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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versión impresa ISSN 2184-0458versión On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.2 Braga dic. 2021  Epub 01-Mayo-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3492 

Artigos Tematicos

Estabelecimento Francês de Apoio e Assistência ao Trabalho e Integração Social e Profissional dos Trabalhadores com Deficiência nas Zonas Rurais. O Exemplo de Habert (Sabóia, França)

1Territoires, VetAgro Sup, AgroParisTech, Institut National de la Recherche Agronomique, Université Clermont Auvergne, Clermont-Ferrand, France


Resumo

Este artigo visa abordar a questão da inclusão através do trabalho e num ambiente rural de pessoas com deficiência psíquica e/ou com deficiência intelectual. Através do exemplo de um estabelecimento de apoio e assistência ao trabalho, o estabelecimento de apoio e assistência ao trabalho Le Habert, localizado numa pequena aldeia rural e montanhosa nos Alpes e que oferece às pessoas com deficiência o trabalho numa quinta, o artigo abordará primeiro a importância do trabalho como meio para as pessoas recuperarem a sua dignidade. Entre o sentimento de utilidade e orgulho em participar no funcionamento de um território, ao estar plenamente envolvido no processo de produção e valorização de um produto, o acompanhamento na quinta permite, para além destas virtudes terapêuticas, uma verdadeira inclusão profissional. Vivendo em casas ou apartamentos nas aldeias circundantes, o alojamento, permitindo o contacto entre pessoas com deficiência e habitantes locais, é também um vector de inclusão social. Contudo, se a ruralidade, devido às oportunidades profissionais e sociais que oferece, pode ser um trunfo para a inclusão, o isolamento e a inacessibilidade geográfica do ambiente rural montanhoso pode ser um obstáculo para as pessoas que não têm necessariamente os meios para serem móveis. Ao oferecer um apoio personalizado à mobilidade, a instituição transforma a exclusão geográfica num bem para a inclusão profissional, social e espacial.

Palavras-chave: França; deficiência; estabelecimento de apoio e assistência ao trabalho; inclusão social e profissional; zona rural

Abstract

This article proposes to address the issue of inclusion through work and in a rural environment of people with mental disabilities and/or intellectual disabilities. Through the example of a French support and work assistance establishment, the support and work assistance establishment Le Habert, located in a small rural and mountainous village in the Alps and offering people with disabilities to work on a farm, the article will first address the importance of work as a means for people to regain their dignity. Between the feeling of usefulness and pride in participating in the operation of one territory, by being fully involved in the process of producing and adding value to a product, accompanying the farm allows, apart from these therapeutic virtues, a real professional inclusion. Living in houses or apartments in the surrounding villages, the accommodation, allowing contact between people with disabilities and local inhabitants is also a vector of social inclusion. However, while the rural setting can be an asset for inclusion because of the professional and social opportunities, the isolation and geographical inaccessibility of the rural mountainous environment can be an obstacle for people who do not necessarily have the means to be mobile. By offering personalised support for mobility, the institution transforms geographical exclusion into an asset for professional, social and spatial inclusion.

Keywords: France; disability; support and work assistance establishment; social and professional inclusion; rural area

Introdução

A fim de promover a inclusão social e profissional das pessoas com deficiência, foram criadas estruturas específicas em França, os estabelecimentos e serviços de assistência por via do trabalho (Etablissements et services d’aide par le travail; ESAT; Baret, 2012; Bocquet, 2015; Lajoumard et al., 2019; Zribi, 2012). Têm a particularidade de definir um ambiente de trabalho “protegido”1, oferecendo ações profissionais e disponibilizando apoio individualizado e adaptado (Fourdrignier, 2012; Paul, 2012). Ao mesmo tempo, os ESAT são estabelecimentos médico-sociais de pleno direito e agentes de produção, estando totalmente integrados no tecido económico dos territórios em que estão localizados (Baret, 2012). Com base na premissa de que o trabalho é um poderoso vetor de dignidade, ao permitir que cada pessoa expresse as suas capacidades, este artigo propõe abordar diferentes formas de inclusão, resultantes de uma assistência médico-social e profissional às pessoas com deficiência nas zonas rurais: a inclusão através do trabalho e a inclusão através da habitação e da mobilidade. Com base nos resultados de uma ação de investigação financiada pela Fondation Internationale de la Recherche Appliquée sur le Handicap (FIRAH; Fundação Internacional para a Investigação Aplicada à Deficiência), associada ao Groupe Agrica, Laser Emploi e Solidel sobre o tema geral “deficiência e áreas rurais”, iremos centrar-nos no exemplo do ESAT agrícola de Le Habert, situado em Entremont-le-Vieux, na região da Saboia, no Maciço dos Alpes, que presta assistência a pessoas com deficiências mentais e/ou intelectuais.

Iremos focar-nos primeiro nas noções de dignidade e inclusão, a fim de compreender até que ponto o trabalho pode permitir às pessoas com deficiência conquistarem a dignidade ontológica de cada ser humano e encontrarem o seu lugar na sociedade. Em segundo lugar, analisaremos as características e particularidades do ESAT Le Habert. Situado na montanha, numa comuna rural com pouco mais de 600 habitantes e gerido por uma associação, oferece, entre outras coisas, a possibilidade de pessoas com deficiências mentais e/ou intelectuais trabalharem numa exploração de bovinos leiteiros, de produzirem queijo e venderem ou valorizarem esses produtos na estalagem da comuna gerida pelo estabelecimento. Após a apresentação da ação de investigação participativa que se baseia em entrevistas semiestruturadas, centrar-nos-emos no valor terapêutico e inclusivo de um apoio em meio rural, permitindo às pessoas acompanhadas conquista rem a sua dignidade, ao vincular o sentimento de liberdade transmitido pela montanha, o sentimento de utilidade e o orgulho de participar no funcionamento de um território.

Ao viver em habitações no coração de várias aldeias perto do ESAT, verificámos que, embora permitindo um equilíbrio entre assistência e autonomia, a habitação era, para além do trabalho, um vetor de inclusão de pleno direito. Embora o ambiente rural, devido às oportunidades de trabalho que oferece e às redes de sociabilidade que permite desenvolver, seja uma mais-valia, a questão da gestão da distância, da mobilidade e acessibilidade neste ambiente escassamente povoado constitui um verdadeiro desafio. Tal como no trabalho e na habitação, as várias medidas de apoio à mobilidade, incluindo o apoio na obtenção de carta de condução, oferecidas pela instituição atuam igualmente como poderosos vetores de autonomia e de inclusão.

Enquadramento Teórico da Investigação: Dignidade e Inclusão Profissional

A 13 de dezembro de 2006, a assembleia geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Recordando no preâmbulo os princípios proclamados na sua carta, adotada na conferência de São Francisco, a 24 de outubro de 1945, insiste na dignidade de todos os membros da família humana. Dignidade é o conceito fundamental desta convenção, que visa promover, proteger e assegurar “o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (Convention on the Rights of Persons With Disabilities, 2006, p. 4).

Contudo, o conteúdo do conceito de dignidade, que é extremamente impreciso, difere de acordo com a disciplina que o aborda (direito, bioética, filosofia, etc.). Na sua aceção original, tal como transmitida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, 1789; “todos os cidadãos, sendo iguais ( … ) são igualmente elegíveis para todas as dignidades, lugares e cargos públicos, de acordo com a sua capacidade, e sem qualquer outra distinção que não seja a das suas virtudes e talentos” (Art. 6)), a dignidade refere-se a uma ideia de prestígio (Bonjour, 2006). Na Declaração de 1948 (Universal Declaration of Human Rights, 1948; “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”), o significado da frase evolui e alarga-se para qualificar o que é considerado sagrado em cada ser humano (Weil, 1949), algo que, como Paul Ricoeur (1988) escreve, “é devido ao ser humano pelo simples facto de ele ser humano” (pp. 235-236). Este conceito da dignidade como um bem comum para todos explica por que razão, muitas vezes na história do pensamento filosófico, o conceito tem sido associado aos mais débeis (Bonjour, 2006): isto é confirmado, por exemplo, pelas obras de Lévinas (1996), Steiner (2005) ou ainda, Schopenhauer (1840/1978). A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convention Relative aux Droits des Personnes Handicapées, 2018) pretende assim ser um primeiro passo para reduzir a desvantagem social sofrida por essas pessoas, como o testemunha o parágrafo do preâmbulo (y):

convictos que uma convenção internacional abrangente e integral para promover e proteger os direitos e dignidade das pessoas com deficiência irá dar um significativo contributo para voltar a abordar a profunda desvantagem social das pessoas com deficiências e promover a sua participação nas esferas civil, política, económica, social e cultural com oportunidades iguais, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. (pp. 3-4)

O conceito de dignidade é mais amplo do que a lei que permite enquadrá-la. Enquanto seres humanos, as pessoas com deficiência têm os mesmos direitos que as chamadas pessoas “capazes”. Portanto, devem, em princípio, gozar da mesma dignidade que é ontológica ao ser humano. Todavia, esta igualdade de dignidade entre as pessoas com deficiência e as chamadas pessoas “capazes” nem sempre é reconhecida pela sociedade. Assim, para competências equivalentes, um empregador preferirá muitas vezes recrutar uma pessoa “capaz” em vez de um trabalhador com deficiência. Mesmo que muitos obstáculos permitam explicar as dificuldades de acesso ao emprego para estes trabalhadores num meio normal (Blanc, 2006), os processos de estigmatização a que provavelmente estarão sujeitos não devem ser negligenciados.

Interpretada como um estigma (Goffman, 1963/1975), a diferença acarreta um fenómeno de rejeição que mantém as pessoas com deficiência afastadas do mundo do trabalho. Não são contratadas porque são consideradas demasiado diferentes, demasiado frágeis, demasiado lentas, incapazes de executar o trabalho exigido. Esta alegada incapacidade é transformada em indignidade: a pessoa não é considerada digna de acesso ao prestígio, à consagração que é o trabalho. Independentemente das dificuldades factuais de acesso ao emprego dos trabalhadores com deficiência, notamos que a sua dignidade é afetada em todos os casos: sem trabalho, como tornar as suas capacidades e utilidade para a sociedade reconhecidas? De facto, se considerarmos a dignidade na ótica de Boni (2006), como o reconhecimento do ser humano - o seu corpo, a sua mente e as suas capacidades -, se não reconhecermos e permitirmos que as capacidades profissionais destes trabalhadores sejam expressas, como podemos devolver-lhes a sua dignidade?

Na literatura científica sobre deficiência, tem sido destacada a ligação entre trabalho, deficiência e dignidade, em particular por investigadores que trabalharam para estruturar um modelo social da deficiência nos anos 80 (Filiatrault, 2016). Para eles, e em particular para aqueles inspirados por teorias materialistas e neomarxistas como Finkelstein (1980), a exclusão social, a indignidade de pertencer à sociedade, está por exemplo diretamente ligada à sociedade capitalista, que as exclui do processo de produção. Este conceito de deficiência tem origem numa organização da sociedade estruturada em torno de pessoas capazes, que tem o efeito de “criar” deficiência ao não deixar espaço para as pessoas diferentes. A emergência do modelo social formou a base dos estudos da deficiência e permitiu uma verdadeira mudança de paradigma no campo científico e, de uma forma mais geral, na forma como a sociedade considera a deficiência. Nos anos 90, surgiram novas posturas de investigação sobre deficiência inspiradas por teorias pós-modernas.

Ao atribuir menos importância aos fatores sociais e materiais, e mais importância aos fatores culturais e ideais, os teóricos pós-modernos dos estudos sobre deficiência centram a sua análise no indivíduo, na sua cultura e na sua experiência vivida. Para eles, a deficiência não é uma disfunção patológica; não é criada por estruturas sociais opressivas, correspondendo antes ao resultado de uma construção cultural e linguística de um conjunto de normas que conduzem ao afastamento de indivíduos considerados diferentes (Gustavsson, 2004). Embora reconheçam a utilidade do modelo social (Shakespeare & Watson, 2001), estas novas posturas criticam o facto de este se concentrar quase exclusivamente na sociedade e na sua organização e esquecer o indivíduo. O modelo social também é criticado por se “concentrar em deficiências físicas e negligenciar outras deficiências e problemas de saúde, tais como deficiências intelectuais, autismo, dificuldades de aprendizagem, surdez e transficiência”2 (Baril, 2013; Filiatrault, 2016, p. 20).

À margem destas divergências teóricas, para além de insistir no papel da sociedade como um fator real que impede o acesso das pessoas com deficiência à dignidade, Ebersold (2009) sublinha que esta conceitualização social da deficiência, transmitida por vários textos e declarações internacionais, tem contribuído para uma emergência não só à esfera pública, como também à esfera política e científica do conceito de inclusão:

o termo “inclusão” está gradualmente a ganhar terreno na linguagem pública, científica e política em vez de integração ou mesmo inserção. A inclusão é um dos objetivos promovidos em 1994 pela Declaração de Salamanca, das regras de igualdade de oportunidades promulgadas pela ONU no mesmo ano, da Carta do Luxemburgo promulgada em 1996 pela União Europeia e, mais recentemente, um dos indicadores adotados pela União Europeia no quadro da agenda de Lisboa para avaliar as políticas públicas (UNESCO, 1994; United Nations, 1994; European Union, 2002) A sua consagração é o resultado de um movimento que mobiliza agentes do mundo associativo e investigadores em torno de um modelo social de deficiência que se recusa a excluir pessoas com uma deficiência, para que estas aceitem a sua diferença. (p. 71)

Contrariamente à integração, que assume que a origem das desigualdades sociais (que a integração visa corrigir) reside nas características intrínsecas do grupo a integrar, a inclusão reposiciona a origem das desigualdades sociais nas condições de acesso, nos obstáculos à participação e nas barreiras existentes dentro do grupo em que se pretende incluir um outro grupo.

Impossibilitados de aceder à sua dignidade, pois são excluídos do mundo do trabalho ou vítimas de estigmatização, já não se trata da inserção de pessoas com deficiência, mas sim da sua inclusão.

Com base na premissa de que a dignidade e a inclusão passam pelo reconhecimento do ser humano e, em particular, das suas capacidades, a abordagem científica que estabelecemos no quadro da ação de investigação a partir da qual este artigo é extraído, estabelece a ligação entre o modelo social da deficiência e os conceitos pós-modernos. A abordagem do assunto através da dimensão geográfica levou-nos a implementar várias escalas de análise. Se bem que o indivíduo, a sua trajetória de vida, a sua vida diária e as suas aspirações estivessem no centro do nosso enquadramento metodológico, não nos concentrámos apenas nos destinos individuais. Tendo sempre presente que a deficiência é uma construção social, a abordagem geográfica permitiu-nos questionar o lugar ocupado por estes indivíduos na sociedade como um todo, no qual eles tentam ser incluídos.

Apresentação do trabalho de campo e metodologia

Le Habert, um ESAT Agrícola no Meio das Montanhas: Produção, Transformação e Valorização do Trabalho Agrícola

Localizado a uma altitude média de 816 m, no coração do Parque Natural Regional de Chartreuse, o ESAT de Le Habert está localizado na comuna de Entremont-Le-Vieux (departamento da Saboia), que conta 651 habitantes distribuídos por 26 aldeias. Trata-se de uma comuna relativamente isolada: apenas uma estrada secundária (D912), que atravessa o vale e a liga a Chambéry, a cerca de 20 km de distância (Figura 1).

Créditos. Eric Langlois

Figura 1 Mapa de localização 

A criação do Le Habert é o resultado de uma reflexão da associação Espoir 739, que se debruçou sobre a questão do acompanhamento e dos cuidados adaptados prestados às pessoas com deficiências mentais. A ideia de combinar a assistência médica e social com a atividade agrícola surgiu a partir do exemplo de um estabelecimento de inserção no departamento vizinho. Logo, a localização do ESAT Le Habert, na comuna de Entremont, é explicada pela presença de três explorações leiteiras que tiveram de cessar a sua atividade por falta de um comprador. A criação do Le Habert ajudou assim a manter a atividade agrícola no território (Figura 2).

Créditos. Mauricette Fournier

Figura 2 Instalações de atividade do estabelecimento e serviço de assistência por via do trabalho Le Habert: queijaria 

A filosofia da associação baseia-se na noção de “a minha vida, a minha escolha, o meu direito”. De igual modo, a assistência e os cuidados prestados baseiam-se no conceito de reabilitação psicossocial. Este último tem por base uma abordagem holística das necessidades da pessoa, induzindo a uma compreensão holística da situação. Este conceito de reabilitação psicossocial tende a reforçar as capacidades de cada pessoa, com o objetivo de satisfação e estabilização social (Bon & Franck, 2018; Boyer, 2011). Assim, os cuidadores partem do princípio que cada pessoa tem capacidades e compe tências que devem ser desenvolvidas, respeitando o indivíduo e incentivando-o a ser o protagonista da sua vida.

Atualmente, o Le Habert consiste num ESAT com uma capacidade de acolhimento para 35 lugares e um centro de acolhimento com 29 lugares. O ESAT apoia pessoas que sofrem de distúrbios psicológicos, mais especificamente esquizofrenia, embora possam ser acolhidos indivíduos com outros distúrbios. Trata-se de uma população maioritariamente do sexo masculino e a idade à chegada situa-se entre os 25 e os 35 anos.

O trabalho de assistência baseia-se principalmente em atividades agrícolas e agroalimentares. É constituído sobretudo pela quinta, onde são criadas 30 vacas da raça local. A produção de leite é processada numa oficina de queijos (produção de queijos, incluindo o Bleu de Chartreuse, criado pelo ESAT, e iogurtes). Os produtos são vendidos aos clientes locais através da loja do ESAT (venda direta) e também em várias lojas no vale. Uma parte dos produtos é reservada ao Auberge des Entremonts, o único restaurante da localidade, que também é gerido pelo ESAT. Por fim, os trabalhadores portadores de deficiência podem prestar serviços agrícolas e/ou ambientais (limpeza de mato, gestão de espaços verdes, poda de vinhas, vindimas, etc.) às coletividades ou empresas locais (Figura 3).

Créditos. Mauricette Fournier

Figura 3 Instalações de atividade do estabelecimento e serviço de assistência por via do trabalho Le Habert: Auberge des Entremonts 

Metodologia: Uma Abordagem Qualitativa

A ação de investigação baseou-se inicialmente em várias entrevistas conduzidas junto de trabalhadores do ESAT, numa base voluntária. Após reuniões durante as quais a equipa lhes apresentou os objetivos do estudo, os trabalhadores do ESAT mostraram um interesse real nesta investigação, o que se refletiu em numerosos intercâmbios informais ao longo do período do inquérito no terreno e no número de pessoas que concordaram em testemunhar e partilhar a sua experiência. Assim, seis trabalhadores da oficina de gado e queijo voluntariaram-se para participar nas entrevistas. São seis homens, com idades compreendidas entre os 24 e os 58 anos (quatro deles estavam na faixa etária dos 45-55 anos). As entrevistas realizaram-se no local de trabalho ou durante os intervalos. No entanto, antes das entrevistas, organizaram-se momentos de partilha a fim de conhecer a vida quotidiana dos trabalhadores e de criar uma ligação (Tabela 1).

Tabela 1 Tabela recapitulativa dos participantes entrevistados 

No plano metodológico, não podemos ignorar a particularidade das deficiências psicológicas e mentais no contexto de um estudo baseado nas palavras das pessoas em causa. De facto, ainda que a deficiência mental tenha impacto nas capacidades intelectuais e de aprendizagem, comunicação, socialização e estabilidade emocional, as pessoas que sofrem de perturbações mentais também se encontram numa situação de “vulnerabilidade” (Muller, 2011). Para estes últimos, esta noção está especialmente associada a uma alteração na sua capacidade de ultrapassar uma situação difícil, à sua relação com os outros e consigo próprios, o que implica uma estabilidade emocional em evolução constante. Também, a fim de evoluir no mundo real, é essencial a noção de espacialidade e ambiente físico e social (Fougeyrollas & Noreau, 2007). O estado emocional tem uma influência significativa na capacidade de viver em sociedade, de executar certas tarefas, de se expressar ou de evoluir dentro de um grupo (Pachoud et al., 2009). Por outro lado, um contexto seguro encoraja a criação de laços e de intercâmbio.

Também, no contexto das entrevistas, foi necessário estabelecer a confiança a fim de facilitar o discurso. No entanto, falar do seu percurso de vida e da sua história mobiliza emoções. A fim de manter um clima de benevolência, as entrevistas foram adaptadas para ter em conta as particularidades inerentes a cada participante. Isto teve o efeito de causar uma perda de informação em determinadas situações, apesar do cuidado toma do em não censurar ou enquadrar excessivamente a troca, a fim de encorajar a expressão de informações.

As entrevistas realizadas com os outros agentes locais destinavam-se a contextualizar os testemunhos dos trabalhadores a vários níveis. Os intercâmbios com os supervisores próximos dos entrevistados (educadores especializados e monitores de oficinas) forneceram informações sobre as medidas implementadas pela instituição para promover a autonomia dos trabalhadores do Le Habert. As reuniões com o pessoal da Maison Départementale des Personnes Handicapées de Savoie, da Communauté de Communes Cœur de Chartreuse, do Parc Naturel Régional de Chartreuse e da Chambre d’Agriculture, permitiram esclarecer como o ESAT está enraizado no seu território e como são estabelecidas as relações com os agentes institucionais (principalmente coletividades), tanto a nível local como de departamento. Finalmente, foram realizadas algumas entrevistas com residentes locais (comerciantes) para averiguar que conhecimentos tinham sobre o ESAT e a imagem que tinham do estabelecimento e dos seus trabalhadores.

Viver nas Montanhas, Trabalhar na Agricultura: Entre Benefícios Terapêuticos e Inclusão na Economia Local e no Território

Na amostra de investigação, cinco pessoas eram da região de Auvergne Rhône- Alpes, duas das quais do departamento da Sabóia. A outra pessoa era de Hauts-de- France, mas já vivia na região antes de entrar na estrutura (Figura 4).

Créditos. Eric Langlois

Figura 4 Origem dos trabalhadores do estabelecimento e serviço de assistência por via do trabalho Le Habert Nota. Cada quadrado representa um trabalhador do estabelecimento e serviço de assistência por via do trabalho. 

Os percursos de vida e as decisões de encaminhamento para o Le Habert, embora diferentes, mostram semelhanças. A maioria das pessoas tem um perfil marcado por vícios (álcool, drogas). Conheceram uma fase de rutura social, por vezes envolvendo atos de autodestruição que levaram à hospitalização psiquiátrica. Contudo, os seis trabalhadores entrevistados tinham todos escolhido vir especificamente para um estabelecimento agrícola. Para três deles, esta paixão pelo setor pode ser explicada pelo facto de serem originários do meio (filho de agricultores, antigo agricultor) e pelo facto de quererem regressar às suas raízes. “Nasci na área ( … ) tenho um emprego, gosto bastante, gosto das minhas tarines4” (Pierre5, trabalhador com deficiência, setembro de 2019).

Para além do bem-estar sentido no regresso a uma atividade profissional, alguns destacaram a dimensão terapêutica do trabalho agrícola, particularmente o contacto com os animais. Este exemplo ilustra o poderoso vetor de dignidade que o trabalho pode representar, permitindo reforçar a autoimagem. “Cuidar de um animal permite-nos projetarmo-nos neles, revemo-nos no animal e tomamos consciência de que também precisamos de cuidar de nós próprios para que a nossa vida corra bem” (Jacques, instrutor de oficina, setembro de 2019).

Foi também realçado o valor terapêutico do trabalho e, mais especificamente, da atividade agrícola, ao ajudar as pessoas a encontrarem o seu rumo e a organizarem o seu quotidiano. Com efeito, para as pessoas que, devido às suas perturbações, podem não ter pontos de referência, o trabalho permite-lhes recuperar um ritmo de vida: reaprender a levantar-se, organizar o seu dia, ter uma meta diária. Para além destes aspetos terapêuticos, o trabalho agrícola na quinta representa um verdadeiro meio de inclusão.

A valorização do trabalho, ao longo do processo de fabrico de um produto, gera um sentimento de utilidade social e de inclusão na economia e território locais. Ao criar, processar e em seguida acrescentar valor aos produtos agrícolas, os trabalhadores sentem que são considerados profissionais por direito próprio, com conhecimentos específicos. De facto, trabalhar na quinta ou na queijaria requer organização e competências técnicas, mas também qualidades como a paciência e a organização.

Há realmente conhecimentos muito técnicos. Temos de produzir o leite de acordo com a comercialização do queijo, pelo que não podemos deixar as nossas vacas parir no inverno. Comemos muito queijo na primavera, a partir da primavera, no verão, com todos os turistas que temos, é sempre a andar, pelo que temos de ter esses partos nessa altura. Portanto, como vê, é bastante técnico e há um trabalhador que trabalha nisto, no planeamento da reprodução. Portanto, o planeamento de reprodução significa quantidade de leite. (Cédric, instrutor de oficina, setembro de 2019)

Para os restantes três, um estágio realizado anteriormente reforçou o seu interesse pelo ESAT e o seu ambiente. Vários entrevistados salientaram o seu interesse pelo ambiente rural, os valores associados ao trabalho agrícola, o sentimento de liberdade que advém de viver numa região de montanha, ou ainda a importância que tem para eles poderem evoluir num ambiente bastante protegido de múltiplas tentações: “longe do álcool e da droga” (José, setembro de 2019);

existem os valores da terra, ( … ) aqui trabalha-se em coisas algo ancestrais. Todos os que aqui estão fizeram a escolha de vir para o campo. ( … ) Pode ser uma forma de alguns reconstruírem as suas vidas noutro lugar, num lugar mais calmo, longe das exigências da cidade. (Educadores, setembro de 2019)

Além disso, as oficinas do ESAT, nomeadamente as que estão relacionadas com a produção e o fabrico, exigem uma certa autonomia por parte dos trabalhadores. Como estas tarefas requerem uma maior autonomia, são-lhes confiadas gradualmente à medida que evoluem, o que contribui para gerar um sentimento de autoconfiança e um sentido de responsabilidade.

Eu não confiava em mim próprio, tinha perdido completamente a confiança em mim. E depois, houve um agricultor no vale que ficou ferido. E o meu instrutor telefonou-me, perguntou-me se eu queria ir em destacamento para substituir esse agricultor que tinha sido ferido. Nessa altura, estava sempre stressado, não tinha qualquer confiança em mim mesmo e, depois, dei por mim sozinho numa quinta. E, bem, até que me desenrasquei. Portanto, eu tinha tudo, tinha de fazer a ordenha, preparar as vacas, trazê-las para dentro, preparar as vacas, ordenhá-las, cuidar do tanque de leite, limpar os postes, cuidar dos bezerros, e fazia tudo isso sozinho. E isso libertou-me de um grande peso que eu tinha dentro de mim. (Mathieu, trabalhador com deficiência, setembro de 2019)

Habitação e Mobilidade: Um Duplo Vetor de Inclusão

A questão da acessibilidade, definida por Laurent Chapelon (2014) como “a maior ou menor facilidade com que [um] lugar pode ser alcançado a partir de um ou mais lugares, por um ou mais indivíduos suscetíveis de viajar utilizando todos ou alguns dos meios de transporte existentes” (para. 1), revelou-se crucial nesta investigação, qualquer que seja a escala de análise.

A noção de acessibilidade em zonas escassamente povoadas leva-nos, antes de mais, a questionar a configuração do território. De facto, o ambiente rural implica frequentemente uma distância relativa entre lugares, podendo levar a uma maior dificuldade de deslocação. As zonas rurais caracterizam-se também frequentemente pela ausência de infraestruturas (vias de comunicação) ou de serviços (transportes públicos) que permitam a mobilidade. Para designar o potencial de acesso a determinado lugar, Richer e Palmier (2012) referem-se à “acessibilidade territorial”. O meio rural em geral, mais especifica mente a área onde está localizado o ESAT Le Habert, tem um baixo nível de acessibilidade, dada a sua configuração espacial (distância, falta de infra-estruturas e serviços).

Se a acessibilidade depende das características do território e de uma oferta de mobilidade que permita transcender os obstáculos geográficos, depende também dos intervenientes que desejem deslocar-se e ser móveis. Enquanto a “acessibilidade dos territórios” é um potencial espacial, a “acessibilidade das pessoas” é um potencial social, que remete para as características dos intervenientes, a sua capacidade “individual ou coletiva de serem móveis no espaço” (Richier & Palmier, 2012, p. 431).

Reposicionar a noção de acessibilidade nas zonas rurais no contexto da deficiência mental leva a questionar a capacidade das pessoas de aproveitarem a oferta de mobilidade e de a utilizarem para realizar as suas deslocações. De facto, as pessoas apoiadas pelo ESAT Le Habert, para além de viverem num território com fraca acessibilidade (acessibilidade de territórios), não têm todas a capacidade de utilizar uma oferta de mobilidade para se deslocarem (acessibilidade de pessoas). Por exemplo, nem todas têm carta de condução e veículo, e não têm a mesma liberdade de circulação. Enquanto algumas se deslocam autonomamente, outras, dependentes dos serviços de transporte existentes, veem-se por vezes impossibilitados de alcançar de forma autónoma lugares que não são servidos por esses serviços.

O conceito de motilidade reflete assim, perfeitamente, a interação entre acessibilidade, capacidade e autonomia. A noção de mobilidade proposta por Kaufmann e Jemelin (2004) para descrever e analisar o potencial de mobilidade corresponde “a forma como um indivíduo ou um grupo adota o âmbito de possibilidades em termos de mobilidade e o utiliza para desenvolver projetos” (p. 5).

Tendo em conta os seus problemas pessoais e ainda uma acessibilidade débil intrínseca ao ambiente rural, a abertura ao trabalho possibilitada pelo ESAT contribui para reforçar a motilidade dos seus trabalhadores. Com efeito, ao ajudá-los a adquirir uma carta de condução, o estabelecimento contribui para aumentar o seu “âmbito de possibilidades”, reduzir a sua dependência dos serviços existentes e, em geral, reforçar a sua autonomia (Chavaroche, 2014).

Numa perspetiva mais ampla, aumenta a sua capacidade, a sua “liberdade substancial para alcançar diferentes combinações de funcionamento” (Nussbaum, 2011, p. 39). Conceitualizada por Sen (1985), e depois por Nussbaum (2006, 2011), a noção de capacidade, tal como a motilidade, mas numa escala mais ampla, torna possível expressar a interação entre as capacidades de uma pessoa e as possibilidades oferecidas pelo seu meio. Um aumento da capacidade expressa não só um reforço das capacidades individuais, como também um aumento das liberdades ou oportunidades criadas por uma combinação de capacidades pessoais e um ambiente político, social e económico. Ao agir sobre o ambiente das pessoas com deficiência e ao estimular as suas capacidades, os ESAT rurais permitem mais do que apenas o acesso à dignidade: dão às pessoas ali acompanhadas a possibilidade de desfrutar de uma maior liberdade de ação e de escolha.

Viver de Forma Independente: A Inclusão Social Através da Habitação

A maioria dos trabalhadores do Le Habert vive numa das 13 unidades habitacionais que compõem a casa de alojamento dividida do ESAT, distribuídas pelas comunas de Entremont-le-Vieux, na Saboia (três casas e três apartamentos) e Saint-Pierre- d’Entremont, em Isère (sete apartamentos). As casas, que acolhem um total de 14 trabalhadores, são alugadas a proprietários privados. Três apartamentos no centro da aldeia, também arrendados em regime de aluguer simples (a um locador social e à câmara municipal), fornecem alojamento para nove trabalhadores (dois apartamentos alojam quatro pessoas cada e um apartamento aloja apenas uma pessoa). Além disso, a comuna de Saint-Pierre-d’Entremont (Isère) arrenda seis apartamentos individuais ao ESAT de Le Habert, ao abrigo de um acordo social. Finalmente, um último apartamento, alugado a um proprietário privado, permite a dois trabalhadores partilharem um apartamento em Saint-Pierre d’Entremont.

A configuração do alojamento em pequenas unidades habitacionais permite promover a autonomia e a inclusão no ambiente normal. De facto, as várias pequenas unidades, espalhadas pelo território, facilitam a integração na sociedade. Esta configuração incentiva os trabalhadores a mostrarem iniciativa e autonomia nos atos da vida quotidiana. São então capazes de levar uma vida profissional e social tão independente quanto possível, podem aceder a serviços e lojas na comunidade e participar em atividades associativas.

No entanto, os trabalhadores do ESAT estão espalhados por toda a região. Na comuna de Entremont-le-Vieux residem 28 pessoas, dividida entre a cidade (21 trabalhadores), Les Perrets, na periferia da comuna (cinco trabalhadores) e La Plagne, na direção de La Ferme (dois trabalhadores). Além disso, 10 trabalhadores vivem a 5 km do ESAT: dois em Saint-Pierre-d’Entremont (Saboia) e seis na vila de Saint-Pierre-d’Entremont (Isère). Esta dispersão de trabalhadores levanta a questão da acessibilidade e da mobilidade, que parecem ser essenciais, tanto para as deslocações diárias ao seu local de trabalho, como para o acesso às várias lojas e serviços e para a participação na vida social (Tabela 2).

Tabela 2 Distribuição residencial dos trabalhadores do estabelecimento e serviço de assistência por via do trabalho 

Nota. A tabela foi construída a partir de dados coletados junto da gestão da ESAT Le Habert, em 2019

Deslocar-se de Forma Independente: Inclusão Espacial Através da Mobilidade

Para chegarem do seu local de residência ao ponto de recolha, situado em Entremont-le-Vieux, onde um sistema de vaivém organizado pelo ESAT serve os locais das oficinas, os trabalhadores têm várias possibilidades: transporte público criado pelo Conselho Regional (rede expresso Belle Savoie), boleia individual ou através do sistema de partilha de trajetos Rézo Pouce6, partilha de veículo. No entanto, estas soluções não satisfazem todas as necessidades de viagem dos trabalhadores do ESAT (consultas médicas numa grande cidade, compras em certas lojas, visitas a familiares, passeios ou férias fora do maciço, etc.). O aumento do seu potencial de mobilidade (motilidade) implica necessariamente o reforço da sua independência.

À sua chegada a Le Habert, a maioria dos trabalhadores não tem (ou já não tem) carta de condução, pelo que a obtenção da carta é uma prioridade na política de apoio à estrutura, através da implementação de projetos individualizados de acesso à mobilidade. A assistência pode traduzir-se por uma ajuda na preparação para o exame de condução, o contacto com escolas de condução em Chambéry ou apoio financeiro (até metade do custo da carta de condução). Isto resultou numa taxa de sucesso de 80% até à data, dentro da instituição. Como resultado, quatro pessoas no nosso painel têm agora uma carta de condução e três utilizam o seu próprio automóvel. Os outros três continuaram a pedir boleia, a partilhar o carro ou a utilizar transportes públicos sempre que possível.

Incentivamo-los também a deixar o vale. A irem a Chambéry ( … ) a obterem a carta de condução ou a serem autónomos nas suas viagens ( … ) há quem tenha motociclos, automóveis sem terem carta, porque é o local que gera tudo isto. (André, educador, setembro de 2019)

“Pare, tudo ( … ) Aos sábados arranjo forma de ir a Chambéry” (Thomas, trabalhador com deficiência, setembro de 2019).

Estou a tirar a minha carta de condução. (Le Habert) não a financia, mas reembolsam-me uma, metade das lições que tenha concluído ( … ) de momento, é a pé, o veículo agrícola e, depois, o autocarro, quando tenho de ir para a escola de condução e, depois, aos sábados. (Vincent, trabalhador com deficiência, setembro de 2019)

Foi aí que encontrei C, que vai à piscina e que está contente, e há outro senhor que vai à piscina e, como S tem um carro, talvez eles possam, depois de algumas vezes como esta, irem juntos, irem ambos de carro. (André, educador, setembro de 2019)

Esta independência adquirida ou recuperada durante a passagem pelo ESAT permite aos trabalhadores desenvolverem a capacidade de organizarem as atividades da sua vida quotidiana e assumirem o seu ambiente de vida. Esta autonomia representa também um meio de obter mais facilmente um acesso à inserção profissional e social (Figura 5).

Créditos. Eric Langlois

Figura 5 Locais de residência dos trabalhadores e deslocações para o estabelecimento e serviço de assistência por via do trabalho  

Conclusão

Ao permitir que as pessoas com deficiência e que se encontram excluídas do mundo do trabalho exerçam uma atividade profissional, os ESAT oferecem-lhes a oportunidade de recuperarem a sua dignidade, reconhecendo plenamente as suas capacidades. Localizado num ambiente rural de montanha, a uma altitude superior a 800 m, o exemplo do ESAT Le Habert é particularmente interessante. A estrutura oferece a inclusão às pessoas com deficiências mentais e/ou intelectuais, através do trabalho agrícola que está totalmente enraizado no seu território. Tendo contribuído para a manutenção de três explorações leiteiras, o trabalho de valorização e processamento da produção, realizado pelas pessoas apoiadas, gera valor acrescentado para o território.

Se, por um lado, o seu trabalho é benéfico para a região (reforço do tecido económico, manutenção de uma paisagem aberta) ou para os clientes ou pessoas que vêm comer ao albergue, por outro lado, o ambiente da ESAT constitui também uma mais-valia para as pessoas apoiadas e para a sua inclusão. Com efeito, o exemplo de Le Habert mostrou que a inclusão de trabalhadores num território e num sistema de produção, transformação e valorização agrícola, contribuía para aumentar a autoconfiança e gerar um forte sentido de utilidade social. Pudemos também observar que, tendo em conta as perturbações das pessoas apoiadas, o isolamento do meio rural, o sentimento de liberdade oferecido pelas montanhas e também as exigências do trabalho, os seus constrangimentos e o sentido de responsabilidade que implica, são todos elementos que, atuando como instrumento terapêutico, contribuem para o bem-estar das pessoas apoiadas.

Para além do trabalho, o estabelecimento oferece alojamento em pequenas unidades habitacionais espalhadas por diferentes aldeias, o que, embora mantendo o acompanhamento e o apoio da ESAT, garante uma real autonomia e a inclusão na vida social local através da habitação. Embora o ambiente rural seja um trunfo para todos os elementos que acabámos de mencionar, a sua baixa densidade populacional e a falta de mobilidade coletiva podem constituir um obstáculo. Ao ajudar os trabalhadores a obterem a sua carta de condução, a instituição trabalha no sentido da sua autonomia e do reforço do seu potencial de mobilidade (motilidade). Para além de permitir a inclusão através do trabalho e da habitação, a instituição trabalha para assegurar a inclusão espacial de cada um.

Agradecimentos

Gostaríamos de expressar os nossos sinceros agradecimentos à direção do ESAT Le Habert, que nos abriu as portas do seu estabelecimento e, sobretudo, a todo o seu pessoal, gestores. como trabalhadores com incapacidades, que aceitaram tomar tempo para responder às nossas perguntas. Não nos esquecemos, evidentemente, da Fundação Internacional da Investigação Aplicada sobre a Deficiência que, associada ao Grupo Agrica, à Laser Emploi e a Solidel, nos deu a honra de reter a nossa proposta no seu convite à apresentação de projetos sobre deficiência e meio rural.

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1Sobre a implementação progressiva do trabalho “protegido” em França, ver também Escuriet et al. (2021).

2O transcapacitismo é caracterizado por Baril (2013) como a “ necessidade, para uma pessoa sem deficiência, de transformar seu corpo para ficar em situação de deficiência” (p. 144).

3Originalmente, a associação era chamada de União Nacional das Famílias e Amigos dos Doentes e/ou Portadores de Deficiência Psíquica (Unafam). Criada em 1963, foi posteriormente rebatizada de Espoir 73, uma associação departamental que administra quatro outros estabelecimentos especializados.

4A tarentaise ou tarine é uma vaca leiteira do Vale Tarentaise em Sabóia.

5Os primeiros nomes foram alterados para tornar as pessoas anónimas.

6A Rézo Pouce é uma sociedade cooperativa de interesse coletivo

Recebido: 17 de Junho de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

Tradução: The Language Room

Meddy Escuriet é pesquisador da UMR Territoires (França), fez um curso de geografia e planejamento regional na Universidade de Clermont-Auvergne, que o levou a defender em 2021 uma tese de doutoramento sobre “Geografia e Vivência Para Identificar Situações de Deficiência: Abordagem Ambiental da Deficiência e Avaliação de um Sistema de Apoio Médico-Social”. Está muito envolvido no pensamento contemporâneo sobre a deficiência, tem também participado em programas de investigação como Haccescol, sobre o acesso à educação e Equipar os Territórios Para Permitir Mais Opções de Viver e Trabalhar com Deficiência no Meio Rural. Ele é atualmente um treinador intersectorial no Institut de Travail Social de la Région Auvergne. Email: mescuriet@gmail.com Morada: UMR Territoires, MSH, 4 rue Ledru, 63057 Clermont-Ferrand Cedex, France

Mauricette Fournier é doutorada em geografia. É professora universitária e investigadora no UMR Territoires e na Universidade Clermont-Auvergne (França), onde tem a responsabilidade do mestrado em inovação social e desenvolvimento territorial. A sua investigação incide principalmente na geografia social e cultural e nas questões de desenvolvimento local. O seu interesse pelos desafios ligados às situações de deficiência levou-a a dirigir nestes últimos anos dois programas de investigação sobre esta temática: Haccescol, programa da Maison des Sciences de l’Homme de Clermont, relativo ao acesso à educação, e Equipar os Territórios Para Permitir Mais Opções de Viver e Trabalhar com Deficiência no Meio Rural, investigação-ação realizada para la Fundação Internacional para a Investigação Aplicada à Deficiência. Email: mauricette.fournier@uca.fr Morada: UMR Territoires, MSH, 4 rue Ledru, 63057 Clermont-Ferrand Cedex, France

Sophie Vuilbert, após formação inicial e várias experiências profissionais na área médico-social, retomou os estudos em geografia e planeamento regional. Detentora do mestrado, participou como engenheira-investigadora no programa Equipar os Territórios Para Permitir Mais Opções de Viver e Trabalhar com Deficiência no Meio Rural. Membro da UMR Territoires, iniciou em 2021 uma tese de doutoramento sobre estabelecimentos franceses de apoio e assistência ao trabalho na Universidade de Clermont-Auvergne (França). Email: sophie.vuilbert@doctorant.uca.fr Morada: UMR Territoires, MSH, 4 rue Ledru, 63057 Clermont-Ferrand Cedex, France

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