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Revista Crítica de Ciências Sociais
versión On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.113 Coimbra set. 2017
RECENSÃO
Madden, David; Marcuse, Peter (2016), In Defense of Housing. The Politics of Crisis*
Simone Tulumello
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. Prof. A. De Bettencourt, 9, 1600-189, Lisboa, Portugal simone.tulumello@ics.ulisboa.pt
In Defense of Housing. The Politics of Crisis
Madden, David; Marcuse, Peter (2016), In Defense of Housing. The Politics of Crisis. London/New York: Verso, 240 pp.
“Críticos, reformadores e ativistas têm evocado o termo ‘crise habitacional’ por mais de um século. A expressão tornou-se de novo omnipresente após o colapso financeiro global de 2008. Mas devemos ser cuidadosos na utilização do conceito de crise. A ideia de crise implica que a habitação inadequada ou inacessível é uma condição fora do normal, um afastamento temporário de um critério que funciona bem. Mas para as classes trabalhadoras e comunidades pobres, a crise habitacional é a normalidade. A escassez de habitação tem sido a marca dos grupos dominados ao longo da história.” (p. 9; tradução do autor)
A “crise habitacional” tornava-se tema de discussão em Lisboa precisamente na altura em que acabava de ler In Defense of Housing. A visita em dezembro de 2016 de Leilani Farha, Relatora Especial das Nações Unidas para a Habitação Adequada, desencadeou debate político e, aparentemente, ação pública, em torno de um tema que, durante muito tempo, parecia já não ser relevante. Após uma reportagem e uma entrevista a esta relatora publicadas no jornal Público,1 a Assembleia da República recomendou ao governo que procedesse ao recenseamento das situações de habitação precária (Resolução da Assembleia da República n.º 48/2017) e começou o processo de preparação de uma lei de bases da habitação.2 Lisboa encontra-se no meio de uma “tempestade perfeita” no que toca à habitação.3 Por um lado, persistem graves situações de habitação precária e de habitação social em condições extremas.4 Por outro, muitas áreas do centro da cidade encontram-se num processo de rápida gentrificação e/ou turistificação, que resultam da enorme pressão imobiliária motivada por uma série de fatores que incidem sobre a oferta e procura de habitação: pelo lado da oferta, veja-se a liberalização do mercado de arrendamento (Novo Regime de Arrendamento Urbano aprovado nos anos da “Troika”); pelo lado da procura, vejam-se fenómenos como investimentos estrangeiros atraídos pelos Vistos Gold, a repentina ascensão de Lisboa entre várias cidades cool à escala global, ou a afluência de estudantes e start-uppers. Porém, seria errado considerar conjuntural a crise habitacional em Lisboa, uma vez que se trata da “óbvia” consequência de uma trajetória com décadas de história e várias vertentes: o incumprimento e as falhas do Programa Especial de Realojamento lançado em 1993 para “acabar com as barracas”;5 a financeirização facilitada pela transição da política da habitação para o suporte à propriedade individual a partir do fim dos anos 80;6 e, de uma perspetiva mais geral, a neoliberalização das políticas urbanas e de regeneração.7
O livro de David Madden e Peter Marcuse proporciona pistas úteis para a compreensão da conexão entre crises locais, como a que experimenta Lisboa, e a escala global da habitação e sua financeirização; e entre a dimensão conjuntural e o longo termo da mercantilização da habitação. In Defense of Housing é um ensaio político, fundamentado na extensa experiência de investigação e ativismo de Peter Marcuse nas áreas da crítica do planeamento urbano, da gentrificação e da habitação, com uma robusta estrutura teórica assente no Marxismo clássico, bem como em autores como Henri Lefebvre ou Iris Marion Young.8
Logo na introdução os autores clarificam a sua conceção do “problema” e o contributo esperado: “Entendemos a habitação de uma perspetiva mais abrangente (para além da perspetiva tecnicista dominante): como um problema de economia política. O habitacional é político – ou seja, a forma que um sistema habitacional assume é sempre o resultado de lutas entre diferentes grupos e classes. A habitação levanta inevitavelmente questões sobre a ação pública e o sistema económico em geral. Porém, o modo através do qual o antagonismo social influencia a habitação tem sido frequentemente ocultado. Este livro constitui uma tentativa de os trazer de volta à luz.” (p. 4; tradução do autor).
O livro estrutura-se em torno de um conflito central entre as conceções alternativas, mas (inevitavelmente?) entrelaçadas, da habitação (housing) como casa (home) e (valor) imobiliário (real estate). Organiza-se em cinco capítulos, com uma progressão que nos leva da abordagem conceptual até ao papel dos movimentos sociais. O primeiro capítulo mostra como a “crise” atual resulta das trajetórias que levaram o paradigma do real estate a ganhar força sobre a home9 O segundo capítulo debate as implicações da mercantilização da habitação para alienação social e o acréscimo da desigualdade. O terceiro capítulo enfatiza a interseccionalidade entre a habitação e as questões de (opressão de) classe, género e “raça”.10 O quarto capítulo expõe os “mitos” da política de habitação no contexto das democracias liberais ocidentais (sobretudo nos EUA), sugerindo que as políticas têm reproduzido, mais do que resolvido, o problema da habitação. Finalmente o quinto capítulo faz uma reflexão sobre o papel dos movimentos sociais em Nova Iorque, as suas vitórias e os seus retrocessos. Na conclusão os autores apresentam uma série de propostas para reformas “transformativas”, nem utópicas, nem “liberais” (no seio do paradigma dominante): demandas atuáveis e, ao mesmo tempo, capazes de proporcionar a progressiva viragem de paradigma (do predomínio do real estate para a home).
In Defense of Housing é um importante contributo teórico – organizando de forma coerente muitas perspetivas críticas sobre habitação e suas políticas – e político – proporcionando úteis instrumentos conceptuais e práticos ao ativismo e à reforma política. Seria de esperar, no quadro da nova atenção ao tema que sublinhei inicialmente, uma rápida tradução para português, que pudesse levar o livro além do mundo académico.
Deve no entanto sublinhar-se a sua principal limitação, aliás reconhecida pelos seus autores em algumas passagens. Embora “global” no seu objetivo teórico, In Defense of Housing é claramente influenciado pelo contexto norte-americano, sobre o qual se debruçou grande parte da atividade dos autores. Um bom exemplo pode ser encontrado na sétima proposta de reforma (democratize public housing) que, basicamente, se reduz à retirada de poder de “peritos e burocratas” (pp. 213-216). Algo que é muito compreensível no contexto dos EUA onde o ceticismo face aos “peritos” está relacionado com o enorme poder que tiveram personagens como Robert Moses (talvez o padre do modernismo urbanista norte-americano) e o papel do zonamento na (re)produção de padrões de segregação e exclusão – fenómenos que nos contextos europeus tiveram padrões bastante diferentes, incluindo na habitação onde muitas vezes os “peritos” deram voz a instâncias alternativas às dominantes.11
De um modo geral, a crítica de Madden e Marcuse é “global” numa escala que, porém, corresponde ao mundo (pós-)industrializado (e mais urbanizado), ou seja principalmente ao contexto dito “ocidental”, com as suas dinâmicas próprias e os seus ciclos de provisão de welfare – onde encontramos padrões de urbanização concentrada e um papel central do Estado através das “políticas da habitação”. Assim, uma pista para futura investigação e reflexão teórica será uma expansão do foco da análise para as dinâmicas de urbanização global, ou melhor, planetária,12 e as dimensões de habitação (e suas políticas) nessa escala – focando nas (des)conexões entre centros e “periferias” do sistema capitalista, contextos pós- e “proto-industriais”, contextos onde a “crise” assume um cariz mais conjuntural ou mais estrutural. Numa época em que a gentrificação parece tornar-se verdadeiramente global, e a habitação um dos motores centrais das dinâmicas de opressão e resistência, o livro de Madden e Marcuse constitui um importante avanço, embora parcial, para uma compreensão da “crise planetária da habitação”.
NOTAS
* Agradeço a Ana Catarina Ferreira pela revisão do Português.
1 Ver www.publico.pt/2016/12/11/sociedade/noticia/este-e-o-apocalipse-dos-sem-direito-a-casa-1754071 e www.publico.pt/2016/12/13/sociedade/noticia/nao-se-pode-demolir-uma-casa-sabendo-que-a-pessoa-vai-ficar-semabrigo-1754581. Consultados a 26.06.2017.
2 Ver www.dn.pt/lusa/interior/ps-da-luz-verde-a-deputada-independente-helena-roseta-para-criar-lei-de-bases-da-habitacao-6241978.html. Consultado a 26.06.2017.
3 Uma expressão que me foi sugerida em conversas com o Luís Mendes, a quem agradeço.
4 Ver o trabalho da Habita, Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade (www.habita.info/).
5 A história do PER e, especialmente, o papel dos peritos na sua ideação e implementação são os temas fulcrais do projeto “exPERts. Making sense of planning expertise: Housing policy and the role of experts in the PER” (https://expertsproject.org/; financiamento FCT: PTDC/ATP-EUR/4309/2014).
6 Ver: Santos, Ana Cordeiro; Teles, Nuno; Serra, Nuno (2014), “Finança e habitação em Portugal”, Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas, 2
7 Ver: Mendes, Luís (2014), “Gentrificação e políticas de reabilitação urbana em Portugal: uma análise crítica à luz da tese rent gap de Neil Smith”, Cadernos Metrópole, 16(32), 487-511; Tulumello, Simone (2016), “Reconsidering Neoliberal Urban Planning in Times of Crisis: Urban Regeneration Policy in a ‘Dense’ Space in Lisbon”, Urban Geography, 37(1), 117-140.
8 Para exemplos de trabalhos teóricos, ver: Madden, David (2012), “City Becoming World: Nancy, Lefebvre, and the Global-urban Imagination”, Environment and Planning D, 30(5), 772-787; Marcuse, Peter (2014), “Reading the Right to the City”, City, 18(1), 4-9.
9 Deve dizer-se que é bastante surpreendente a ausência de Gramsci entre as referências teóricas utilizadas, pois o conceito de hegemonia podia proporcionar importantes pistas para uma melhor compreensão da própria aceitação geral da dominação do paradigma de real estate entre as classes e os grupos que mais são afetados pela crise da habitação.
10 No mundo anglófono, o tema da “raça” é relativamente pouco conflitual, no sentido em que até nos círculos científicos preocupados com o “racismo” (como no caso deste livro) se aceita a utilidade do conceito de “raça” para definir diferenças que, na Europa, são mais frequentemente consideradas étnicas. Eis a utilização das aspas.
11 Utilizando o exemplo do PER e as primeiras evidências do projeto exPERts já mencionados, veja-se o trabalho do grupo de Ecologia Social do LNEC nos anos 90, ou de “peritos” como Isabel Guerra ou Helena Roseta.
12 Veja-se o trabalho de Neil Brenner e colegas no Urban Theory Lab da Harvard Graduate School of Design.