Introdução
A pandemia da infecção pelo vírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 tem provocado reacções muitas vezes antagónicas. Uns consideram tratar-se de um vírus e de uma doença relativamente benignos, enquanto outros alertam para a sua gravidade. Se há quem considere as medidas instituídas de combate à pandemia desproporcionadas e incorrectas, outros encontram-nas insuficientes. Como conciliar estas duas visões da mesma realidade?
A gravidade da doença
A infecção pelo vírus SARS-CoV-2 é assintomática em aproximadamente 40% dos indivíduos. Naqueles que desenvolvem sintomas, a doença é ligeira, permitindo o acompanhamento domiciliário em 80% a 95% dos casos. Em 5%-15% dos casos, a doença é moderada a grave, com necessidade de internamento hospitalar, sendo doença crítica, com necessidade de admissão em UCI em 0,5% a 1,5% (exemplos de Portugal e Espanha, respectivamente).
Em relação às mortes provocadas pela infecção pelo SARS-CoV-2, a sua letalidade poderá ser avaliada através de duas taxas diferentes. Acase fatality rate(CFR) é a percentagem de casos confirmados em que ocorreu o óbito. Ainfection fatality rate(IFR) é a percentagem do número total de indivíduos infectados que faleceram. Esta última taxa é calculada tendo por base o número de infectados, estimado com recurso a inquéritos sero-epidemiológicos. Existe uma variabilidade importante da letalidade de país para país.
Na Tabela 1 (dados de 19 de Dezembro de 2020), é evidente a existência de países com taxas de letalidade (CFR) semelhantes à média mundial (Espanha, França, Suécia e Brasil), países com letalidade inferior à média (Portugal, Alemanha e EUA) e países com uma taxa significativamente superior (Itália, Reino Unido). A razão para esta variabilidade significativa das taxas de letalidade tem sido objecto de discussão e análise, de momento sem conclusão definitiva.
País | Letalidade por case fatality rate | Letalidade por infection fatality rate |
---|---|---|
Portugal | 1,6% | 0,53% |
Espanha | 2,7% | 0,82% |
Itália | 3,5% | |
Alemanha | 1,8% | 0,30% |
França | 2,5% | |
Reino Unido | 3,4% | 0,90% |
EUA | 1,8% | |
Brasil | 2,6% | |
Suécia | 2,2% | |
Mundial | 2,2% | 0,15%-0,24% |
Dados até 19 de Dezembro de 2020, de Portugal, dos 5 maiores países europeus (Espanha, Itália, França, Alemanha, Reino Unido), de países geralmente considerados como exemplo de más estratégias de gestão do vírus (EUA e Brasil) e de um país com uma estratégia assumidamente diferente (Suécia).
As IFR são inferiores a 1% em todos os estudos, e frequentemente inferiores a 0,5%. Tendo em conta que a IFR estimada para a gripe sazonal é de 0,1%-0,2%, estes dados apontam para uma letalidade da infecção pelo SARS-CoV-2 duas a três vezes superior à da gripe.
Os números da doença
Perante os dados apresentados relativos à infrequente gravidade desta infecção, como explicar então os números assustadores previstos pelos modelos epidemiológicos, os números reais apresentados pelas autoridades e comunicação social, bem como as situações de sobrecarga e mesmo de colapso dos sistemas de saúde nalgumas regiões?
Em relação aos modelos epidemiológicos, o melhor que se poderá dizer é que a relação das suas previsões com a realidade se torna algo aleatória para horizontes temporais superiores a uma semana. Foi assim com o modelo do Professor Jorge Buescu, com grande impacto em Portugal, que, no dia 15 de Março, previa com uma certeza matemática um número de casos confirmados para o nosso país entre 16 395 e 48 110 para o dia 30 desse mês, sendo afinal o número observado de 6408 casos confirmados nessa data. O mesmo se verificou com o modelo do Imperial College, que a 16 de Março previa uma evolução para 250 000 mortos no Reino Unido e mais de um milhão nos EUA (em Outubro, o número acumulado de mortos no Reino Unido era de 45 365, e de 231 671 nos EUA). Uma aplicação desse modelo à Suécia, também levou a uma previsão de 96 000 mortos a 1 de Julho, sendo o valor observado nesse dia de 5420 mortos, um valor cerca de 18 vezes inferior ao previsto.
A realidade é que esta infecção tem um comportamento muito heterogéneo entre regiões. Existem algumas regiões em que o número de infecções e de doentes com necessidade de internamento e de cuidados intensivos saturou e ultrapassou as disponibilidades dos sistemas de saúde. Não é evidente a causa desta heterogeneidade.
Na Tabela 2, apresento alguns números, acumulados até 19 de Dezembro. Verifica-se que existe uma grande heterogeneidade, quer no número de casos confirmados, quer no de mortos, por milhão de habitantes. Mesmo países vizinhos, como França e Alemanha, têm uma enorme diferença nestes valores. Estas diferenças também não acompanham directamente o número de testes efectuados, como se poderá avaliar comparando os casos, mortos e testes de Portugal, Reino Unido e Suécia.
País | Casos acumulados | Mortos acumulados | Testes Acumulados |
Portugal | 36 037 | 587 | 509 359 |
Espanha | 38 865 | 1046 | 532 868 |
Itália | 31 807 | 1124 | 410 716 |
Alemanha | 17 519 | 310 | 381 057 |
França | 37 388 | 922 | 459 302 |
Reino Unido | 29 054 | 978 | 728 550 |
E.U.A. | 53 986 | 967 | 695 423 |
Brasil | 33 592 | 871 | 120 508 |
Suécia | 36 246 | 789 | 393 876 |
Mundial | 9766 | 216 |
Todos os valores são apresentados por milhão de habitantes. Dados até 19 de Dezembro de 2020, de Portugal, dos 5 maiores países europeus (Espanha, Itália, França, Alemanha, Reino Unido), de países geralmente considerados como exemplo de más estratégias de gestão do vírus (EUA e Brasil) e de um país com uma estratégia assumidamente diferente (Suécia).
As medidas contra a doença
As medidas que têm vindo a ser aplicadas no âmbito da pandemia podem ser divididas em dois tipos: acções com o objectivo de reduzir a transmissão do vírus e os novos casos, ou intervenções com o objectivo de aumentar a capacidade do sistema hospitalar.
Confinamento
O confinamento representa o máximo das medidas de distanciamento físico. No âmbito da pandemia, as medidas de confinamento consistem num conjunto de limitações à possibilidade de abandonar o domicílio, juntamente com restrições às deslocações dentro do mesmo país ou através das fronteiras.
Uma revisão sistemática sobre confinamento, até 12 de Março, apenas encontrou trabalhos baseados em modelos teóricos. Posteriormente, foram publicados três estudos.
O primeiro estudo1avaliou 202 países, tendo encontrado uma relação entre a aplicação de medidas de confinamento e um menor número de novos casos de COVID-19. No entanto, na subamostra europeia, a relação foi inversa, com a imposição de confinamento a associar-se a um número maior de novos casos. Apesar disto, os autores concluíram pela eficácia do confinamento na redução dos novos casos da doença.
O segundo trabalho2analisou 149 países, observando uma redução média de 13% no número de novos casos após o início de medidas de confinamento. Os autores não encontraram associação significativa entre a precocidade das medidas (avaliada pelo tempo decorrido entre a identificação do primeiro caso de COVID-19 e a aplicação do confinamento) e a incidência da doença. No entanto, nas conclusões, afirmam o contrário, que a precocidade da implementação do confinamento se associou a uma maior redução na incidência de COVID-19.
No terceiro trabalho,3nos 50 países com mais casos de COVID-19, os autores não encontraram associação entre o confinamento e a mortalidade ou o número de doentes em cuidados intensivos. Para além disso, um maior atraso na implementação do confinamento (a contar a partir do primeiro caso identificado de doença) associou-se a um menor número de casos de COVID-19.
Em Itália, verificou-se que a redução da incidência de COVID-19 ocorreu antes da efectivação do confinamento, e não na sua sequência.4
Não existem trabalhos publicados de análise da evolução do número de novos casos após o fim das medidas de confinamento, algo que seria seguramente pertinente para a avaliação da eficácia desta intervenção.
Rastreio de contactos
O rastreio de contactos procura obter uma redução dos novos casos de infecção pelo SARS-CoV-2 através de três passos: identificação dos contactos dos casos confirmados, classificação do grau de risco da sua exposição, aplicação de medidas conforme esse grau de risco.
Uma revisão sistemática5encontrou 14 estudos observacionais sobre rastreio de contactos, concluindo que, havendo um atraso de 4-5 dias na sua identificação e isolamento, ou se tal só for conseguido para 60% ou menos dos mesmos, esta estratégia provavelmente não contribuirá de forma significativa para o controlo da COVID-19. Outro trabalho6concluiu pela necessidade de se rastrearem em média 36 contactos por cada indivíduo infectado, concluindo os autores que a eficácia do rastreio de contactos é dependente do número de novos casos (e dos seus contactos) em não saturar e ultrapassar a capacidade do sistema. Em Portugal, com cerca de 6000 novos casos diários em Novembro, seria necessário avaliar diariamente 216 000 contactos.
Mesmo em situações em que o número de casos e os recursos disponíveis permitam uma realização adequada de rastreio de contactos, o impacto desta intervenção na redução de novos casos dependerá também da fiabilidade dos testes de diagnóstico, da contagiosidade do vírus SARS-CoV-2 e da sua transmissibilidade a partir de assintomáticos.
Os testes de RT-PCR para o SARS-CoV-2 têm um número de falsos negativos (30% em doentes sintomáticos) e de falsos positivos (nomeadamente em doentes já não infecciosos) que coloca obstáculos à sua utilização no âmbito do rastreio de contactos.
A capacidade de um indivíduo infectado contagiar os seus contactos (e, consequentemente, a eficácia do rastreio dos contactos na redução de novos casos) poderá ser avaliada tendo em conta as percentagens de infecção observadas em: profissionais de saúde que cuidam de doentes com COVID-19 sem uso de equipamento de protecção (2,5%-5%); contactos próximos de casos confirmados de COVID-19 (inferior a 5%); passageiros e tripulação de embarcações com surtos da doença (inferior a 20%). Esta percentagem é superior a 50% em lares de idosos.
A utilidade do isolamento de indivíduos assintomáticos em reduzir o número de novos casos de COVID-19 também dependerá da infecciosidade destes indivíduos. Um trabalho recentemente publicado relativo ao rastreio dos 10 milhões de habitantes da cidade de Wuhan identificou 300 indivíduos assintomáticos com teste positivo para o SARS-CoV-2, sendo que em nenhum dos seus 1174 contactos próximos foi possível identificar o vírus. Os autores concluíram pela improbabilidade dos indivíduos assintomáticos serem infecciosos.7
Desinfecção de superfícies e objectos
Os estudos que relataram a presença mantida do SARS-CoV-2 durante vários dias em diversos tipos de superfícies fizeram-no em situações irreais, com uso de um inóculo dezenas de vezes superior ao que seria de esperar numa situação de vida real.8Dois trabalhos, realizados em situações de vida real, em hospitais do Norte de Itália, não conseguiram detectar nenhum vírus viável em múltiplas superfícies e objectos hospitalares, tendo concluído pela improbabilidade da transmissão do vírus por esta via.9
Em relação à higienização das mãos, não existe evidência científica sólida, de ensaios clínicos, da eficácia da higienização das mãos na redução da transmissão do SARS-CoV-2.10
Encerramento de escolas
Desde o início da pandemia, que os dados apontam para uma reduzida taxa de infecção nas crianças (inferior a 1% nas duas primeiras décadas), bem como uma reduzida probabilidade de evolução para doença grave, doença crítica e morte. Também a capacidade das crianças, quando infectadas, transmitirem o vírus é escassa.11Desta forma, a utilidade do encerramento das escolas foi desde cedo colocada em dúvida e uma revisão sistemática da evidência publicada não encontrou benefício desta medida.12
Uso generalizado de máscaras
Um trabalho intitulado “Physical distancing, face masks, and eye protection to prevent person-to-person transmission of SARS-CoV-2 and COVID-19: a systematic review and meta-analysis”13concluiu, com um baixo grau de evidência, que “o uso de máscaras cirúrgicas poderá resultar numa grande redução de novas infecções”, sendo que “as máscaras N95 poderão estar associadas a uma redução ainda superior´. No entanto, e apesar do título, dos 172 trabalhos incluídos na revisão sistemática, todos eles observacionais, apenas 64 respeitavam ao SARS-CoV-2 (37%). Por outro lado, dos 44 artigos incluídos na meta-análise final, apenas 7 eram sobre o SARS-CoV-2 (16%), sendo apenas um deles um estudo comparativo (observacional e retrospectivo).
A recomendação publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o uso de máscaras em contexto da doença COVID-19, na parte respeitante ao uso de máscaras pela população em geral, reconhece que “não existe evidência directa (…) na eficácia do uso generalizado de máscaras por indivíduos saudáveis na comunidade para prevenir a infecção com vírus respiratórios, incluindo COVID-19”. No entanto, e apesar ser reconhecido o “potencial risco aumentado de auto-contaminação devido à manipulação da máscara facial”, é recomendado que os “governos encorajem o público em geral a usar máscaras em situações específicas”, tendo em conta benefícios potenciais que incluem a “redução da potencial estigmatização de quem use máscara”, bem como permitir que “as pessoas sintam que estão a contribuir para parar a transmissão do vírus” e ainda os potenciais benefícios sociais e económicos (permitindo a “integração na comunidade”, “uma fonte de rendimento” do fabrico de máscaras, e uma forma de “expressão cultural”).
Mais recentemente, foi publicado o primeiro ensaio clínico randomizado do uso de máscara por indivíduos assintomáticos na prevenção da infecção por SARS-CoV-2.14 Neste trabalho, os autores dividiram os participantes em dois grupos equivalentes, com uso de máscara por um deles, e sem uso de máscara pelo outro. Após um mês, não houve diferença significativa na percentagem de infecções por SARS-CoV-2 nos dois grupos (1,8% e 2,1%, respectivamente).
Aumento da capacidade hospitalar
No nosso país, existiram diversas intervenções de reorganização hospitalar, com abertura de espaços para avaliação de doentes nos serviços de urgência e internamento, em enfermaria ou UCI, bem como a aquisição de material e a contratação de profissionais, juntamente com o cancelamento de consultas, cirurgias, tratamentos e exames complementares programados.
O resultado destas intervenções não é fácil de definir. Por um lado, foram implementadas medidas não ajustadas ao escasso número de doentes nos primeiros meses, condicionando cancelamento de actividade programada e organização de hospitais de campanha sem necessidade para tal.
Por outro lado, em relação ao número de camas de cuidados intensivos no sistema público de saúde, esta terá sido incrementada de 528 camas (nível 3) em Março, para 713 a 2 de Maio.15Em relação à globalidade da capacidade de internamento hospitalar a doentes com COVID-19, no dia 26 de Outubro foram apresentados os seguintes números: das 17 741 camas de internamento, 1802 (10,2%) estavam afectas a doentes com COVID-19; das 755 camas de cuidados intensivos, 318 (42,1%) eram dedicadas a doentes com esta infecção. Nesse dia, a taxa de ocupação das camas de enfermaria e de UCI para doentes com COVID-19 era de 79,5% e de 75,5%, respectivamente.16
O aumento da capacidade hospitalar também poderá ser alcançado através do ajuste dos critérios de internamento, nomeadamente critérios não definidores da gravidade da infecção, como a ausência de condições de habitabilidade ou de isolamento, ou critérios inespecíficos como “vómitos persistentes”, “diarreia grave”, “reaparecimento de febre após apirexia”, reduzindo o internamento de doentes sem benefício do mesmo.
Outra intervenção com o mesmo efeito seria a definição de critérios relativos à não admissão de doentes em UCI. Vários países publicaram normas nesta área. Por exemplo, a norma espanhola17especifica que os doentes com mais de 80 anos e com comorbilidades, bem como os indivíduos com deterioração cognitiva, não devem ser candidatos a ventilação mecânica invasiva. Os doentes com mais de 80 anos e sem comorbilidades, bem como os doentes com 70 a 80 anos com comorbilidades específicas, deverão também ser preferencialmente tratados com outros meios, que não a ventilação mecânica.
Em sentido oposto, em Portugal, as normas da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos recomendaram a evicção do uso de ventilação não invasiva ou cânula nasal de alto fluxo em doentes com COVID-19, o que poderá ter levado à desnecessária ventilação invasiva e admissão em UCI de um número indeterminado de doentes. Para além disso, e ao contrário dos outros países atrás referidos, estas normas não especificaram critérios de não admissão em UCI, apenas recomendando “que a admissão em Serviço de Medicina Intensiva não se baseie em critérios estritos, mas antes numa avaliação caso-a-caso que inclua a cada momento a perceção de gravidade por parte do clínico e a gestão global dos recursos disponíveis”. Esta recomendação deixa à responsabilidade do médico individual esta decisão, o que é exactamente aquilo que as normas de outros países consideram inaceitável. Penso que uma definição mais transparente de critérios objectivos de não admissão em UCI teria um enorme potencial de reduzir a admissão de doentes com escassa probabilidade de benefício, e assim aumentar a capacidade hospitalar para acomodar doentes que necessitem e beneficiem desta admissão. Estes critérios deveriam ser tornados públicos, explicados e assumidos pelas autoridades de saúde, e não por médicos individuais, “caso-a-caso”.
Na minha opinião, no nosso país (e noutros) tem havido um desequilíbrio entre a publicidade e a ênfase colocada nas medidas de redução de novas infecções, e a escassez de informação sobre intervenções e seus resultados no campo do aumento da capacidade de resposta dos serviços de saúde.
Conclusão
O vírus SARS-CoV-2 é responsável por uma infecção usualmente benigna. Não obstante, um número elevado de novas infecções num curto espaço de tempo poderá ocasionar uma necessidade de vagas de internamento em enfermaria ou em UCI potencialmente superior à capacidade dos serviços de saúde. Tendo em conta as dúvidas sobre a eficácia real das medidas implementadas na redução do número de novos casos, é possível que, perante um número elevado de doentes graves, estejamos mais dependentes de intervenções que permitam aumentar a capacidade dos serviços de saúde, de modo a acomodar o número de doentes que deles necessitem. Estas intervenções, de monitorização e ajuste da capacidade do sistema hospitalar em responder às solicitações, se efectivadas agora, poderão ser mantidas daqui em diante, ajudando a superar as situações, repetidas todos os anos, em que as necessidades de camas de internamento superam as disponibilidades das mesmas.