É impossível estudar as fontes sobre o armamento quatrocentista em Portugal sem nos depararmos com o termo “gibanete” (ou, em grafia alternativa, “jubanete”). Em testamentos ou inventários, em ordenanças ou vereações, os “gibanetes” são uma presença constante na documentação do século XV. Ainda assim, apesar desta sua constância, não existe até hoje qualquer consenso sobre o que um “gibanete” é ou deixa de ser - não temos uma descrição morfológica exaustiva, um artefacto arqueológico ou uma representação visual que possamos apontar como correspondente à palavra. O objectivo deste ensaio é, portanto, recolher informações da documentação tardo-medieval portuguesa e estrangeira e procurar definir concretamente o que é um gibanete e em que moldes difere ou se assemelha a outras protecções de tronco suas contemporâneas1.
1 - Definições Problemáticas
O que se avançou nesta breve introdução não significa que, ao longo dos anos, não se tenha tentado atingir uma definição concreta da palavra. Antes pelo contrário.
O primeiro dicionário da língua portuguesa, o Vocabulario portuguez e latino do Padre Raphael Bluteau2, não contém qualquer verbete explicativo para o termo “gibanete”, em qualquer das duas grafias; seria necessário aguardar pela versão aumentada de Antonio de Moraes Silva para obtermos: “Gibanete, S. m. armadura, especie de peito de ferro. B. P.”3. Nove anos mais tarde, o Elucidário de Joaquim de Santa Rosa de Viterbo incluiria um verbete muito mais detalhado: “gibanete. Jibanete, e Jubanete. Piqueno gibão de aço, ou ferro”4, completo com um considerável rol de exemplos de uso. Este registo é, na sua essência, semelhante ao de Moraes Silva, com duas importantes diferenças: o manancial de abonações procedentes de documentação histórica do século XV, em particular de vereações da cidade do Porto, por um lado; por outro, Santa Rosa de Viterbo estabelece pela primeira vez uma ligação directa entre “gibanete”, a peça de armamento, e “gibão”, a peça de vestuário - ligação que, como mostrarei adiante, será essencial para compreendermos a especificidade do conceito.
A definição de Viterbo é novamente retomada, e expandida, pelo dicionário de Moraes na sua edição de 1831: “Gibanete, s. m. armadura, especie de gibão de ferro. B. Per. III, 138, ou anta, em panno mui dobrado”5. O mistério adensa-se: para além do aço e do ferro, temos agora anta6 (a pele do animal, supõe-se) e pano dobrado, embora o verbete não deixe claro como se articulam estes diferentes materiais entre si. O Novo diccionario da lingua portugueza de Eduardo Augusto de Faria, publicado duas décadas mais tarde, acrescenta ainda a malha metálica à lista de potenciais materiais empregados no fabrico de um gibanete: “Gibanete, s. m. diminut. de gibão, espécie de gibão de ferro, de malho, de anta, etc.”7. Desconhece-se em que se basearam estes diferentes lexicógrafos para tecerem estas adendas. O importante a reter é o facto de, de uma forma ou de outra, todos os subsequentes dicionários em língua portuguesa (portugueses e brasileiros) se terem baseado nestas definições para criarem os seus próprios verbetes - tanto na definição simples, de Moraes Silva e de Santa Rosa de Viterbo8, como na explanação mais complexa de Eduardo de Faria9. Ressalve-se que é de um termo exclusivamente português que aqui tratamos, sem paralelo para lá da raia10.
Esta falta de consenso tem dado azo a algum caos entre estudiosos de todas as áreas, como seria de prever. Regra geral, a historiografia militar mais recente parece ter-se esquivado cautelosamente ao termo ou, das poucas vezes em que é forçada a confrontar-se com ele, seguido a definição de Santa Rosa de Viterbo. Veja-se, a título de exemplo, o glossário que integra o volume Armeiros e Armazéns de João Gouveia Monteiro, onde “jubanete” surge definido como “pequeno gibão de aço, ou de ferro”11, definição reutilizada por Paulo Jorge Simões Agostinho na sua análise do armamento na cronística de Quatrocentos12. Casos também houve e há em que o estudioso decidiu, sem se saber bem como, ignorar os dicionários e inventar a sua própria definição de gibanete: José de Figueiredo furtou-se à conotação bélica do termo, afirmando que “No «painel dos cavalleiros» [dos Painéis de São Vicente], os tons são cantantes e a symphonia começa pela nota, simultaneamente luminosa e surda, mas nem por isso menos rica, do saio e gibanete de panno arroxeado que veste o velho do primeiro plano (…)”13; enquanto Augusto Cardoso Pinto opinava que um gibanete seria uma “(…) couraça curta de couro, guarnecido de tachas que chegava só até à cinta”14 (noção na qual José de Oliveira Simões mais tarde se baseou na sua análise das armas n’Os Lusíadas15). Abundans cautela non nocet: ante tanta definição e tanta incerteza, não é de admirar que Isabel dos Guimarães Sá e Hélder Carvalhal tenham, num estudo sobre as contas da Casa do Condestável D. Afonso, descrito o gibanete como “uma peça muito preciosa de significado ainda desconhecido”16.
2 - O Gibanete de D. Afonso: Um Caso de Estudo
Não obstante a nebulosidade do termo, são essas mesmas contas da casa de D. Afonso17 que nos oferecem uma das mais úteis descrições de um gibanete. Por entre a desordenação de itens de contabilidade pode ler-se, no fólio 97: “Item pagou o dito tesoureiro por uma cravação dourado [sic] para o gibanete de veludo carmesim mil e trezentos reais - 1300 reais”. Um pouco adiante, no fólio 101: “Item pagou o dito tesoureiro ao bate folha de bater dois cruzados e meio cem reais a quarenta reais cada cruzado os quais eram para dourar as naminas18 [sic] do gibanete do dito senhor - 100 reais”19.
Que informações podemos daqui retirar? Primo, o facto de um gibanete implicar uma grande quantidade de cravação em pano. A cravação - a fixação de peças de metal a outras peças metálicas e/ou a forros de pano ou couro mediante cravos - é um dos métodos essenciais da produção de armamentos medievais20 (que requer alguma necessidade de especialização21). Assim nos mostram documentos como a carta de privilégio dada ao latoeiro João Martins, “mestre de fazer gibanetes e crauações pera armas e pera gibanetes e arreos pera cauallos”22. Para além da sua função mecânica (assegurar a união de dois elementos), os cravos tinham também uma potencial função decorativa, como se pode ver pela quantidade de ouro gasta nos cravos do gibanete do Condestável, ou nos “(…) gibanetes de crauaçam dourada sobre brocado (…)” que Afonso de Albuquerque manda enviar de presente ao Xá Ismail da Pérsia em 1515, entre vários outros objectos23.
Secundo, o revestimento em tecido do gibanete. Não são apenas as muitas referências a forros de pano de que dispomos - os veludos e os brocados supramencionados - que revelam a habitual necessidade de costura das peças; não há margem etimológica para dúvidas de que era ao gibão ou jubão que o gibanete ia pedir de empréstimo o seu aspecto24. O gibão, peça de roupa surgida em finais do século XIV e indispensável da indumentária masculina do século XV25, consistia numa espécie de casaco curto que cobria o corpo masculino do pescoço até ao topo das ancas26 (Fig. 1). Apertava-se à frente com cordões, bem justo à cintura (natural) por forma a criar uma silhueta em X27; comportava mangas e colarinho, de feições variáveis segundo a moda da época e da região28. À excepção das mangas, portanto, infere-se que não haveria grande diferença externa entre gibões e gibanetes, conquanto os gibanetes estivessem repletos de cravos.
Relativamente à sua estrutura interior, o gibanete de D. Afonso nada nos diz. Podemos, no entanto, tirar ilações a partir de outros documentos. Na carta de quitação do Arsenal Régio de Lisboa, de 145529 encontramos menções a “restes para jubanetes e soylhas”30. O riste, um pequeno gancho saliente para encaixe da lança em cargas de cavalaria31, encontra-se sempre associado a uma placa metálica - seja um peito de couraça, inteiro, ou uma placa individual larga sobre os peitorais - que permite uma sólida ancoragem da lança junto ao corpo e a dispersão da força de impacto do golpe32. Dificilmente os gibanetes teriam peitos inteiros em chapa metálica: olhemos novamente para a carta de quitação, e a distinção clara que faz entre os “arneses de almazem”33 de chapa inteiriça (e as suas muitas componentes individuais) e “jubanetes”34 - a mesma que encontramos noutra documentação ao longo do século35. Restam, portanto, as placas individuais, das quais vários espécimes arqueológicos dos quais ainda nos chegaram (Fig. 2)36. Estas placas não seriam usadas sozinhas no interior do gibanete; fariam parte de conjuntos de placas e de lâminas imbricadas, cravejadas entre si num todo coeso. Corrobora-se assim a descrição que Santa Rosa de Viterbo faz dos gibanetes: um gibão forrado a (e não de) ferro. A carta indica-nos ainda que o gibanete poderia comportar mangotes37, quase certamente com alguma espécie de reforço interno em metal38 - embora sem qualquer detalhe relativo à sua construção.
Tertio, custo. Em 1485,
“ (…) querendo el-rei [D. João II] armar e prover seus vassalos e naturais das armas e coisas em que sentiu que havia mingua e necessidade, mandou fazer e trazer de fora à sua custa muitas lanças compridas e um grande numero de jubanetes de muitas sortes e as mandou lançar pelo reino, segundo cada um merecia, e pela paga do preço delas, deu el-rei a todos uma conveniente espera em que se pagaram”39.
Não é despiciente o compasso de espera necessário ao pagamento destes gibanetes. Por mais habituais que estas peças parecessem ter sido nos arsenais públicos e privados do reino, não saíam exactamente baratas ao potencial comprador. Segundo dados recolhidos por António de Oliveira Marques, por exemplo, um gibanete com capacete e babeira (uma fórmula prescritiva comum na documentação da época40) abriria um rombo de 1000 reais no orçamento de um acontiado em 147541; quatro anos mais tarde, em Braga, o mesmo valor já só cobria o gibanete42. Face a isto, alguma razão teria o povo para se queixar, nas cortes de 1498, da “oppersaõ” da Coroa em obrigar à aquisição de gibanetes pelas gentes do reino43. E logo estes, que seriam gibanetes sem grandes lavores, provavelmente elaborados em couros ou tecidos menos nobres (fustões, por exemplo) que sabemos serem empregados para forro de outras peças tardo-medievais44. Afinal de contas, só no processo de douragem dos cravos e subsequente cravação do gibanete do Condestável em 1500 despendeu-se mais do que o necessário à aquisição de um gibanete, capacete e babeira duas décadas antes.
Todos os aspectos mencionados - materiais, embelezamentos, custo - ajudam a explicar o elevado estatuto de que pelo menos alguns gibanetes, como o de D. Afonso, gozariam. De outro modo, dificilmente se compreenderiam os gestos de D. Duarte de Meneses para com o rei de Fez, ao ofertar “huum gibanete muy boo e huma cellada e duas lanças. todo muyto bem e muyto ricamente guarnido”45, ou o já referido presente diplomático de D. Afonso de Albuquerque a uma potestade estrangeira.
Em resumo: de acordo com as fontes históricas e com as indicações lexicográficas, podemos afirmar que, no seu cômputo geral, um gibanete:
- é uma peça assemelhada em formato e dimensões (e provavelmente em construção externa, no que toca a costuras) a um gibão;
- possui um forro exterior de couro ou de tecido (de vários tipos) e um revestimento interior de placas ou lâminas de aço ou ferro (podendo ou não comportar também secções de malha metálica), fixo ao forro exterior através de cravos;
- se pode apresentar mais ou menos ornado, com materiais mais rudimentares ou mais dispendiosos;
- se encontra amplamente disseminado em vários estratos sociais, desde os acontiados às elites.
Estamos, portanto, ante uma peça segmentada de protecção de tronco, com um forro exterior em materiais orgânicos e um forro interior de placas metálicas. E isto levanta-nos alguns problemas de sistematização.
3 - O Desenvolvimento das protecções segmentadas na Europa e em Portugal
Para compreendermos o porquê destes problemas, é necessário lançarmos um olhar breve para a evolução histórica deste tipo de peças. As defesas de tronco segmentadas - entenda-se peças de tecido ou couro reforçadas (geralmente) com placas metálicas de dimensão variável - surgem na Europa algures durante a primeira metade do século XIII46, provavelmente em resposta ao impacto cada vez maior da cavalaria pesada e de armas de tiro mais eficazes (em particular as bestas)47. Logo na sua origem temos dois tipos de designação para o que se supõe ser o mesmo objecto, que até hoje permanecem difíceis de destrinçar: temos peças feitas quase certamente de couro fervido, ou cuir bouilli48 - cuiries (em Francês e Inglês)49, coiraças (em Provençal)50, cuyraces (em Catalão)51 - que podiam ou não comportar uma placa de peito e uma para as costas, e também lâminas de reforço interno52; e temos sobrevestes de tecido ou de couro (não fervido) forradas com largas placas de ferro ou aço - plates ou pair of plates ou coat of plates (em Inglês)53, cote a plates (em Francês)54, fojas (em Castelhano)55. Tal como Martí de Riquer56, assumo ambos os conjuntos de termos como sinónimos.
Tenham a designação que tenham, o primeiro exemplo visual reconhecido destas protecções segmentadas é uma estátua de São Maurício na Catedral de Magdeburgo, datada da segunda metade do século XIII57. O santo enverga o que parece ser um longo avental de pano ou couro (a sobreveste), cravado com rebites de grande dimensão que atestam a presença de placas largas sobre o peito, dispostas na horizontal. Protecção algo rudimentar e experimental que é, este tipo de defesa apresenta um perfil quase tubular em volta do tronco do guerreiro, resultado das dimensões das suas lâminas constituintes. Este “refined textile «vest» lined with riveted metal plates (…) of various sizes and various numbers in a given piece, aligned horizontally or vertically”58 dissemina-se por toda a Europa ao longo do século XIII e até inícios do século XIV59. Até meados de Trezentos, complementado por placas mais longas, o coat of plates é o principal elemento de defesa tanto de cavaleiros como de peões60 (Fig. 3).
A partir desta data, o desenvolvimento deste tipo de peças parece efectuar-se em duas linhas diferentes em simultâneo - uma, um processo de união ou junção das diferentes placas; outra, uma de fragmentação.
O processo de junção das várias placas constituintes do coat of plates61, que atravessou todo o século XIV, culminou na criação de defesas com peitos formados de uma única chapa de ferro ou aço coberta por tecido, complementadas por fraldões de lâminas cravadas em tecido e espaldares feitos de várias placas metálicas62. São estes peitos “ocultos”, muitas vezes cobertos de cravos decorativos, que resultam nos arneses integrais de chapa polida de finais do século XIV em diante.
A segunda linha de desenvolvimento, mais importante para este estudo, reduziu em dimensão e aumentou em número as placas cravadas ao forro de tecido ou de couro do coat of plates. Estas “novas” defesas surgidas em finais do século XIV, a que a documentação italiana da época chamou corazzina63 e a inglesa e francesa brygandine ou brigandine64, articulavam já algumas placas de média dimensão de recorte anatomizado (placas largas para cobrir os peitorais, por exemplo, ou placas trapezoidais para o topo da espinha) com placas menores ou até outros materiais (como a malha metálica65) para criar defesas de protecção completas do tronco (Fig. 4). Estas peças eram menores em dimensão que os longos coats of plates, muito mais justas ao corpo e muito mais flexíveis, razão pela qual rapidamente os substituíram66. Mantinham-se ainda afiveladas lateralmente ou atrás, embora algumas se apertassem também à frente.
Ao longo dos séculos XV e XVI, estas peças alteram-se novamente. Diminui novamente o tamanho das lâminas destas peças, o que implica obrigatoriamente ainda maior número para cobrir todo o tronco. Na segunda metade do século XV já estas peças se encontram repletas de filas de dezenas (às vezes centenas) de pequenas lâminas. A incómoda afivelação traseira dá geralmente lugar à comodidade das fivelas ou atacas dianteiras, em imitação do gibão civil - ao qual, de resto, se assemelham a todos os níveis 67 (Fig. 5). São designadas estas peças ainda como brigandine (em Inglês e Francês), ou já com o novo termo brigantina (em Italiano)68.
Podemos distinguir então três tipologias gerais de protecção segmentada na Europa medieva:
- “aventais” ou sobrevestes de tecido ou couro, relativamente tubulares, fechados nas costas, forrados com poucas lâminas metálicas de relativamente grande dimensão dispostas na vertical ou na horizontal - usadas desde inícios do século XIII a finais do século XIV (cuirie ou coat of plates);
- peças com forro exterior em tecido ou couro com uma boa quantidade de lâminas de dimensão média e recorte anatomizado, em conjunto com lâminas mais pequenas ou malha de aço -usadas desde meados do século XIV até data incerta do século XV (corazzina; brigandine de Tipo 1, primitiva);
- peças cintadas com forro exterior de tecido ou couro, com grande número de reduzidíssimas lâminas metálicas, fechadas geralmente à frente - usadas desde pelo menos meados do século XV até inícios do século XVII (brigandine de Tipo 2, consolidada)69.
Este processo “evolutivo” não foi, claro está, absolutamente linear, nem estas tipologias são tão estanques quanto se desejaria. Foram (como de resto toda a evolução dos armamentos na Idade Média o foi) resultado da experimentação dos armeiros; e a invenção de uma nova tipologia não obrigou ao desuso imediato das tipologias já existentes - que foram sendo gradualmente suplantadas de acordo com as necessidades da guerra e as modas.
Ora, sabendo o processo de evolução destas defesas no resto da Europa - do objecto em si, e das suas diferentes designações -, será que se verifica o mesmo processo em Portugal? Por bandas lusas, a mais antiga menção que temos a respeito de protecções segmentadas - denominadas solhas ou corpos de solhas -data de inícios do século XIV70, embora seja mais do que provável a sua existência em terras de Portugal pelo menos desde finais do século XIII. Sabemos (não obstante a falta de vestígios arqueológicos) como se constituem por dentro - com lâminas metálicas71 - e por fora - com forros de tecido ou couro72 -, o que nos permite afirmar com elevadíssimo grau de certeza que correspondem às fojas castelhanas, às cuirasses francesas, aos coats of plates ingleses.
No que toca a algo comparável a corazzinas ou brigandines primitivas, no entanto, a documentação portuguesa é muda. Entre finais do século XIV e o primeiro quartel do século XV, o período em que a documentação estrangeira dá conta da nova tipologia corazzina/brigandine, a documentação portuguesa continua a reportar-se apenas e só a “solhas”73. Tratar-se-ia aqui de algum atraso na modernização do equipamento militar em Portugal? Muito dificilmente. Sabemos que este período correspondeu, aliás, a uma renovação do nosso arsenal, consequência necessária das várias operações militares do reinado fernandino74 e das empreitadas de D. João I em África75. Não; o que isto nos indica é que o termo solhas seria usado para dois tipos de peça diferente: as solhas antigas (Tipo 1), comparáveis ao coat of plates; e as solhas modernas (Tipo 2), comparáveis às corazzine italianas/primeiros tipos de brigandine (brigandines de Tipo 1). A evolução dos armamentos em Portugal acompanha a evolução dos armamentos no estrangeiro, embora a língua não o faça.
Seria, portanto, expectável que, chegados a meados de Quatrocentos, se verificasse a presença de uma nova peça nos nossos arsenais e na nossa língua - das corazzina/brigandine de Tipo 1 para as brigandine de Tipo 2. E é precisamente isso que a documentação reflecte: um processo de coexistência e posterior suplantação das solhas por uma nova peça - o gibanete. A carta de quitação do Arsenal Régio é um documento fulcral neste aspecto: ao aparecer listado em contraste com as solhas, e demarcado também das demais peças em chapa de aço do Arsenal, o singelo “jubanete” da carta parece assinalar o advento desta nova tipologia a Portugal, algures durante o segundo quartel do século. De então para diante, o gibanete impera no nosso país, tal como no resto da Europa, ou assim o espelha a documentação: durante a segunda metade do século XV, foi das peças de armamento mais prescrita e disseminada, como se viu pelos exemplos já dados. São então gibanetes - emulando “as roupas cintadas e justas ao corpo dos finais do século XV que foram copiadas pelos mestres armeiros”76 - e não solhas, que vemos representados em abundância nas tapeçarias de Pastrana77. São gibanetes que vemos ilustrados em grande pormenor nos Painéis de São Vicente (Fig. 6)78. É com gibanetes que a guarda pessoal de D. João, tal como os acontiados do país, estava obrigada a andar regularmente armada79.
4 - Solhas, Gibanetes e Couraças
Está, portanto, esclarecido o significado de gibanete: equivale, a todos os níveis, ao segundo estágio evolutivo do que a historiografia militar estrangeira designa como brigandine.
Como habitual na Idade Média, a necessidade de conjurar uma nova palavra para um novo objecto não obrigou ao abandono imediato de termos anteriores para objectos similares. Embora muito mais raras, as referências a solhas assomam ainda no final do século XV, ocasionalmente em parelha com gibanetes: em carta de 1485, por exemplo, D. João II manda aos seus coudéis do Porto que obriguem os acontiados da cidade a ter “jubanete ou solhas”80; no mesmo ano, em Montemor-o-Novo, Álvaro Lopes de Chaves regista o desejo do monarca em adquirir “ IIJ corpos de gibanetes” para defesa do reino, mas também “ J corpos de solhas com seus mangotes” para uso no mar81 - por certo no que deverão ser duas das derradeiras referências documentais a esta tipologia. Compreensível, dada a natural semelhança entre as duas peças, que terão coexistido ainda durante algumas décadas.
Mas há um outro termo, surgido ainda dos últimos anos do século XV, que pode ajudar a cimentar as ideias até agora propostas: refiro-me aqui à couraça.
À semelhança do que parece ter sucedido na língua castelhana, com a chegada relativamente tardia do termo coraza em substituição de fojas82, também a adopção de couraça como sinónimo de gibanete, de brigandine - de, enfim, protecção segmentada do tronco - só se verifica tarde em Portugal, mais concretamente na viragem de Quatrocentos para Quinhentos. Como sabemos serem estas peças equivalentes? Os indícios de que dispomos para as couraças são em tudo semelhantes aos do gibanete, cujo lugar na documentação ocupam quase do dia para a noite. O fenómeno de sinonímia explica facilmente as “muitas couraças com clauaduras douradas sobre veludo de todas as cores” - a gibanete by any other name … - armazenadas pelo prior de Santa Cruz de Coimbra em 149083; explica a substituição do termo gibanetes por couraças na Vida e Feitos d’El-Rey D. João Segundo por Garcia de Resende: “este ãno querendo el-rey que em seus reynos ouvessem muitas armas (…) hum grande numero de couraças de muytas sortes (…)”84, em clara imitação da passagem de Rui de Pina que já aqui se transcreveu85; explica os muitos gibanetes em cartas de quitação manuelinas transmutados em couraças nas suas homólogas passadas pela chancelaria de D. João III86. A couraça não parece ter perdido completamente a ligação ao couro do seu significado original ducentista - Afonso de Albuquerque assevera, em carta de 23 de Outubro de 1514, que as melhores armas para uso no continente indiano são couraças, “porque [os soldados] as alevantam com hua pouca de cravaçam e hum par de peles”87. Esta diferença entre materiais poderia aliás explicar as “quinhentas couraças de Genoa com quinhentos copos pera maar”, avaliadas entre mil e quinhentos e dois mil ducados, que D. Afonso V determinava adquirirem-se nos preparativos da guerra contra Castela88 - contrastadas com quinhentos gibanetes com quinhentos capacetes e babeiras, um conjunto total estimado em apenas quinhentos mil reis89. Ainda assim, a documentação atesta à mor parte dos forros exteriores destes armamentos ser feita em pano. Tal como com os gibanetes, a necessidade de “cravaçam de coyraças” continua a ser assegurada por artesãos especializados (latoeiros, regra geral)90, organizados por vezes em centros de produção massificada para servirem todos os cantos do império nascente - como era o caso das taracenas de Santarém91.
Sabemos, ademais, que também as couraças têm uma estrutura interna de lâminas de aço: para além das “folhas de laminas pera couraças”92 que figuram em cartas de quitação de D. João III, os Anais de Arzila, por exemplo, relatam-nos como a “Afonso da Silva, não lhe valendo couraças, nem as laminas d'aço de que érão fortificadas, que a mortal lança não lançase o ferro da outra parte”93, matando-o; ou a forma como a Diogo de Ávila “(…) lhe dérão com um pelouro d'arcabuz que, quebrantando-lhe o couro ou ũa ou duas laminas das couraças, ficou amassado (…)”94. A parecença com o gibão civil também se mantém: veja-se o retrato de Afonso de Albuquerque95; a couraça dourada, com escarcelas, no retrato de D. João de Castro96, ou os guerreiros encouraçados nas tapeçarias que glorificam os seus feitos97.
Menos clara é a confusão entre gibanetes e couraças num relato anónimo da partida do exército português para Marrocos, em 1578: “Não houve homem fidalgo que não comprasse muitos corpos d'armas muito lustrosos (…) couraças de laminas cobertas de velludo e setim de todas as côres com tachas d'ouro e prata, muitas saias de malha, e gibanetes (…)”98. Marcar-se-ia aqui alguma pequena distinção tipológica entre as couraças quinhentistas e os velhos gibanetes quatrocentistas, que não os materiais? É possível99, mas no geral pouco provável à luz dos anteriores exemplos, que não assinalam diferenças entre gibanetes e couraças na viragem do século. Salvo as excepções apontadas (uma delas, ressalve-se, muito tardia), onde ocorre um, não se usa o outro (ao contrário do que se verificou com solhas e gibanetes). A permutação do termo, levada a cabo por razões que o tempo tratou de encobrir100, não parece ter tido qualquer reflexo material.
Como se pode verificar pela seguinte Tabela 1, elaborada a partir dos dados recolhidos neste ensaio, a forma como diferentes documentos históricos usam nomenclaturas distintas para se referirem aos mesmos objectos não se presta às definições precisas e estanques que se querem dos vocábulos no moderno estudo da História. Assim se explica a confusão lexicográfica e historiográfica que perdura há anos em relação aos gibanetes.
5 - Conclusão
Reiterando: até ao presente, a historiografia militar portuguesa tem olvidado o termo gibanete quase por completo, abordando as solhas como sinónimo de couraça e de brigandine em simultâneo101. Este trinómio resultou de uma transplantação para a historiografia portuguesa da equiparação entre foja e coraza estabelecida por Martí de Riquer, a que já se fez referência - prática que a documentação tardo-medieval e moderna portuguesa infelizmente não sustenta. Não só porque solhas podem corresponder tanto a coats of plates como a brigandines, mas porque também um gibanete ou uma couraça, na documentação da época, correspondem a uma brigandine - sem, no entanto, corresponderem às solhas. Estamos aqui perante o mesmo exacto processo de inexactidão lexicográfica que se apontou no início deste ensaio: sem que nenhuma das definições apresentadas esteja totalmente errada, nenhuma se encontra correcta por inteiro. Uma situação nada facilitada, abone-se, pela quase total ausência de vestígios arqueológicos destas peças102.
Repare-se que estes problemas de sistematização não são exclusivos de Portugal. Ainda hoje existe alguma dificuldade, mesmo entre peritos, em assentar concretamente as fronteiras dos termos corazzina ou brigandine103, por exemplo - uma dificuldade parcialmente baseada na dificuldade em conciliar as diversas designações que diferentes línguas e culturas aplicam ao mesmo objecto. Para o caso português, no entanto, espera-se que este trabalho venha ajudar a solucionar uma das grandes incógnitas do estudo do armamento quatrocentista. Apenas devidamente esclarecidos sobre que peça é um gibanete podemos estudar com confiança quem os produz, em que condições se desenrola esse processo de fabrico, que tipo de mercados existem para o gibanete-produto e quais as condições ou implicações socioeconómicas para quem o produz e para quem o adquire. Para além do mais, este conhecimento abre-nos uma série de outras questões: o que levou à cunhagem de um termo totalmente autóctone para este tipo de peças104, em detrimento da adopção de termos estrangeiros (como a maior parte do continente parece ter feito)? Traduzir-se-ia o termo nalguma especificidade portuguesa deste tipo de protecções? Se sim, qual? Estas e outras questões que foram aflorando ao longo desta pesquisa poderão conduzir a novas e produtivas linhas de investigação.
Da mesma forma que não se faz mais aqui do que redescobrir e reenquadrar o significado de termos antigos, também esta associação entre brigandine e gibanete não é uma completa novidade: David Corazzi, no seu Armaria de 1885, teoriza sobre “a brigantina ou brigandina (de origem italiana), a qual nos parece corresponder ao jubanete que Ruy de Pina nos diz ter sido incommendado do extrangeiro para Portugal por D. João II, para armamento da sua cavallaria ligeira ou geneta e das guardas de corpo”, a que se segue uma descrição em tudo coincidente com a peça que já aqui se apresentou105. À falta de sistematização, e à falta de documentação auxiliar que atestasse um uso correcto do termo, caiu também esta ideia de David Corazzi no esquecimento - pelo menos, até hoje.Referências bibliográficas