro de Linhagens são encontradas referências ao código ético da Cavalaria medieval, na definição dos personagens e na recriação do ambiente em que se movimentam, apresentando assim um modelo de agir. Ocorre uma identificação entre nobreza e Cavalaria, expressando um modelo ideal de vida para a aristocracia do século XIV.
O Conde fornece à nobreza, através do modelo cavaleiresco “unha conciencia de identidade, unha conciencia da existencia como grupo ou clase social ben definida dentro do conxunto da sociedade.”1 Constrói esse ideal a partir de valores ligados ao sangue, ao patrimônio, à tradição e à honra, valores que trariam coesão e estruturação à nobreza, que vivia um momento de desestruturação e perda de sua justificativa de defensora do reino, após o término das operações de Reconquista, no século XIV.
Os valores apresentados pelo Conde ao caracterizar o bom e o mau rei e o nobre são praticamente os mesmos. A monarquia não é tratada na obra como algo exterior e diferencial do nobiliário. As relações de parentesco a unem com a nobreza, “os modelos culturais son compartidos porque son os mesmos; aínda máis, a monarquía tem a súa orixe na nobreza, existe por ela e em virtude dela.”2 A nobreza constitui-se como a linhagem da monarquia.
O rei é visto, durante o século XIV, na Europa Medieval, como sendo o regulador das pressões e relações internas da nobreza, que se dão ainda numa esfera baseada em relações pessoais. Nesse contexto, a primazia régia é construída por meio da promoção do bem comum no Reino, fundamentado no equilíbrio entre concessões e cobranças. O rei teria o direito de “impor a todos a sua vontade, porque ela é conforme e evidentemente à vontade geral, ao bem comum.”3
O século XIV é marcado pela existência de relações e alianças políticas que extrapolam fronteiras físicas. Laços de fidelidade e honra uniam nobres a seus senhores, de maneira que nenhum dos critérios pelos quais se pode atribuir superioridade social a uma linhagem tem que ver com a sua ‘nacionalidade,’ mas antes com aqueles vínculos que as ligavam aos reis que iniciaram a Reconquista, como o Rei Rodrigo, ao grande antepassado da melhor nobreza peninsular, Cid o Campeador, ou aos outros heróis da gesta anti-islâmica.4
A fidelidade ao juramento vassálico era mais forte do que a fidelidade em relação ao território de nascimento. Sendo a ligação dos nobres com o ideal da Reconquista bastante acentuada, a ponto de estruturar as relações dessa nobreza, constituindo-se no seu grande modelo.
Ao apresentar um perfil do bom rei o Conde fornece um modelo aos nobres, constrói dessa maneira uma identidade do que significava ser nobre aos membros da nobreza de Corte, construída a partir do modelo régio.
Esse modelo de rei e de nobre foi sintetizado pelo Conde a partir de narrativas que “circulavam oralmente (nos meios palacianos, aristocráticos, nos saraus das Cortes, nas cantigas trovadorescas) e tinham uma relativa independência de suas versões escritas”.5 Essas narrativas passaram a circular por entre a nobreza após a estabilização política promovida no reinado de Dinis, momento em que a mentalidade cavaleiresca sofreu uma valorização, através da difusão de “um culto generalizado da poesia trovadoresca e dos romances de cavalaria.”6.
Dentre os vários tipos de narrativas que se encontram intercalados aos trechos genealógicos do Livro de Linhagens, o perfil do bom rei e do nobre é buscado nos trechos anedóticos e nos trechos históricos. Os trechos anedóticos trazem referências acerca da honra de determinadas famílias, além de modelos de como se deve cumprir o código vassálico, além de relatos de traições. Já os trechos históricos trazem biografias de determinadas personagens e exemplos de vassalidade.
Ao buscar as origens da instituição monárquica em Adão “falaremos primeiro do linhagem do homees e dos reis de Jerusalem des Adam ataa nacença de Jesu Christo,”7 o Conde visava apresentar a ancestralidade da instituição, além de reforçar o fato de que a sociedade necessitava da monarquia. O recurso à história para poder apresentar a linhagem dos reis de Portugal não só
contribuye a sacar la figura del príncipe de los tiempos primordiales y a inscribirla em uma perspectiva histórica, sino que, al relacionarla con un reino concreto y con sus habitantes, irá aportando elementos para la construcción de otros conceptos, como los de estado y nación.8
O Livro de Linhagens pode ser analisado como um espelho de reis e de nobres, obra onde as virtudes do bom rei e do nobre, assim como os vícios que podem e devem ser evitados podem ser contemplados. A partir do modelo de bom rei apresentado pelo Conde, obtém-se o modelo do bom nobre, que segue as características atribuídas ao monarca.
Nos primeiros sete títulos do Livro de Linhagens, e em determinados trechos do restante da obra, onde o Conde apresenta as linhagens nobiliárquicas, destacando-se o título XXI, “D’El rei Ramiro, donde decendeo a geeraçom dos boos e nobres fidalgos de Castela e Portugal, e d’algũus feitos que ele de os que dele descenderam feezeram,”9 o Conde Pedro Afonso enumera as características e virtudes que um monarca deve possuir. O Conde ao narrar tais virtudes projeta a imagem de um Rei ideal.
A imagem de Bom Rei apresentada pelo Conde pode ser analisada a partir de dois aspectos, uma imagem moralizante, ressaltando determinadas virtudes, e uma imagem funcional, destacando a função a ser desempenhada pelo rei dentro do reino. Já a imagem do mau Rei é apresentada a partir da não valorização do cristianismo e da negação de determinadas virtudes.
O Rei Cristão. A imagem do Rei Cristão é construída a partir de uma concepção Cristã da História. Para chegar aos reis de Portugal faz uso de uma cronologia com enfoque bíblico, onde Adão é apresentado como a base do tronco, do qual descendem todos os homens. O Conde emprega na descrição um caráter universalista, frente aos particularismos que marcam a Península Ibérica de 1340. Amarra a atuação do rei a referências histórico-simbólicas, valorizadas do passado bíblico, clássico e hispano-godo, característica essa específica da Península Ibérica.
O rei cristão é apresentado inicialmente como o rei temente a Deus, baseado em exemplos de personagens bíblicos, como pode-se observar na apresentação do rei Davi: “foi homem que temeo Deus, e foi mui bõo rei e bõo profeta, e fez os Salmos e a Lei.”10 Em seguida vem a conversão ao cristianismo e sua função como defensor da fé e de seu povo. O rei cristão é o rei da Reconquista, como pode ser percebido na descrição do rei Ramiro das Astúrias “este houve muitas batalhas com Mouros e conquereo grandes terras. E deste Rei Ramiro o segundo saio a boa geeraçom dos fidalgos da Espanha.”11 Essa ligação do Rei com a Reconquista ao mesmo tempo justifica-o perante a sociedade e o caracteriza como o responsável por zelar pela unidade da Cristandade.
O Rei Virtuoso. O rei virtuoso é aquele que se mostra esforçado em suas conquistas territoriais e na defesa da cristandade, honra os seus e governa com mansidão e cortesia. A virtude mais citada ao longo do texto é a lealdade, símbolo do compromisso que deve reger as relações vassálicas, como exemplo observa-se a descrição do rei Artur: “foi boo rei e leal, e conquereo todolos seus emmigos, e passou por muitas aventuiras, e fez muitas bondades, que todolos tempos do mundo falarom delo.”12 O rei exige fidelidade e se torna digno dela ao cultivar as virtudes que devem caracterizá-lo. Os exemplos de lealdade, empregados pelo Conde, vêm de lugares distantes como a Bretanha, lugar idealizado, onde a lealdade era prática comum, e a deslealdade era substituída pela afirmação do juramento de vassalagem.
O Rei Juiz. Ao valorizar a imagem do rei justo, o Conde ressalta que o exercício da justiça dentro do reino é uma forma de recuperar e manter a ordem. Nada mais pertinente de se escrever quando se está inserido numa realidade marcada por antagonismos e disputas entre rei e nobreza. É dever do rei zelar pelo exercício da justiça, valorizando costumes e tradições, dessa forma a ordem retornaria ao reino, como exemplo encontra-se Afonso III de Portugal: “El rei dom Afonso foi mui boo rei e justiçoso, e manteve sempre seu reino em paz e sem contenda nem ũa.”13 O Conde Pedro Afonso ao longo do Livro de Linhagens formula regras de conduta aos príncipes e a todos os que se ocupam de política dentro do reino.
O Rei conquistador. Ao apresentar o rei conquistador como o Rei da Reconquista, o Conde pode estar estimulando o papel cruzadístico do rei e consequentemente da nobreza, dentro do panorama da Península Ibérica, às vésperas da Batalha do Salado, 1340. Ao reavivar o ideal da Reconquista peninsular na luta contra o infiel, ideal esse gerador da unidade em torno de um ideal comum, o Conde ao mesmo tempo fortalece o rei e realça o papel da nobreza, justificando sua função social.
O Mau Rei. A imagem do Mau Rei é pautada numa Imagem Amoral (não cristã e não virtuosa): rei folom, 14 cruel, herético, desleal, não sabe guardar seus amigos, não segue a fé de Cristo, além de ser adorador de ídolos e possuir maus conselheiros. Como exemplos cito o rei Porex da Bretanha: “foi mao rei, folom, e foi boo bevedor de vinho,”15 e o rei “Julianus Apostata, e foi mao e desleal, e partio-se da fe de Christus.”16
Tais valores e virtudes associam-se, diretamente, à sociedade medieval portuguesa e à nobreza, formadas no interior de uma sociedade organizada para a guerra. Guerra que se constituiu enquanto “fator dominante que estrutura a sociedade e sua economia na Península Ibérica medieval.” 17
Muitos desses valores são equiparados aos modelos transmitidos pelos romances de Cavalaria, difundidos de forma escrita no século XIV. Antes disso, transmitiam-se por via oral ou na forma de estratos, fornecendo alimento literário aos cavaleiros através da difusão das epopéias: “a realidade histórica misturava-se intimamente com a ficção literária e esta, por sua vez, inspirava e motivava a própria realidade.”18
Um exemplo do perfil do “bom rei”, apresentado pelo Conde, pode ser encontrado no relato do que teria dito o Conde Henrique, a seu filho Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal
Filho, toda esta terra que te eu leixo dês Astorga ataa Coimbra, nom percas ende ũu palmo, ca eu a gaanhei com gram coita. E, filho, toma do meu coraçom algũa cousa, que sejas esforçado e sejas companheiro aos filhos d’algo, e da-lhe sas soldadas todas. E aos concelhos, faze-lhes honra, em guisa como hajam todos dereito, assi os grandes come os pequenos. E faze sempre justiça e aguarda em ela piadade aguisada, ca se um dia leixares de fazer justiça ũu palmo, logo outro dia se arredará de ti ũa braça, e do teu coraçom. E porem, meu filho, tem sempre justiça em teu coraçom e haverás Deus e as gentes. E nom consentas em nem ũa guisa que teus homees sejam soberbosos nem atrevidos em mal, nem façam pesar a nem ũu, nem digam torto, ca tu perderias porem o teu boo preço se o nom vedasses.19
Nesse trecho percebe-se que o “Bom Rei” deveria ser o conquistador de terras, esforçado e companheiro dos fidalgos. Deveria o rei honrar os Concelhos, as Vilas, garantindo os direitos de todos. Garantir o exercício da justiça era uma forma de alcançar proteção Divina e apoio das gentes do Reino. O Rei dentro da sociedade seria o ordenador, o árbitro das relações vassálicas, zelando para que seus homens não fossem soberbos e nem atrevidos.
A imagem de monarca ideal construída pelo Conde é definida pela figura de um rei que domina a hierarquia da nobreza, é Ele quem define escalões, confere prestígio. O rei constitui-se, nessa visão, como elemento chave na aplicação da Justiça e das leis. As leis elaboradas pelo rei são feitas para todos do reino. Dessa forma centralizaria sua autoridade, sobrepondo-a aos poderes locais. Essa centralização, no entanto só seria alcançada se governasse de maneira piedosa, com justiça e misericórdia. A Justiça deixaria de ser um privilégio para tornar-se um direito de todos, em nome do rei.
O Bom rei deveria desenvolver ações a fim de que houvesse, segundo coloca o Conde Pedro de Barcelos ainda no Prólogo do Livro de Linhagens, “amor” e “amizade” entre seus súditos, zelando e promovendo o bem comum. A figura do rei como regulador e promotor do bem comum é necessária na medida em que a nobreza encontra-se fragmentada, desorientada e sem consciência de grupo e da importância que possui dentro do reino. Dois valores que permitiriam à nobreza ajudar-se mutuamente: “amor” e “amizade” estariam sendo deixados de lado.
A amizade, considerada como o maior de todos os bens, seria capaz de impedir discórdias. Valores como fidelidade, lealdade e assistência mútua estão ligados a ela. São valores que fazem parte da ética cavaleiresca, princípio básico que deve organizar a sociedade.
Se houvesse fidelidade entre os nobres não haveria necessidade dos reis. Em uma sociedade configurada a partir de vínculos pessoais, a fidelidade é imprescindível. O rei, na concepção do Conde, só é digno de fidelidade se souber respeitar os foros e costumes nobiliárquicos. Deve apoiar-se nos vínculos pessoais que sustentam a sociedade, a fim de manter a justiça e ordenar a mesma. A imagem do rei pacífico, capaz de promover a paz no reino é a personificação desse ideal.
O bom rei é ainda o rei cristão, temente a Deus. É o rei da Reconquista, que luta em defesa da cristandade, combate mouros, reconquista territórios e garante a unidade da cristandade.
Essa imagem “ideal” contrasta com uma realidade bem diferente, marcada por revoltas nobiliárquicas, disputas entre reis e infantes, como no caso português onde o Infante Afonso reivindicara o exercício da Justiça dentro do reino, fato que culminou na Guerra Civil (1319-1324). Reis que na busca da centralização não souberam relacionar-se com a nobreza, não levando em conta seus valores e tradições, não provendo a paz e nem garantindo o bem comum em seus reinos.