Introdução
A diálise peritoneal, uma das tecnicas de substituição renal na doença renal crónica (DRC) terminal, baseia-se na utilização do peritoneu como membrana semi-permeavel para a troca de metabólitos e iões após instilação de uma solução dialítica na cavidade peritoneal. Apresenta a vantagem de poder ser realizada pelo doente ou cuidador no domicílio, obviando a necessidade de deslocações frequentes para clínica de diálise ou ambiente hospitalar. Contudo, pode associar-se a algumas complicações, nomeadamente peritonite,1 refluxo gastroesofágico,2 dor abdominal/lombar,3 derrame pleural,4 hipocaliemia5 e hipermagnesemia.6 A hérnia abdominal7 e perfuração intestinal8 representam complicações associadas ao cateter. Destaca-se ainda o hemoperitoneu, secundário a menorragia em mulheres pre-menopausa,9 relacionado com o cateter,9patologia intra ou retroperitoneal9ou na presenca de peritonite esclerosante encapsulante (PEE).10
A PEE e uma entidade rara de etiologia multifactorial, reportada pela primeira vez em 1980,11 com incidencia variavel entre 0,54%-4,4%.12,13Cursa de forma insidiosa e cronica, com um desfecho potencialmente fatal. Estima-se uma taxa de mortalidade de 25%-55%, sobretudo no ano após o diagnóstico, sendo esta directamente proporcional a duração da diálise peritoneal.13 O seu diagnóstico é confirmado através de observação macroscopica ou radiologica de esclerose, calcificação e espessamento peritoneal ou encapsulamento intestinal.14
Caso Clínico
Doente do sexo masculino, 47 anos, autónomo, melanodérmico. Diagnósticos conhecidos de DRC estádio 5 por doença renal poliquística autossómica dominante, tendo cumprido hemodiálise entre os 32 e os 39 anos. Por falência de acessos vasculares esteve sob diálise peritoneal durante os 8 anos subsequentes, complicada de episódios recorrentes de peritonite (cerca de 1 episódio/ano). Retomou posteriormente hemodiálise por acesso venoso central, contudo sem remoção do cateter de diálise peritoneal.
A referir ainda os diagnósticos de anemia normocitica normocrómica e hiperparatiroidismo secundário (em contexto de DRC), derrame pleural esquerdo crónico assumido no contexto da técnica dialitica, nefrectomia bilateral por carcinoma de células renais, sem evidência de recidiva local ou a distência, hipertensão arterial e hepatite C tratada. Sem hábitos etanólicos, tabagicos ou toxifílicos. Plano nacional de vacinação actualizado, incluindo imunização para a gripe e pneumococo.
Encaminhado da clínica de hemodiálise ao serviço de urgência (SU) de um hospital terciário por febre, aumento do volume abdominal, náuseas e anorexia com 1 semana de evolução. O doente tinha já iniciado antibioterapia emprica com vancomicina e ceftazidima por presumível bacteriemia com ponto de partida de cateter de hemodiálise, sem isolamento microbiológico em hemoculturas, contudo sem melhoria clínica. Negava dor abdominal, vómitos, diarreia ou outra sintomatologia. Sem contexto epidemiologico potencialmente relevante.
A observação no SU apresentava-se vigil e orientado, com mucosas pálidas e desidratadas. Normotenso, normocárdico, eupneico em repouso, sem hipoxemia e apirético. Auscultação cardiopulmonar sem alterações clinicamente relevantes, exceptuando ausência de murmúrio vesicular na base esquerda, em contexto de derrame pleural conhecido.
Abdomen globoso, com ruidos hidroaereos normoactivos, timpanizado, pouco depressível, indolor, não se palpando massas ou organomegalias, com sinal da onda líquida presente sugestivo de ascite. Membros inferiores sem edemas ou sinais de flebotrombose.
A avaliação laboratorial (Tabela 1) revelou anemia normocitica normocromica, elevação franca da proteina C-reactiva e procalcitonina, sem alterações das provas de coagulação, enzimologia hepática e ionograma.
Na radiografia de tórax (Fig. 1) destacava-se um reforço intersticial bilateral e obliteração do seio costo-frenico esquerdo. Electrocardiograma mostrava ritmo sinusal, frequência cardíaca de 78 bpm, com critérios voltaicos para hipertrofia ventricular esquerda.
Eritrócitos: 3,15x1012/L ; | INR: 1,24 | Albumina: 3,8 g/dL; |
Hemoglobina: 8,4 g/dL ; | APTT: 30,9/29,0 seg | Proteina C-reactiva: 18,5 mg/ dL ; |
Hematócrito: 27,6% [40,0-50,0%}; | Glicose: 92 mg/dL ; | Procalcitonina: 2,1 ng/mL ; |
VGM: 87,8 fL ; | Ureia: 35 mg/dL ; | |
HGM: 27,7 pg ; | Na+: 140 mmol/L ; | |
CMHG: 31,5 g/dL ; | K+: 4,1 mmol/L ; | |
RDW: 16,6 CV% ; | Ca2+ (corrigido): 8,7 mg/dL ; Mg2+: 2,1 mg/dL ; | |
Leucócitos: 4,19x109/L ; | Fosforo: 2,6 mg/dL ; | |
Neutrófilos: 73,6% / 3,08x109/L ; | AST: 11 U/L ; | |
Eosinófilos: 3,0% / 0,13x109/L ; | ALT: <6 U/L ; | |
Basófilos: 0,9% / 0,04x109/L ; | Gamaglutamiltransferase: 20 U/L ; | |
Linfócitos: 14,1% / 0,59x109/L ; | Bilirrubina total: 0,37 mg/dL | |
Monócitos: 8,4% / 0,35x109/L ; | Lactato desidrogenase (LDH): 160 U/L ; | |
Plaquetas: 304x109/L ; | Proteinas totais: 7,8 g/dL ; |
A ecografia abdominal revelou uma volumosa ascite não pura, septada, com conteúdo ecogenico, fígado com contornos irregulares e ecoestrutura heterogénea, sem outras alterações visualizáveis. Perante a suspeita de peritonite, foi realizada paracentese diagnostica (Tabela 2), com colheita de líquido francamente hemático, contagem de 675 células/uL com premomínio de polimorfonucleares (67%) e análise bioquímica sugestiva de exsudado. Foram ainda realizadas colheitas para estudo microbiológico em aerobiose e anaerobiose, e anatomopatologia. Colocando-se a hipótese de peritonite bacteriana secundária, realizou uma tomografia computorizada (TC) abdomino-pélvica (Fig. 2) que confirmou volumosa ascite septada, espessamento e captação do produto de contraste pelo peritoneu parietal, espessamento do peritoneu visceral com empurramento/compressão posterior das ansas intestinais e fígado, ligeiro espessamento da parede de algumas ansas de delgado, com cateter de diálise peritoneal bem posicionado, sem evidência de complicações do mesmo. Estes achados eram compativeis com a hipótese diagnostica de PEE. Durante o internamento, o doente manteve a antibioterapia com vancomicina e ceftazidima, interrompida precocemente na ausência de foco infeccioso e negatividade das hemoculturas e cultura de liquido ascitico. Do estudo complementar destaca-se anti-VHC positivo, com carga viral para VHC indectavel e IGRA negativo, excluindo etiologia tuberculosa ou viral. A pesquisa de celulas neoplásicas no líquido ascitico foi negativa.
Exame Citológico | Exame Químico |
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Aspecto: hematico | Proteínas: 5,4 g/dL |
Nº Células nucleadas: 675/uL | LDH: 289 U/L |
Nº Eritrócitos: 58000/uL | Amilase: 66,0 U/L |
Neutrófilos: 67% | Glicose: 58 mg/dL |
Eosinófilos: 1% | |
Basófilos: 0% | |
Linfócitos: 20% | |
Células mesoteliais/ macrófagos: 12% | |
Culturas em aerobiose e anaerobiose: Negativas | |
Pesquisa de células neoplásicas: Negativo |
Colocando-se como mais provável a hipótese de PEE, procedeu-se à troca do cateter de diálise peritoneal para cumprimento de lavagens peritoneais e foi iniciada terapêutica com tamoxifeno 20 mg bid e prednisolona 0,5 mg/kg/ dia. Constatou-se melhoria clínica progressiva, caracterizada por aumento do apetite, redução do volume abdominal e apirexia mantida. Laboratorialmente verificou-se uma descida de parâmetros inflamatórios, e radiologicamente uma franca redução da ascite, menor realce do peritoneu e apenas ligeiro espessamento de ansas ileais (Fig. 3). O doente teve alta para o domicílio ao fim de 13 dias de internamento, mantendo a terapêutica, com o diagnóstico final de PEE em fase inflamatória (estádio 2).
Discussão
A PEE e uma doença rara de apresentação insidiosa, associada a extenso espessamento e fibrose peritoneal, de etiologia multifactorial.13 Associa-se habitualmente, mas não exclusivamente, a DRC terminal com necessidade prolongada de dialise peritoneal, destacando-se como factores de risco: idade, cronicidade da tecnica, peritonites recorrentes, cessacao abrupta de dialise peritoneal, composição da solucao dialitica e exposicao a clorohexidina e a beta-bloqueantes.13 Como causas menos comuns de PEE destacam-se doenças auto-imunes (nomeadamente sarcoidose), neoplasia peritoneal/intra-abdominal, quimioterapia intra-peritoneal e tuberculose peritoneal.13
Permanece incerto se a PEE representa uma progressão natural da esclerose peritoneal simples ou uma entidade clínica distinta. A presença de esclerose simples não é reconhecida como factor de risco suficiente para PEE, pelo que se assume a necessidade de um duplo evento: na presença de um peritoneu inflamado com esclerose simples, sobrepõe-se uma segunda agressão, com activação de processos celulares e tecidulares, levando a fibrose, espessamento, formação de aderências e eventual encapsulamento com encarceramento de ansas e obstrução intestinal.13
As manifestações clínicas precoces incluem anorexia, náuseas e vómitos, obstipação ou diarreia e ascite hemática.
Tardiamente prevalece a dor abdominal, perda de peso, enfartamento, isquemia e estrangulamento intestinais, associados a significativa desnutricao e mortalidade.13,15
Na literatura encontram-se classicamente definidos 4 estádios da doença: pre-PEE (estádio 1) - ausência de sintomatologia ou ascite ligeira; fase inflamatória (estádio 2) - sintomática, com náuseas e diarreia, compatível com encapsulamento parcial do intestino e edema por inflamacao ligeira; encapsulamento (estádio 3) - sintomas de obstrução intestinal e inflamação moderada a grave; ileus crónico (estádio 4) - obstrução absoluta causada pelo espessamento do casulo fibroso encapsulante, com pouca ou nenhuma inflamação.13
O seu diagnostico é desafiante, devendo basear-se nas manifestações clínicas, radiológicas e achados anatomopatológicos.
A TC-abdominal é a melhor técnica de imagem para o diagnóstico, embora em fases precoces apresente alterações inespecíficas. Numa fase crónica surgem alterações como realce e espessamento peritoneal, calcificação, espessamento da parede intestinal, obstrução intestinal e colecções loculadas.16
A abordagem terapeutica inclui a descontinuacao da dialise peritoneal, lavagens peritoneais e suporte nutricional, incluindo nutricao parenterica total.13 O tamoxifeno, com propriedades antifibróticas pela inibição e modulação do TGF-β, tem demonstrado benefício na evolução da doença e mortalidade,17-19em associação com corticoterapia. Adicionalmente, tem sido proposta a peritonectomia e enterolise, reservada para casos avançados ou em situações emergentes.12-14
Medidas preventivas devem ser implementadas, nomeadamente descontinuacao de dialise peritoneal apos um maximo de 8 anos,20 cuidados de higiene na tecnica dialitica e utilizacao de inibidores da enzima conversora da angiotensina.21
O caso clinico descrito caracteriza-se por uma PEE em estádio 2, com achados incipientes de envolvimento intestinal e eventual encapsulamento. Embora a data do diagnostico o doente não se encontrar sob diálise peritoneal, a ocorrência de episódios recorrentes de peritonite e a sua suspensao abrupta após vários anos de técnica poderá ter desencadeado o processo fisiopatológico de PEE. Destaca-se ainda a excelente resposta a terapêutica proposta, que reitera o seu papel central na abordagem terapêutica desta doença.