O fenómeno da escravatura tem sido abundantemente estudado para o período moderno, além disso, é bem conhecida a sua relevância na sociedade e economia da Antiguidade mediterrânica1. Entre estes dois períodos históricos, a Idade Média pouco tem sido associada a este fenómeno2. O livro editado por Filomena Lopes de Barros e Clara Almagro Vidal vem oferecer um importante contributo para o estudo dos vários fenómenos de dependência, que se estendem numa complexa semântica entre a escravatura e a servidão, abrangendo uma cronologia assumidamente medieval, não inocentemente associada à chegada e partida do Islão da Península Ibérica (séculos VIII-XVI). A geografia desta obra coletiva tem esta Península como foco central, mantendo um olhar atento sobre alguns espaços insulares mediterrânicos precisos, onde se destacam a Sardenha e o Chipre, contribuições que concedem ao livro uma dimensão mediterrânica. É um facto que outros espaços mediterrânicos poderiam constar neste livro, mas como em todas as obras coletivas, o somatório das diferentes especialidades dos autores teve grande impacto, e, além disso, seria sempre impossível abarcar todo o espaço geográfico mediterrânico. Por isso, escolhas foram feitas, afigurando-se o conteúdo da obra com uma estrutura clara e bem definida.
As palavras de Clara Almagro Vidal que abrem esta obra são inevitavelmente dedicadas à memória da outra editora, Maria Filomena Lopes de Barros, numa homenagem a que não podemos deixar de nos juntar, a uma historiadora que nos abandonou muito mais cedo do que todos esperávamos e desejaríamos, sendo imensa a sua ausência, tanto como pessoa, como medievalista3. Clara Almagro Vidal descreve, nessas emotivas notas de abertura, como a génese deste livro está intimamente ligada ao workshop “The Ties that Bind: Rethinking Dependences in the Medieval Iberian Peninsula and Beyond”, organizado, em 2018, com o apoio do CIDEHUS, por ambas as editoras do livro aqui abordado. Esta obra resulta, em grande parte, das comunicações apresentadas nesse evento científico.
Na introdução é apresentada a questão de fundo da obra, que se prende com os limites impostos à liberdade nos múltiplos tipos de relações de dependência, onde se destacam a servidão e a escravatura, observando-se as diversas e irregulares escalas e gradações reveladas na análise a estes fenómenos4. O objetivo geral deste livro coletivo é apresentado como uma problematização sobre os significados e rótulos existentes nas fontes medievais e também aqueles que foram e são atribuídos pela historiografia atual às referidas relações de dependência. Pretende-se detetar padrões e dinâmicas comuns, na observação de paralelos e de diferenças entre diversos contextos geográficos e cronológicos.
Os autores da obra são especialistas de grande prestígio ligados a algumas das mais conceituadas instituições académicas de investigação europeias o que concede grande rigor científico e profundidade a este livro coletivo centrado nos limites da liberdade no enquadramento dos vínculos sociais. No primeiro artigo, Raúl González González foca a sua atenção nos fenómenos de dependência do reino das Astúrias, num período cronológico entre o século VIII e o XIII, demonstrando como a escravatura herdada do período romano persistiu no período medieval em coocorrência com outros fenómenos de dependência5.
Cristina de la Puente analisa modelos notariais islâmicos, produzidos no Al-Andalus do século XII, centrando-se nos contratos de manumissão onde os proprietários de escravos negociavam com os libertos condições de pagamento posterior. A ausência de documentação de arquivo para o período foi aqui colmatada com um estudo atento aos referidos manuais notariais6. A obrigação financeira que resultava dos referidos pagamentos posteriores à libertação do escravo criou uma nova forma de dependência em que o antigo proprietário mantinha uma relação de poder assimétrica com o liberto.
A persistência de formas de dependência herdeiras do domínio bizantino, na ilha da Sardenha, entre os séculos XI e XIV, constitui o tema central do artigo de Luciano Gallinari7. Este artigo aborda, em paralelo com as questões de dependência, o papel da mulher na sociedade medieval da Sardenha. A análise sobre as ligações entre a Sardenha e o mundo bizantino concedem a este artigo um importante olhar sobre o Mediterrâneo oriental que enriquece a globalidade do livro.
Centrada no período entre os séculos XIII e XV, Clara Almagro Vidal explora as possibilidades que se abrem sobre as relações de dependência entre as comunidades muçulmanas e as ordens militares no reino castelhano. A autora conclui que todas as relações entre estes dois atores tinham como base o domínio e a coerção, tanto sobre os muçulmanos livres como os escravos. A sobreposição de diversas formas de dependência, que tanto se configuravam em relações individuais, como, noutros casos, em combinações complexas entre vários agentes, revela, segundo a autora, um complexo mosaico nas relações de subordinação entre os muçulmanos e as ordens militares8.
O artigo de Maria Filomena Lopes de Barros é central neste livro, não só na sua posição na organização textual, como sobretudo na sua temática fulcral, a semântica das relações de dependência, e ainda também na larga cronologia abrangida9. A história da semântica dos termos relativos às relações de dependência constitui um aspeto da maior relevância no texto da autora, que não sendo uma especialista em linguística, demonstra saber usar, como poucos historiadores, o potencial dos complexos fenómenos da História da língua portuguesa, para compreender fenómenos históricos de natureza social. As questões semânticas são para esta autora uma ferramenta fundamental que aqui é usada com a mestria que lhe é reconhecida. Aspectos como a desumanização dos escravos, a distinção entre escravo e servo, o papel da mulher, a complexa semântica do termo “mouro”, e os processos de manumissão são considerados à luz de vários exemplos recolhidos nas fontes, abarcando uma vasta cronologia entre o século XII e os meados do XVI, o que contribui para uma leitura informada sobre um assunto pleno de complexidades, nomeadamente, a questão da semântica das relações de dependência. Ancorada em dois processos históricos, o primeiro a conquista cristã e o segundo a expansão portuguesa no Norte de África, Filomena Lopes de Barros escreve um artigo fundamental sobre as relações de dependência, focado no tópico que acompanhou toda a sua carreira científica: o estudo do “mouro” como peça fundamental da sociedade medieval portuguesa.
Em pleno Mar Mediterrâneo, a cidade cipriota de Famagusta constitui-se como o espaço geográfico privilegiado por Nicholas Coureas na sua análise ao fenómeno de manumissão. A cronologia considerada pelo autor estende-se entre os finais do século XIII e o século XV, o que resulta da sua consulta de fontes notariais produzidas nesse período para abordar o referido processo, desenhando perfis sociais dos escravos libertados e descrevendo o processo em si. As razões e condições para a manumissão de escravos são objeto de uma análise fundada na documentação o que permitiu ao autor trazer novo conhecimento sobre o mercado de escravos no referido período cronológico e na geografia indicada10.
O penúltimo artigo do livro versa sobre a distinção entre escravos e cativos no Mediterrâneo ocidental, no século XV11. O objectivo do artigo está bem patente no próprio título do mesmo, “Differentiated conditions nevertheless”, pretendendo Raúl González Arévalo comprovar que os dois conceitos não podem nem se devem confundir. Neste sentido, os argumentos são expostos tendo em conta tópicos centrais como a ideologia cristã, a lei islâmica, e a realidade praticada tanto por cristãos como por muçulmanos na obtenção de cativos e nas diferenças que estes tinham com os escravos. O autor explica de forma fundamentada e precisa que os dois conceitos tem origem e encaminham-se para percursos diferentes, esclarecendo as diferenças entre escravos e cativos, apoiado em documentação produzida no século XV.
Aysu Dincer analisa, no último artigo da obra coletiva, um documento fascinante que consiste num censo sobre a população de camponeses do vale de Marathasa, na ilha do Chipre, produzido em 1549, por ordem do governador veneziano12. Os camponeses que compõem esta fonte distinguem-se por serem dependentes legais dos senhores das terras montanhosas onde vivam, tendo várias limitações à sua liberdade impostas por obrigações que tinham para com os detentores das propriedades, que incluíam pagamento de impostos diversos e a prestação de trabalho obrigatório. A autora explora várias possibilidades de estudo oferecidas pelo censo, mantendo o seu foco nas relações de dependência, sobretudo, notando a longa continuidade no sistema de controlo social destes habitantes da ilha, desde o domínio bizantino até aos meados do século XVI. Esta longa continuidade nos mecanismos de controlo social permitiu que vários aspetos da servidão medieval se mantivessem ainda ativos no sistema social que era imposto aos camponeses dependentes do vale de Marathasa no início da época moderna.
Tal como as editoras afirmam na introdução, esta obra coletiva não tem propositadamente um capítulo de conclusões porque não pretende resolver as questões colocadas aos autores dos vários capítulos, mas sim problematizar e promover o debate científico sobre essas mesmas questões, com o objetivo claro de incrementar o nosso conhecimento sobre as limitações à liberdade e as diversas formas de dependência, e as implicações que estes processos causaram nas sociedades medievais mediterrânicas.
Consideramos que o livro aqui considerado apresenta uma contribuição fundamental para uma temática que tem ainda muito campo aberto para explorar. Esta edição de Maria Filomena Lopes de Barros e Clara Almagro Vidal reúne um conjunto de artigos com grande relevância, não só para o estudo de cada caso em particular, mas também para se obter uma imagem global sobre os diversos e complexos processos que constituíam as várias relações de dependência no mediterrâneo medieval. Forms of Unfreedom in the Medieval Mediterranean abre caminho a uma linha de investigação que conjuga a análise semântica com uma cuidada investigação sobre fontes primárias que permitirá aos especialistas da história social avançar no conhecimento dos sistemas sociais deste período, considerando as suas longínquas origens na antiguidade, e a sua adaptação e continuidade no período moderno. No caso específico deste livro a análise dos processos sociais medievais cumpre realmente uma autêntica ligação entre a antiguidade e a modernidade que poucas obras conseguem alcançar.