Enquadramento 1
Recentemente, numa conversa com colegas de longa data, alguém evocou uma ou outra figura histórica proeminente que tinha logrado alcançar renome vindo de uma origem muito modesta. Ficámos a enumerar vários casos semelhantes de promoção em sociedades com uma rígida estrutura social onde não teria sido fácil fazer uma tal escalada. Alguém disse, então, que seria interessante saber como o tinham conseguido, mas, entretanto, a conversa já tinha derivado para outros temas. Alguns dias mais tarde, aconteceu pensar novamente naquela questão e lembrei-me de um trabalho que fiz há muitos anos sobre os intelectuais liberais em Portugal na época de passagem da monarquia absolutista para a monarquia constitucional (abarcando o período da revolução de 1820 à vitória do regime liberal e sua implantação e evolução pós 1834 até meados de oitocentos; Santos, 1985).
Fui revisitar esse trabalho à procura de algumas histórias de vida que, tanto quanto me recordava, eram ilustrativas precisamente de processos de promoção social não raramente bastante inesperados - caso de indivíduos nascidos em aldeias remotas, filhos de pais em condição social desfavorecida, eles mesmos com formação escolar modesta, tendo, no entanto, percorrido trajectórias correspondentes ao que vulgarmente se designa como “subir na vida” (um exemplo: Rodrigues Sampaio, nascido em 1806, em S. Bartolomeu do Mar, filho de um pequeníssimo proprietário rural, com frequência apenas de aulas de Teologia e de Humanidades num convento de Braga, iria desempenhar várias funções de considerável importância nos meados da década de 30. Ao longo da sua agitada carreira política, sempre associada à prática do jornalismo, acabaria por ocupar várias vezes o cargo de ministro, entre 1870 e 1881, chegando neste último ano a ser presidente do Conselho de Ministros cumulativamente com o lugar de par do reino para que fora nomeado em 1878).
À medida que fui relendo o referido estudo, verifiquei que foi com ele que iniciei o gosto pela utilização das histórias de vida para analisar determinados processos sociais, método que só poderia vir a retomar concluídas duas décadas em projectos de pesquisa de outra natureza. Passei então a concentrar-me numa única história escolhida para ilustrar a emergência e desenvolvimento de processos de confronto com diferentes situações - de ostracismo (caso William Beckford); de mudança revolucionária (caso do marquês de Fronteira); de paixão proibida (caso Carlos/Maria Eduarda em Os Maias); de viagem heróica (caso Serpa Pinto; Santos, 2014; 2017; 2020).
Para uma reflexão sobre o processo de promoção social a que me levara a referida conversa, pareceu-me que podia ser útil recorrer uma vez mais ao dito método das histórias de vida e recuperar parte da enorme informação recolhida para o trabalho sobre os intelectuais do liberalismo, repensando-a agora no sentido de analisar diferentes trajectórias de “subida na vida” e chegar a uma síntese sobre a configuração desse processo de mobilidade social em situações desfavoráveis.
Informações prévias
Antes de avançar no sentido a que aludi nas linhas anteriores, há que dar algumas informações prévias sobre o meu citado trabalho sobre os intelectuais de Oitocentos. Ele assentou num conjunto-base de 50 casos cuja escolha foi condicionada pelo montante da respectiva informação disponível que pude encontrar. Este conjunto integrou parte de uma intelligentsia que de várias formas desempenhou um papel activo no processo de transformação da sociedade portuguesa na primeira metade de Oitocentos. Um parenteses para um breve esclarecimento sobre a utilização neste texto do termo intelligentsia que importei do meu estudo inicial e que, até certo ponto, tem um sentido aproximado ao dos “intelectuais orgânicos” de Gramsci, pelo menos na medida em que aquele contingente da intelligentsia portuguesa também correspondia a grupos sociais excluídos (pelos poderes da monarquia absolutista) e estava empenhado em introduzir uma nova forma de pensamento e de acção (as ideologias do liberalismo).
Voltando aos 50 casos acima referidos, estes foram distribuídos por três tipos com diferente situação social de partida (resumindo - tipo 1: situação desfavorecida; tipo 2: situação média; tipo 3: situação privilegiada) e localizados em dois diferentes momentos que distingui para o período de tempo considerado, grosso modo: num 1.º momento - casos dos que já tinham atingido a idade adulta antes de 1834 (adoptado o marco dos 18 anos); num 2.º momento - casos dos que a atingiram a partir dessa data. Uma vez que o que me interessa agora é considerar o processo de promoção social, focar-me-ei nos tipos 1 e 2 (excluindo os da situação de partida privilegiada), sem deixar de levar necessariamente em conta os dois momentos indicados, sendo que, conforme adiante se verá, não é indiferente essa localização temporal para as trajectórias e estratégias dos casos dos dois tipos aqui analisados.2
Como ponto de partida, retomo uma ideia que avancei nas páginas finais do meu estudo onde considerei que para a constituição da figura de intelectual do liberalismo concorriam: a) as oportunidades à partida; b) as experiências ao longo das trajectórias pessoais; c) as possibilidades de promoção face às mudanças sociais. Estes vão ser os três vectores (necessariamente indissociáveis entre si) a reter na minha presente reutilização do citado estudo através de um novo olhar que se encontra focado: 1) na selecção de alguns dos dados apresentados em cada uma das quatro partes que o integram (primeira parte: Origens e Trajectórias Sociais; segunda parte: Formação; terceira parte: Profissionalização; quarta parte: Consagração); 2) na (re)análise dos dados seleccionados, orientando-a, como inicialmente ficou dito, para a identificação de diferentes modalidades de trajectórias promocionais; 3) e, finalmente, numa síntese das componentes constitutivas do processo promocional em causa, no quadro do que se entenderá como um “mundo de possíveis” para o período consi- derado.
Primeiro vector: oportunidades à partida
Avançando para o primeiro dos três vectores acima referidos - oportunidades à partida - constata-se que essas oportunidades são mínimas no que respeita aos casos do tipo 1 e bastante reduzidas para os do tipo 2. Os primeiros, na sua maioria, nasceram em localidades afastadas das cidades e com pais que tinham profissões muito modestas (para dar alguns exemplos: alveitar - o pai de Cândido José Xavier; artesão - o de Silvestre Pinheiro Ferreira e de Vieira da Silva; barqueiro - o de Manuel Fernandes Tomás) ou eram pequenos proprietários rurais (o pai de Rodrigo da Fonseca, de Rodrigues Sampaio, de Gomes de Amorim) ou pequenos comerciantes (o pai de Lopes de Mendonça). Entre os do tipo 2 há um maior número de casos nascidos em Lisboa ou em outras cidades (Porto, Coimbra), sendo os pais, na sua maioria, também pequenos proprietários rurais (o pai de Vicente Ferrer de Neto Paiva, o de Oliveira Marreca, o de Júlio César Machado) mas, pelo menos nalguns casos, essa condição era acumulada com outras profissões já com alguma exigência de escolaridade (por exemplo, o pai de Vicente Ferrer: capitão; o de Joaquim António de Aguiar: cirurgião; o de Alexandre Herculano, Bulhão Pato e Rodrigo Paganino: funcionários públicos; o de Mendes Leal: mestre de música). Acresce que, entre os casos de ambos os tipos, se encontram alguns que ficaram órfãos de pai muito cedo, o que terá agravado a situação das respectivas famílias e concorrido para diminuir ainda mais as oportunidades de partida.
Por vezes, o facto de haver uma figura local com algum destaque disposta a dar apoio a filhos de famílias de modestas condições, podia tornar menos minguadas aquelas oportunidades sobretudo para casos do tipo 1. Um tal apoio implicava, em regra, uma recomendação para os protegidos serem encaminhados para a carreira eclesiástica, o que era frequente no 1.º momento considerado. Isso não significava que os protegidos viessem efectivamente a seguir a dita carreira como aconteceria nalguns casos do tipo 1, que viriam a ter trajectórias acentuadamente promocionais, chegando a ministros e pares do reino (por exemplo, Rodrigo da Fonseca e Silvestre Ribeiro), não tanto devido àquela oportunidade de partida, mas antes a outras oportunidades associadas à conjuntura política de então. Isto ver-se-á adiante (de avançar desde já a ligação à Maçonaria que iria ser um importante instrumento de mobilidade ascendente para alguns desses jovens desfavorecidos).
Segundo vector: experiências ao longo das trajectórias pessoais
Passando ao segundo vector - experiências ao longo das trajectórias pessoais - julgo ser de destacar aqui a importância de dois factores: 1) a aprendizagem na prisão e no exílio e 2) a intervenção na “regeneração” do país.
Em relação ao primeiro, um factor como a prisão e o exílio parece, à partida, demasiado negativo para poder favorecer experiências e aprendizagens úteis a uma futura progressão nas carreiras dos que lhes ficaram sujeitos. No entanto, essas situações proporcionaram a aquisição de uma rede de relações e de conhecimentos que funcionariam vantajosamente ao longo das suas trajectórias. O tempo passado na prisão nas fases de domínio miguelista reuniu perseguidos de muito diferentes condições sociais, o que noutras condições teria sido difícil acontecer. Essa proximidade facultou aos socialmente desfavorecidos o relacionamento com figuras destacadas do liberalismo através do qual puderam, nalguns casos, adquirir um melhor conhecimento das novas ideias que iriam mudar o Portugal da segunda metade de Oitocentos e estabelecer relações/amizades com pessoas capazes de os ajudar mais tarde nas respectivas carreiras.
Convoco uma vez mais o caso de Rodrigues Sampaio que, preso muito jovem, com uma escolaridade muito limitada e reduzida informação política, receberia de alguns ilustrados companheiros de prisão ensinamentos que o abriram para uma visão do mundo inspiradora das suas futuras leituras e dos seus futuros escritos revolucionários; por outro lado, essas relações valer-lhe-iam, depois da vitória liberal, convites para vários cargos importantes.
O exílio, por sua vez, funcionou, frequentemente, como oportunidade para, em Inglaterra e sobretudo em França, frequentar cursos (dois exemplos: Silvestre Ribeiro, um caso do tipo 1, frequentou em Paris as aulas de História de Guizot, as de Filosofia de Cousin, as de História Literária de Villemain; Oliveira Marreca, um caso do tipo 2, fez estudos de Economia também durante o exílio) e ainda para usufruir de uma larga oferta cultural com pouca ou nenhuma despesa. São várias as memórias de exilados que a isso aludem, dando conta de terem frequentado gabinetes de leitura, aulas públicas sobre várias áreas científicas, museus, etc. - oportunidades que, como também registam, não eram, lamentavelmente, possíveis em Portugal.3
Todavia há que não esquecer que entre os exilados (no meu conjunto-base os exilados situam-se no contingente do que atrás chamei o 1.º momento) existiam diferenças que não deixaram de ser mais penalizadoras para uns do que para outros. Não sendo de retomar aqui a análise realizada sobre o fenómeno do exílio nas suas duas grandes vagas migratórias (de 1823 e de 1828; Santos, 1988, pp. 102-118),4 não deixa, porém, de ser necessário identificar alguns aspectos relevantes para a temática da promoção social, questão fulcral do presente texto. Neste sentido são de destacar diferenças quanto ao estatuto social; idade e posição nas carreiras; orientação política e vaga migratória em que se localizavam.
Entre os exilados da primeira vaga de 1823, muitos tinham já uma destacada carreira pública e actividade política vinda do início do constitucionalismo; entre os da segunda vaga de 1828, uma grande parte era constituída por estudantes e voluntários do Batalhão Académico. De recordar que alguns elementos da primeira vaga já tinham emigrado anteriormente, no início do século XIX, perseguidos pelas suas ideias “perigosas” e pela pertença ou simpatia pela Maçonaria - a facção apostólica apelidava-os de legiões da trolha e pedreirada. Agostinho de Macedo, em 1821, recomendava que fossem exterminados com “o maravilhoso instrumento de que [a Espanha] se serviu para dar cabo dos Pedreiros, que vem a ser o jogo em que se ganha só com três paus [a forca]” (citado em Braga, 1895, IV, p. 419). Esses emigrados tinham regressado a Portugal depois da Revolução de 1820, muitos deles investidos em cargos importantes que tiveram de abandonar aquando do miguelismo, obrigados a exilar-se de novo, uns na vaga de 1823 e outros na de 1828.
Ao que parece, a predominância de gente jovem e pouco qualificada nesta última vaga, teria levado Palmela a emitir um Ofício (Londres, 10 de Outubro de 1828) em que declarava: “Não estamos em tempo de admitir estudantes, nem de estar a pagar viagens para cá e para lá sem motivo suficiente”. Segundo o estabelecido pela Regência, a prioridade para a atribuição dos subsídios aos emigrados obedecia à seguinte ordem: 1.º diplomatas identificados com a causa liberal; 2.º militares obrigados a retirar pela Galiza; 3.º funcionários públicos demitidos ou demissionários - o que leva de novo para as diferenças entre os exilados acima enunciadas. Estas diferenças repercutiam-se nas suas condições de vida no exílio (por um lado, o caso do bem instalado duque de Palmela e, no extremo oposto, o caso dos emigrados que se acotovelavam nos barracões de Plymouth) e que eram também manifestas nas suas posições políticas (dos liberais moderados como o referido Palmela ou o marquês de Fronteira aos defensores do poder popular como Passos Manuel). Havia conflitos frequentes em grande parte motivados pela arbitrariedade com que se atribuíam os subsídios aos exilados, o que se repercutia no jornalismo do exílio, um meio muito utilizado que, aliás, não funcionava apenas como expressão mais ou menos agressiva de denúncias e polémicas, mas igualmente como veículo de informação e de contacto entre os que estavam no exílio e os que permaneciam em Portugal (isto sobretudo na primeira vaga migratória).
Se, depois da vitória liberal, algumas das divisões e inimizades do exílio foram superadas, nem sempre isso aconteceu, sendo frequentes os obstáculos que as intrigas e a concorrência pelos novos cargos levantavam ao desenvolvimento das carreiras num clima de grande instabilidade dos governos. Acresce que o clientelismo entretanto criado ficou, por vezes, sem a esperada resposta, dando lugar ao descontentamento de alguns que sentiam que tinham concorrido para dar a liberdade ao seu país e, por isso, sofrido prisões, exílios e dificuldades de toda a ordem, sem que vissem “devidamente” reconhecido todo esse esforço - para estes casos a promoção social deixaria muito a desejar. De notar que, em relação aos casos de tipo 1 e 2 do 1.º momento, se nem todos os exilados tiveram uma carreira política altamente auspiciosa (desempenhando sucessivos cargos como ministros e sendo nomeados pares do reino), no entanto muitos lograram desempenhar cargos de algum relevo. Também para isso não deixaria de contribuir o capital social de relações adquirido na prisão e no exílio assim como o capital cultural adquirido através dos estudos realizados durante esse mesmo exílio (caso do já referido Oliveira Marreca que iria ser administrador da Imprensa Nacional, bibliotecário-mor da Biblioteca Nacional de Lisboa, guarda-mor do Arquivo da Torre do Tombo, sócio da Academia das Ciências, etc.; caso de Alexandre Herculano que iria ser director das Bibliotecas da Ajuda e das Necessidades, presidente da Câmara de Belém, vice-presidente da Academia das Ciências, etc.) ou adquirido ainda através da frequência e da conclusão de um curso superior depois do regresso a Portugal (caso de Luz Soriano que terminou a sua formatura em medicina na Universidade de Coimbra em 1842, aos 40 anos - onde, aliás, só se tinha conseguido matricular já com 23 anos, enquanto aluno da Casa Pia - e que iria ser chefe da Secção da Marinha, vogal do Conselho Ultramarino, deputado em várias legislaturas, etc.).
Continuando a considerar o vector sobre as experiências ao longo das trajectórias pessoais, importa agora passar da análise do 1.º factor (a aprendizagem na prisão e no exílio) para a do 2.º factor (a intervenção na “regeneração” do país). Nessa intervenção, as lutas à volta das políticas de reforma do ensino superior iam ocupar um lugar central nos projectos em que se empenharia a intelligentsia liberal, uma vez terminada a guerra civil. Efectivamente, ela interveio tanto na elaboração dos projectos de reforma do ensino como nos esforços para a sua concretização e na própria actividade docente das escolas recém-criadas ou reformadas. De destacar duas linhas gerais de preocupação constantes nos muitos projectos apresentados: 1) dotar Portugal de um ensino novo, capaz de responder às suas necessidades de desenvolvimento; 2) acabar com um ensino desactualizado e de luxo académico ao serviço dos privilegiados. Como era de esperar, o ponto de mira dos ataques foi a Universidade de Coimbra onde dominava o imobilismo e um ensino transcendente, como então se dizia, onde não se via qualquer possibilidade de formar “homens capazes de praticar a ciência, de converter a ciência num serviço público”, nas palavras de José Estêvão numa sessão parlamentar ainda em 1854. Aliás, já nos anos 20, no começo do constitucionalismo, se sublinhava que os meios de instrução em Portugal não estavam “em harmonia com a ilustração do século nem com as necessidades da nação. A administração e economia pública ressentem-se da falta de economistas e administradores, ao mesmo tempo que nos sobejam teólogos e juristas”.5
Dez anos depois, Garrett voltaria a insistir neste ponto no Plano de Estudos elaborado quando foi criada uma primeira Comissão de Reforma Pedagógica, em 1833, estando ainda a terminar a guerra. Passado outra década, num novo programa apresentado no Parlamento, este reclamaria uma lei geral de habilitações de que resultasse “que nem se dêem empregos sem habilitações, e que nem haja algum para que elas não estejam decretadas” (Garrett, 1843). Dado que os reformadores consideravam que a desactualizada e conservadora Universidade de Coimbra nem tinha condições de formação para os novos cargos de que o país necessitava nem se dispunha a aceitar as propostas de reforma para o seu ensino, seria fora dela que procuraram criar essas condições, descentrando para Lisboa a criação de novas escolas e novos cursos orientados para uma formação técnico-científica, nomeadamente: o Instituto de Ciências Físicas e Matemáticas que integrava cinco Escolas Superiores - de Engenharia Civil e Militar, Marinha, Pilotagem e Comércio (o Instituto não chegou a funcionar, liquidado pela interferência da Universidade na sua luta para manter o monopólio do ensino superior); a Escola Politécnica que integrava a Academia Real da Marinha (esta, anteriormente, fazia parte do Colégio dos Nobres, extinto em 1837 dado o seu carácter elitista); a Escola do Exército que substituía a Academia Real da Fortificação; as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto.
Grande parte dos empenhados nestas reformas do ensino superior eram ex-exilados que, a partir de 1834, ocuparam cargos de governação, foram deputados em várias legislaturas, muitos deles encontrando-se entre os incluídos no tipo 3 e no 1.º momento do meu conjunto-base: caso de Garrett, de Trigoso de Aragão Morato, de Passos Manuel ou de José Estevão (os quatro com cursos da Universidade de Coimbra) ou de Sá da Bandeira (um militar com o curso da Academia Real da Marinha e o da Academia Real da Fortificação). Contudo, naquele 1.º momento, também alguns casos do tipo 1, como Rodrigo da Fonseca (com curso da Universidade) ou do tipo 2, como Vicente Ferrer Neto Paiva (igualmente com curso universitário) e como Herculano (com frequência da Academia Real da Marinha, Aulas do Comércio e Aula Diplomática) tiveram intervenção destacada nas reformas do ensino superior.
Para a importância dada nestas reformas à valorização e actualização da formação técnico-científica não terá sido indiferente que entre os envolvidos figurassem indivíduos com essa formação (caso de alguns militares de que se destaca Sá da Bandeira, que estudou engenharia em Inglaterra). Em suma, o grande objectivo dos sucessivos projectos de reforma do ensino superior consistia em cumprir o desiderato de modernização e desenvolvimento do país que, desde o começo de Oitocentos, vinha encontrando expressão entre os contestatários do statu quo imobilista e ultraconservador a que os reformadores dos novos governos liberais pretendiam pôr fim. Regressando aos casos em causa, julgo ser de notar que há uma distinção interessante entre o 1.º e o 2.º momento quanto à natureza dos cursos dos incluídos nos tipos 1 e 2, sendo que à maior incidência nos cursos da Universidade de Coimbra para os do 1.º momento sucederia a maior incidência nos cursos técnico-científicos para os do 2.º.
Na verdade, os cursos universitários eram conseguidos, sobretudo para os casos de tipo 1, à custa de grandes sacrifícios dos pais e, por vezes, da ajuda e recomendações de uma figura protectora com alguma influência ou ainda de apoios como o da Casa Pia. Entre estes últimos é de aludir novamente ao caso de Luz Soriano, um estudante da broa como então se chamava àqueles que, conforme ele narrou nas Revelações da Minha Vida, chegavam à Universidade “munidos de um enxoval muito decente, tanto de roupa branca como de cor, e de uma pensão de 12 000 réis por mês”, animados pela expectativa de uma carreira brilhante, convencidos, tal como Soriano, “que só por esta carreira podia sobressair à pobre e humilde posição em que a sorte me colocou quando nasci” (Soriano, 1860, p. 62).
Quanto à tendência para uma relativa predominância da atracção pela formação técnico-científica no 2.º momento, poder-se-á detectá-la nos casos de tipo 1 e 2 (com os limites impostos pelo conjunto-base em causa), sendo que, para os 14 casos de tipo 1 e 2 existentes neste mesmo momento, há 8 casos com formação técnico-científica, enquanto no 1.º momento eles atingem apenas 3 casos para um total também de 14 casos. Aqueles 8 casos fizeram os seus cursos (por vezes não concluídos) nas reformadas Academias Reais da Marinha e da Fortificação, nas Escolas Médico-Cirúrgicas e na Politécnica - são eles: Sousa Brandão, Mendes Leal, Francisco Maria Bordalo, José de Andrade Ferreira, Camilo Castelo Branco, Lopes de Mendonça, Bulhão Pato e Rodrigo Paganino. Poder-se-á aventar que o predomínio daquela formação para os casos de tipo 1 e 2 do 2.º momento, corresponderia à maior atracção que ela ia ganhando, sobretudo para os mais jovens e para os que eram de Lisboa. Efectivamente, as novas escolas de ensino superior acima listadas concentravam-se na capital e, ao ser apresentadas como uma resposta para a modernização e prosperidade do país, constituiriam uma alternativa interessante, promissora e mais acessível do que a Universidade de Coimbra.
No entanto, para os 8 casos acima referidos, esta alternativa não corresponderia ao esperado sucesso na carreira. Quase todos tiveram um percurso que ficou por cargos modestos no funcionalismo público ou sujeitos a viver da escrita, exceptuando-se dois casos - o de Sousa Brandão, que seguiu a carreira militar e chegou a general, e o de Mendes Leal, que atingiu o cargo de ministro e par do Reino. De acrescentar que entre os casos de tipo 1 do 2.º momento, há três declaradamente autodidactas que só conseguiram alguma nomeada através da colaboração em jornais e revistas (caso de Xavier de Novais e de Gomes de Amorim); do activismo político (caso de Vieira da Silva, fundador do Eco dos Operários com Sousa Brandão e vice-presidente do Centro Promotor das Classes Laboriosas, sendo aquele o presidente); da frequência de cafés e de saraus literários, lugares de encontro de intelectuais dos vários tipos, ou ainda da protecção de uma figura com renome (apadrinhamento de Gomes de Amorim por Garrett). Nalguns destes casos, tinha-se registado um processo de mobilidade social descendente nas famílias de origem causado pelas perseguições do período miguelista, como, por exemplo, aconteceu com Francisco Maria Bordalo. O pai deste, abastado, simpatizante dos liberais, foi perseguido pelos miguelistas e acabou por perder os seus recursos, vindo aquele a seguir uma carreira na Armada que o obrigaria a constantes viagens, o que o levaria a dizer com amargura na sua autobiografia: “[sou] um pobre marinheiro despido de condecorações que não é, e nunca foi, sócio ou irmão de academias, confrarias ou outras quaisquer associações, que nunca teve o que se chama uma posição política, nem uma reputação literária, porque nem mesmo à sociedade de admiração mútua quis pertencer” (Bordalo, 1860, p. 539; citado em Santos, 2012, p. 166).
Uma curiosidade: na sua maior parte os casos deste 2.º momento com modesto percurso promocional não tiveram uma vida longa, o que também não ajudaria à progressão nas suas carreiras, enquanto no 1.º momento os casos também de tipo 1 que tiveram uma destacada “subida na vida” morreram todos com mais de 70 anos, são eles: Silvestre Pinheiro Ferreira, Rodrigo da Fonseca, Luz Soriano, Rodrigues Sampaio e José Silvestre Ribeiro.
É de acrescentar que, nos casos de tipo 1 do 2.º momento, a intervenção na “regeneração” do país, via reforma do ensino, focar-se-ia preferencialmente nas campanhas pela generalização do ensino primário (eram frequentes as queixas contra a inépcia dos sucessivos governos em levar a cabo a criação de mais escolas deste ensino e a obrigatoriedade da sua frequência), tendo-se manifestado na criação de várias iniciativas particulares, sobretudo no âmbito de algumas associações de orientação pró-socialismo utópico, a que se fará referência no seguinte ponto.
Dificuldades de vária ordem iriam travar as ambições dos empenhados nas reformas do ensino. Para indicar só algumas: falta de recursos financeiros; falta de docentes com preparação adequada às exigências do novo ensino; falta de continuidade nas reformas por frequente mudança dos governos; obstáculos levantados pelo poderoso corpo que era a Universidade de Coimbra.
Terceiro vector: possibilidades de promoção face às mudanças sociais
O terceiro e último vector que avancei - possibilidades de promoção face às mudanças sociais - remete necessariamente para um quadro sinóptico onde figurem aqueles aspectos de mudança que tenho como mais relevantes para os percursos dos intelectuais em questão.
1. Desde já, um dos aspectos a ter presentes é a alteração da classe governante no novo regime liberal constituída na sua maioria por elementos que não faziam parte da nobreza (muitos deles aparecem incluídos nos casos de tipo 3). Aliás, a partir de 1834, quem não fazia parte da nobreza passaria a poder ser par do Reino integrando a respectiva Câmara onde se conservaram alguns nobres, tendo muitos outros sido excluídos ou auto-excluídos por serem apoiantes de D. Miguel.
A intelligentsia, que neste período integrava intelectuais/políticos/militares, não só se via como uma força “regeneradora” do país como também, efectivamente, iria ocupar cargos governamentais onde poderia procurar actuar naquele sentido. Todavia, a proximidade ao poder do Estado que alcançou tinha como contraponto a sua dependência em relação a este aparelho que constituía, aliás, uma das poucas oportunidades de subida na carreira dentro do exíguo mercado de trabalho intelectual em Portugal.
2. Na sequência do que foi avançado na alínea anterior, há outro aspecto a avançar que tem a ver com o fraco desenvolvimento do país (a que acrescia a devastação deixada pelas invasões francesas e pela guerra civil), onde um capitalismo incipiente não abria as necessárias oportunidades de trabalho para as profissões que as reformas do ensino tinham em vista promover - a uma pequena escala, as difíceis carreiras dos casos de tipo 1 e 2 do 2.º momento que apostaram na formação técnico-científica representariam uma das consequências daquela situação.
Na referida conjuntura, é de lembrar a presença crescente de um movimento de activismo político de cariz socialista utópico. A dar conta do referido activismo, vão surgir várias iniciativas nos meados dos anos 50 em que, entre outros, estiveram implicados os já acima nomeados Sousa Brandão, Vieira da Silva, Lopes de Mendonça, Rodrigo Paganino. Trata-se de iniciativas como a fundação da Associação dos Operários; do jornal Eco dos Operários; do Partido Socialista; do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas; da Associação Promotora da Educação Popular; do Grémio Popular; etc.). Seria no quadro deste género de associações que, como atrás se aludiu, teria lugar grande parte da luta pela generalização do ensino primário.
Em 1850, Lopes de Mendonça denunciava a situação de carência deste ensino e escrevia que, por um lado, havia “uma classe emancipada pela vitória, dotada de instrução, de talento, de capitais” e, por outro lado, “massas inertes, privadas dos meios intelectuais, desmoralizadas por uma longa tirania, tendo como único recurso os seus braços desfalecidos pelas fadigas” (Mendonça, 1850, p. 3). Dois anos depois, Fontes Pereira de Melo apresentava um diploma que requeria a obtenção de esclarecimentos estatísticos que permitissem ao governo conhecer “o estado actual das classes operárias, afim de providenciar o que for mais urgente a bem do ensino industrial” (citado em Fernandes, 1990; itálicos meus). Todavia, os resultados obtidos foram muito reduzidos, o que se atribuía, por um lado, às insuficientes medidas dos governos e, por outro, à falta de apetência das “classes laboriosas” pela alfabetização, o que seria apontado por um outro entusiasta pela generalização do ensino primário, Feliciano de Castilho (este um caso de tipo 3 e do 1.º momento, mas também ligado a algumas das associações referidas, embora sem partilhar uma orientação socialista). Vemo-lo declarar, em 1864, que nem os dirigentes “curam como devem da instrução do povo, nem o povo a cobiça, a aprecia, nem lhe suspeita sequer a utilidade” (Castilho, 1864, p. 57).
Ao mesmo tempo, a campanha pelo ensino popular dava lugar a frequentes receios daqueles que temiam que a instrução afastasse dos ofícios humildes as novas gerações que lhe viessem a ter acesso. Alguns elementos da intelligentsia que participavam nas reformas daquele ensino viriam contrapor que tal não aconteceria se fosse salvaguardada a qualidade da instrução a ministrar aos “meninos pobres”. Neste sentido, em 1837, Alexandre Herculano (um caso de tipo 2, mas, também, como Castilho, incluído no 1.º momento, e, tal como ele, empenhado nas reformas do ensino popular, mas longe de qualquer tendência socialista), advertia que se facultassem a um menino pobre “aprender as línguas sábias e as artes de luxo, natural parece que o menino venha por tempo a desdenhar o estado, a vida, o ofício de seu pai”, o que não aconteceria se o menino não recebesse “uma educação brilhante mas perigosa”, antes frequentando na sua aldeia “uma escola elementar onde não se ensinassem estudos supérfluos” e onde se recebessem “os princípios religiosos, ideias e máximas morais, regras de bons e virtuosos costumes” (Herculano, 1837, p. 37)
Estar interessado nas reformas do ensino e na “regeneração” do país podia não significar propriamente querer grandes mudanças na ordem social. Poucos anos depois, em 1844, Herculano dava conta do modo como encarava este dilema entre necessidade de mudança e manutenção da ordem social: “o único meio simples, exequível, pacífico, não de coibir os abusos do capital pela negação das suas funções económicas e pela condenação da propriedade; mas de o coibir nos excessos com que muitas vezes oprime o operário, consiste em habilitar este para se transformar de proletário em modesto proprietário” (Herculano, 1907 [1844], p. 147). Não era precisamente a mesma a posição de alguns jovens da chamada “geração de 50”, onde se situavam os já referidos casos de tendência pró-socialismo utópico, que via na burguesia capitalista o sucedâneo da nobreza opressora, como, por exemplo, Lopes de Mendonça que, aliás, avançaria uma proposta igualitária capaz de “pôr em presença o capital e o trabalho sem que o primeiro absorva, escravize o segundo” ( Mendonça, 1850, p. 4), embora preconizasse essa mudança através de um processo gradual “sem abalo, com suavidade, até à conquista definitiva do programa concebido naquela sublime Trindade simbólica: Liberdade, Igualdade, Fraternidade” (Mendonça, 1851, p. 147).
3. Passa-se, a partir daqui, para um outro aspecto, designadamente o do modo como a intelligentsia se posicionava a si mesma na nova estrutura social. Se nos começos de Oitocentos se identificava (retoricamente) com o “povo”, depois da instalação do liberalismo deixaria de fazer essa assimilação, passando antes a referir-se, por um lado, aos trabalhadores/operários/proletários e, por outro, à burguesia capitalista, não se identificando nem com aqueles nem com esta, malgrado pudesse designar os escritores como “os operários da pena e da vontade” (Castilho descreveria os trabalhadores intelectuais como “os fabricantes para os gozos da inteligência” e os operários como “os fabricantes para os gozos dos sentidos”).
Latino Coelho - um caso do 2.º momento, incluído no tipo 3, com cursos da Politécnica e da Escola do Exército e simpatia pelo socialismo utópico no começo da sua carreira (em que chegaria a ministro e par do Reino) - traçou um retrato da intelligentsia em que grande parte dela decerto se reconheceria. É muito significativo esse retrato: “Deus privilegiando alguns homens com o talento, que se distingue do comum, atribui-lhes sem dúvida na sociedade uma função mais qualificada e mais nobre do que ao vulgo das vocações” e explicava a sua superioridade na medida em que ela “não humilha nem avassala ninguém. É uma aristocracia que se exerce em benefício de todos, porque é da essência da ideia e da palavra o tornar-se património universal” (Coelho, 1859, p. 147). Assim, ao apresentar o talento como um dom “natural”, deixava implícito que, não só qualquer um, independentemente da sua origem social, podia vir a exercer uma função acima do comum, mas também que o exercício desse saber como poder se legitimava pela sua própria natureza.
A referida imagem dos intelectuais do liberalismo como uma espécie de nova aristocracia aparecia em vários discursos parlamentares e ensaios políticos e manifestava-se igualmente noutros géneros de produção literária (biografias, autobiografias, romances e peças teatrais). A título de exemplo, reproduzo uma citação que já apresentei no trabalho que aqui tomei como ponto de partida, extraída da biografia de Gomes de Amorim sobre Garrett: “Em João Baptista de Almeida Garrett a distinção de maneiras não era somente fruto da boa sociedade e estudo apuradíssimos; era principalmente um dom nativo. Ele tinha o que descreve na Gertrudes do Arco de Sant’Ana [aqui Amorim passa a citar o próprio Garrett]: ‘um certo ar de superioridade, e para assim dizer (perdoem-me a aristocracia da frase) de fidalguia natural, que é a mais rara, a mais preciosa e a mais verdadeira, posto que não tenha assentamento na casa nem ande nos livros de mordomia-mor’” (Amorim, 1881, p. 27; citado em Santos, 1988, p. 62).
Esta aproximação à aristocracia manifestava-se igualmente através de várias práticas mundanas. Aliás, nestas práticas, entrecruzar-se-iam, mais ou menos contraditoriamente, novos e velhos valores culturais, implicando estratégias de afirmação ora por identificação, ora por oposição face à aristocracia, como noutro lugar as designei (Santos, 1999). Julgo que será de aludir aqui à dominância de uma ou de outra das ditas estratégias conforme a intelligentsia avançava no tempo. É sabido o cuidado que tinham os intelectuais/políticos do vintismo em demarcar-se face à aristocracia, nomeadamente opondo-se-lhe através de um estilo de vida sóbrio que se contrapunha ao luxo e esbanjamento desta, comportamento de que é exemplo o próprio vestuário dos vintistas desprovido de adornos e sem usar tecidos caros. Passada pouco mais de uma década, esta contenção tende a ser ultrapassada e é interessante ver a diferença do vestuário nos retratos dos governantes do antes e do depois - os vintistas muito modestamente trajados, os segundos ostentando, em regra, vestes de qualidade, fardas de gala e todas as medalhas que tinham podido reunir.
No período pós-1834, o envolvimento em estratégias de identificação ficaria também patente na preocupação de alguns intelectuais/políticos em aceder a títulos de nobreza. De lembrar, porém, que no novo processo de nobilitação não foram agraciados apenas estes, mas também alguns grandes negociantes, representantes daquela burguesia capitalista “menor” que muitos deles viam com sobranceria. É o caso de Garrett de que são bem conhecidas as invectivas contra esses “barões” que ele vê a reduzir “tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. - No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos” (Garrett, 2010, pp. 108-109).
De referir, igualmente, a frequência de salões e de saraus literário-musicais de aristocratas (por exemplo, no palácio de Penalva) ou de grandes negociantes nobilitados (por exemplo, no palácio de Farrobo) e ainda o retomar do recurso ao mecenato (por exemplo, através do uso de dedicatórias) - práticas mundanas que funcionavam como estratégia para conseguir distinguir-se e ganhar renome. Num muito minguado mercado do livro, outro recurso, então muito comum, era a apresentação/leitura de uma obra, feita pelo respectivo autor, nos saraus literários naqueles palácios, o que permitia a sua divulgação pelo menos junto de uma parte do estrito público leitor então possível.
Por sua vez, os casos atrás referidos para o 2.º momento (de tipo 1 e 2 e quase todos de tendência socialista utópica) organizaram e/ou frequentaram saraus literário-musicais fora das residências aristocráticas, em espaços onde, como Vieira da Silva fazia questão em afirmar, “o povo não é repelido. Moralidade e decência, exigiu-as o Sr. Castilho; porte de cavalheiros, pediu-os a todos. Condições de viver, origens e hierarquias, não as quis saber de ninguém. Àquele estrado têm subido altos poetas e nobres prosadores; naqueles bancos tem-se sentado a modesta filha do povo, ao pé de muito nobre dama…” (Silva, 1853; citado em Castilho, IV, p. 368) Tratava-se dos saraus organizados por Castilho em sucessivas casas que alugava (acontecia que, a certa altura, tinha de passar a casas menos caras por falta de meios). Eram práticas mundanas de entretenimento que, ao mesmo tempo, desempenhavam uma função de apresentação/lançamento da produção de jovens escritores carecidos de (re)conhecimento, tendo ainda um particular objectivo didáctico (associados à campanha de alfabetização em que Castilho se empenhou com o seu Método de Leitura). Aliás, algumas das associações atrás referidas também se empenhavam em ministrar a instrução primária a alunos que trabalhavam em diversas profissões (caixeiros, carpinteiros, padeiros, sapateiros, pedreiros, etc.), com cursos gratuitos ou de reduzido custo que funcionavam, regra geral, em aulas nocturnas - era um esforço no sentido de contribuir para a preparação de um “Portugal novo”, mas, necessariamente, com modesto alcance devido aos poucos recursos.
4. Importa retomar aqui a questão do mercado de trabalho intelectual para referir ainda um outro aspecto representado por duas iniciativas que visaram alargar e regulamentar esse mercado, o que não deixa de ser relevante para o processo de promoção social que aqui venho considerando. Uma dessas iniciativas consiste na defesa da neutralidade literária, que apareceu como um desiderato para poder vir a obviar à enorme dependência do dito mercado de trabalho intelectual face ao poder político, levando a que a cada mudança da facção governante se seguissem despedimentos e substituições. Isso ficava claro num documento (redigido por Garrett) em que se requeria às Cortes uma lei que declarasse inamovível “todo o emprego e encargo literário ou quase literário” - documento saído de uma comissão constituída na Liga Promotora dos Melhoramentos da Imprensa, associação criada em 1846 precisamente para procurar assegurar a autonomia dos intelectuais e criar condições para uma alternativa profissional. De notar que as questões debatidas na Liga não se limitavam à defesa da pretensa neutralidade ideológica de “uma república literária una e indivisível”, mas preocupavam-se, também, com problemas à volta da melhoria da apresentação, difusão e custos do impresso. Na mesma data, no Grémio Literário discutiam-se igualmente estas questões - aliás, tanto aí como na Liga encontram-se os mesmos nomes, entre os quais se contam vários casos que constam do conjunto-base aqui utilizado, gente quer do 1.º ou do 2.º momento, quer do tipo 1 ou 2 (Rodrigo da Fonseca, Rodrigues Sampaio, Oliveira Marreca, Alexandre Herculano, Mendes Leal), quer do tipo 3 (Rebelo da Silva, Sá da Bandeira).
Para além desta iniciativa com sede nas duas agremiações e divulgação na imprensa periódica, destaque para uma outra, a dos direitos de autor que deu lugar a prolongados e polémicos debates na Câmara dos Deputados a partir de 1839, na sequência da proposta do projecto de lei sobre a propriedade literária apresentada pelo infatigável Garrett. Reivindicar os direitos de autor implicava lutar pela sua autonomia enquanto tal, o que passava também por rever a relação autor/editor, fazendo aquele participar de forma regulamentada nos lucros deste último e procurando, assim, que o autor não se tornasse presa do que começara a chamar-se o industrialismo das letras no livre mercado literário. Não seria fácil esta luta pela propriedade literária, levantando reservas e perplexidades por parte dos que argumentavam com a dificuldade de medir o valor dessa tão específica mercadoria que era o livro, caso de Herculano quando dizia que os esforços da “cogitação, da inspiração, do génio [que] elevam o engenho acima do vulgo”, esses não se podiam medir pela bitola com que medimos [o trabalho] em que predominam os esforços dos músculos” (Herculano, 1907 [1851], II, p. 73).6 No entanto, terá havido um consenso alargado, particularmente por parte daqueles intelectuais que viviam sobretudo do ofício das letras, quanto à necessidade de uma lei que pudesse salvaguardar os seus direitos de autor, libertando-os de uma situação como a descrita por Bulhão Pato a respeito dos escritores que, com frequência, eram obrigados a largar o seu trabalho enquanto autores para ir traduzir à pressa “um péssimo romance francês que o editor impõe porque tem procura no mercado” (citado em Santos, 2012, p. 240).
Conclusões
A concluir esta nova abordagem de informações recuperadas do meu velho estudo agora revisitado, importa fazer uma síntese que integre as condições que concorrem para a efectivação de um processo de mobilidade ascendente em situações de partida pouco ou nada favoráveis - processo ilustrado, no presente texto, pelas trajectórias dos intelectuais em causa (casos dos tipos 1 e 2).
Para cada um desses intelectuais, num plano pessoal, houve, como é óbvio, um percurso promocional particular, mas, num plano de generalidade, para esta parte da intelligentsia do liberalismo que “subiu na vida” poder-se-ão destacar determinadas constantes, directa ou indirectamente facilitadoras da construção do processo promocional. Essas constantes apresentam algumas diferenciações associadas à pertença desses intelectuais a um ou outro dos dois momentos considerados.
A meu ver, as constantes mais relevantes são:
Em pano de fundo, com papel sobredeterminante, uma conjuntura de mudança social intensificada pelas chamadas revoluções burguesas e protagonizada pelos novos “intelectuais orgânicos” em substituição dos “intelectuais tradicionais”.
Nesse contexto, os intelectuais de origens desfavorecidas, nomeadamente os classificados no 1.º momento, puderam (na prisão e no exílio) dotar-se de um capital de relações sociais mais alargado e diversificado, tendencialmente interclassista, propiciador de futuras oportunidades para as suas trajectórias de vida num sentido promocional.
Os mesmos puderam, também, (no exílio) dotar-se de um capital cultural mais aberto e actualizado, tendencialmente cosmopolita, igualmente propiciador das ditas oportunidades.
No novo quadro dos governos constitucionais, os “intelectuais orgânicos” desenvolveram várias estratégias visando a melhoria da sua posição, designadamente as que procuravam assegurar a sua autonomia face ao poder político (lutas pela “neutralidade literária”) - estratégias em que se envolveram sobretudo os casos do 1.º momento, particularmente ameaçados de perder os seus cargos políticos quando sobrevinham governos de partidos adversos.
Desenvolveram também estratégias visando defender a sua autonomia face a um mercado literário em (relativo) crescimento onde lhes era necessário defender os seus direitos de autor (questão da lei sobre a propriedade literária) - estratégias em que se envolveram casos do 1.º e do 2.º momento.
[As anteriores alíneas d) e e) correspondem a tentativas de alargamento e de regulamentação de um mercado de trabalho intelectual demasiado estrito e dependente quer do poder político, quer do poder de um mercado literário que, embora ainda incipiente, não deixava de colocar os autores na dependência dos editores. De notar que ambas as tentativas, se não puderam resolver satisfatoriamente esses problemas, abriram pelo menos para alguns futuros ganhos, para lá do ganho simbólico de uma tomada de posição dos intelectuais em causa pela melhoria das condições do seu trabalho.]
Uma outra estratégia, desenvolvida no novo contexto social e orientada também num sentido de auto-valorização e promoção social, consistiu no aproveitamento de um legado de sinais de prestígio do antigo regime que a intelligentsia em ascenso fez reverter em seu favor (identificação com a aristocracia e “naturalização” da distinção desta, tornando-a extensiva à sua condição de intelectuais nascidos de origens humildes) - uma estratégia comum a intelectuais dos dois momentos.
Significativo ainda o recurso a meios de comunicação facilitadores da criação de renome (jornalismo, romance, teatro) quando da inviabilidade de acesso a cargos de destaque - recurso mobilizado sobretudo por intelectuais do 2.º momento.
A fechar, uma pequena nota quanto às diferenciações entre os dois momentos, nas constantes enunciadas, que remetem principalmente para o aparecimento, no 2.º momento, de intelectuais jovens que já não tinham participado nas lutas, prisões e exílios antes de 1834 e se iriam encontrar face a uma sociedade onde alguns dos “intelectuais orgânicos” daquele 1.º momento tenderiam a instalar-se (em transição para “intelectuais tradicionais”?…) e, onde, conforme se avançou atrás, as políticas do liberalismo junto com o fraco desenvolvimento do país criaram insatisfação e abriram lugar para o aparecimento de novas orientações de tendência pró-socialismo utópico ou ainda, como hoje se diria, pró-democracia cristã. Assim, no processo de promoção social dos intelectuais de origens modestas do 2.º momento entrariam algumas componentes novas, a contar nas constantes referidas, designadamente uma muito mais reduzida possibilidade de aceder a cargos públicos importantes e um muito maior recurso aos meios de comunicação indicados acima na última alínea, fazendo que se torne dominante neste contingente a figura do “homem de letras” e não já a do político do 1.º momento.