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Gazeta Médica

versión impresa ISSN 2183-8135versión On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.10 no.4 Queluz dic. 2023  Epub 29-Dic-2023

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.585 

Casos Clínicos

Dilemas da Sialoadenite Esclerosante Crónica: Um Caso Clínico e Revisão da Literatura

Dilemmas of Chronic Sclerosing Sialadenitis: A Case Report and Literature Review

1. Núcleo Académico e Clínico de Otorrinolaringologia, CUF Tejo, Lisboa, Portugal.

2. Serviço de Anatomia Patológica, CUF Descobertas, Lisboa, Portugal.


Resumo

Reporta-se um caso clínico de sialoadenite esclerosante crónica focando aspetos clínicos, laboratoriais e histológicos, e realiza-se uma revisão da literatura com discussão da abordagem clínica multidisciplinar desta patologia. A sialoadenite esclerosante crónica é uma doença inflamatória crónica, incomum, que se integrou recentemente no espectro de doenças associadas à IgG4. Esta patologia simula patologia neoplásica cervical e o seu diagnóstico definitivo é difícil. A sua etiologia, tratamento e evolução são na atualidade temas de debate científico.

Palavras-chave: Doenças da Glândula Submandibular; Glândula Submandibular; Imunoglobulina G; Sialadenite

Abstract

We report a case of chronic sclerosing sialoadenitis focusing on clinical, laboratory and histological aspects and perform a review of literature with discussion of multidisciplinary clinical approach to this pathology. Chronic sclerosing sialoadenitis is an uncommon, chronic inflammatory disease that has been recently included in the IgG4-associated diseases spectrum. This pathology simulates cervical neoplastic pathology, and its definitive diagnosis is difficult. Its etiology, treatment and evolution remain topics of scientific debate.

Keywords: Immunoglobulin G; Sialadenitis; Submandibular Gland; Submandibular Gland Diseases

Introdução

O presente caso representa uma apresentação atípica de sialoadenite esclerosante crónica e ilustra as dificuldades de abordagem desta patologia de um ponto de vista multidisciplinar. A sialoadenite esclerosante crónica é uma doença incomum, de natureza inflamatória, que se integrou recentemente no espectro de doenças associadas à IgG4. Esta patologia benigna simula patologia neoplásica cervical e o seu diagnóstico definitivo é difícil. A sua etiologia, tratamento e evolução são temas de debate científico.

Caso Clínico

Mulher de 35 anos recorreu à consulta de Otorrinolaringologia por tumefação cervical a nível submandibular, bilateralmente, e edema da face com 6 meses de evolução. Negava qualquer outra sintomatologia associada, nomeadamente febre, perda de peso, sudorese noturna, disfagia ou dispneia. Como antecedentes pessoais referia asma e rinite alérgica. Referia ter consumos de tabaco (2 unidades-maço-ano). Os seus antecedentes familiares eram irrelevantes, tendo residido em Angola até 2016.

Ao exame objetivo, apresentava à inspeção um edema ligeiro ao nível da região geniana, região parotídea, ângulo e ramo horizontal da mandíbula, a par de uma tumefação ao nível da região submandibular bilateralmente. A palpação revelava edema mole e ligeiro ao nível da face, sem sinal de digitopressão, e massas localizadas às regiões submandibulares, de consistência dura, não aderentes aos planos superficiais ou profundos, sem sinais inflamatórios da pele suprajacente. Não se palpavam adenopatias nas restantes áreas cervicais. A nasofibroscopia revelava mucosa espessada ao nível do cavum, sem obliteração das fossetas de Rosenmüller, aspetos compatíveis com hipertrofia linfoide. A otoscopia, avaliação orofaríngea e restante avaliação da cavidade nasal e laringe não detetaram alterações.

Da avaliação analítica realizada, destacava-se a presença de eosinofilia no sangue periférico e eletroforese das proteínas séricas com ligeiro aumento policlonal das gamaglobulinas (Tabela 1).

Tabela 1 Avaliação analítica inicial. 

Hemograma/leucograma/trombocitograma Valores de referência
Hemoglobina 13,2 g/dL 12,0 - 15,0 g/dL
Eritrócitos 4,42x106/⎧L 3,80 - 4,80
Leucócitos 6,2x103/⎧L 4,0 - 10,0
Neutrófilos 39,3% 40,0 - 80,0
Linfócitos 38,9% 20,0 - 40,0
Eosinófilos 14,7% 1,0 - 6,0
Plaquetas 289x103/⎧L 150 - 400
Eletroforese das proteínas séricas
Aumento policlonal ligeiro das gamaglobulinas
Provas de função/lesão hepática
AST 19 U/L 15 - 37
ALT 25 U/L 14 - 59
GGT 20 U/L 5 - 55
Bilirrubina total 0,3 mg/dL 0,2 - 0,8
Anticorpos
ANA (anticorpos antinucleares) Negativos -
Ac. HIV 1 e 2 Não reativo (0,17) Não reativo <1,0
Ac. EBV IgG Positivo (>750/mL) Positivo >20,00
Ac. EBV IgM Negativo (<10,00 U/mL) Negativo <20,00
Ac. anti-Bartonella IgG Negativo (título <1/320) -
Ac. anti-Bartonella IgM Negativo (título <1/100) -
Outros
Proteína C reativa 0,2 mg/dL 0,05 - 1,00
Enzima conversora da angiotensina (ECA) 25,9 U/L 13,3 - 63,9
Lactato desidrogenase (LDH) 130 U/L 81 - 234

A ecografia cervical revelou adenopatias nas áreas ganglionares cervicais posteriores e hipertrofia das glândulas submandibulares com áreas hipoecogénicas e heterogeneidade da estrutura, com maiores dimensões à direita e glândulas parotídeas com ligeiro aumento do volume e parênquima heterogéneo com várias áreas pseudonodulares.

As duas citologias de aspiração por agulha fina (CAAF) da glândula submandibular realizadas fora da nossa instituição mostraram fibrose e processo inflamatório crónico com linfócitos T e B, mas foram inconclusivas quanto a diagnóstico definitivo.

A doente realizou tomografia computorizada (TC) cervico-tóraco-abdominal, que revelou adenomegalias mediastínicas inespecíficas.

Após discussão multidisciplinar e com a doente, propôs-se realização de biópsia excisional da glândula submandibular direita e biópsia do cavum sob controlo endoscópico. Intraoperatoriamente observava-se uma massa sem plano de clivagem com a glândula submandibular, de consistência dura, sem sinais aparentes de necrose, abcesso ou invasão local. Na peça de submandibulectomia (Fig. 1), identificava-se microscopicamente tecido de glândula salivar com atrofia, extensa fibrose periductal e interlobular com padrão estoriforme (Fig. 2A), e intenso infiltrado inflamatório predominantemente constituído por linfócitos B (CD20+) e T (CD3+), assim como plasmócitos (CD138+), sem restrição de cadeias leves, e eosinófilos (Fig. 2B). Foram contabilizados mais de 100 plasmócitos IgG4 por campo de grande aumento (Fig. 3). Os aspetos histológicos observados foram compatíveis com o diagnóstico de doença associada a IgG4 - sialoadenite esclerosante crónica (tumor de Küttner). O exame anatomopatológico revelou hiperplasia ligeira linfoide na biópsia do cavum.

Figura 1 Aspeto macroscópico da peça de submandibulectomia, com aumento das dimensões totais da glândula (a barra equivale a 1 cm), e presença de áreas brancas, de limites mal definidos, no parênquima. 

Figura 2 Histologia da glândula salivar. A) Acentuada fibrose e atrofia do parênquima, associadas a infiltrado inflamatório crónico. B) Identificam-se linfócitos, plasmócitos e eosinófilos frequentes. 

Figura 3 Estudo imunohistoquímico para identificação de plasmócitos IgG4+. 

A doente iniciou tratamento com corticoide oral (prednisolona 40 mg), com redução progressiva ao longo de 3 meses. Na consulta de seguimento aos 3 meses, apresentava uma franca redução da tumefação submandibular e do edema da face. A ecografia revelou manutenção das alterações estruturais da glândula submandibular esquerda e glândulas parotídeas, sem evidência de adenopatias ou recorrência de doença da loca cirúrgica decorrente de submandibulectomia direita prévia.

A razão IgG total/IgG4 foi então pesquisada com intuito de seguimento da doença após 3 meses de terapêutica com corticoides, revelando uma hipergamaglobulinémia [IgG sérica 2163,8 mg/dL; valores de referência: 650,0-1600,0 mg/dL) e uma IgG4 sérica de 838,0 mg/dL (valores de referência: 9,0-104,0 mg/dL), com um rácio de IgG/IgG4 de 38,7%.

Discussão

A sialoadenite esclerosante crónica é uma doença crónica e um diagnóstico incomum, com um espectro de manifestações clínicas variável, frequentemente designada na literatura como tumor de Küttner. Em 1896, Küttner descreveu uma patologia que cursava com massas localizadas à região submandibular, firmes e, portanto, difíceis de distinguir de patologia neoplásica das glândulas submandibulares. 1

Parece haver alguma preponderância para o sexo masculino e origem na sexta década de vida, o que vai ao encontro da maioria dos doentes com manifestações de doenças associadas a IgG4, onde foi recentemente incluída. (2 É classicamente referida dor e edema com relação com as refeições, enquanto uma minoria apresenta massas submandibulares bilaterais indolores, como referido no caso clínico. Poderão existir ainda adenopatias cervicais associadas e o atingimento das parótidas ocorre numa minoria de doentes. (3

Devido a esta definição ampla, é provável que ao longo dos anos tenham sido incluídas diferentes patologias nesta designação. Por este motivo, a epidemiologia e prevalência de sintomatologia não são totalmente conhecidas.

O seu diagnóstico diferencial inclui a sialolitíase crónica, síndrome de Sjögren, doença de Kimura, doenças granulomatosas como a sarcoidose, patologia infeciosa e neoplasias primárias ou secundárias da glândula submandibular, particularmente linfomas. (1,4

A abordagem da massa cervical deverá integrar um conjunto de princípios que permitam, por um lado, um diagnóstico célere e por outro, a não inviabilização de uma possível terapêutica médica ou cirúrgica curativas. A massa cervical, sobretudo na idade adulta, deve ser considerada uma doença maligna até prova em contrário. (5) Uma anamnese e utilização de exames de imagem relativamente inócuos como a ecografia e TC, aliados a uma avaliação laboratorial mais ou menos alargada, permitem estreitar o diagnóstico diferencial.

Valores normais de enzima conversora da angiotensina (ECA), na ausência de outra sintomatologia, tornam a hipótese de sarcoidose improvável. A não deteção de anticorpos anti-nucleares (ANA) afasta a possibilidade de algumas patologias autoimunes, nomeadamente de síndrome de Sjögren, sendo expectável nesse caso a positividade de anti‐SSA/anti‐Ro bem como sintomas de sicca. (6 Foram ainda pesquisadas causas infeciosas, como infeção por Bartonella spp., que se revelou negativa. A eosinofilia presente foi inicialmente interpretada no contexto da asma e rinite. No entanto, a presença destas comorbilidades é superior em doentes com sialoadenite esclerosante crónica, sendo esta uma causa secundária de eosinofilia e hipergamaglobulinémia policlonal, ambas presentes na doente. (7 Outras patologias como a doença de Kimura ou hiperplasia angiolinfoide com eosinofilia poderiam também explicar as manifestações hematológicas presentes. (8

A CAAF é um exame seguro, que fornece informações citológicas valiosas que poderão estabelecer diagnósticos definitivos. No entanto, para um conjunto limitado de patologias onde se inclui a sialoadenite esclerosante, a avaliação da estrutura histológica é necessária para o diagnóstico. (9

A ausência de sintomatologia, a bilateralidade e o caráter insidioso da doença colocaram muitas das hipóteses diagnósticas como improváveis. No entanto, os achados imagiológicos e analíticos inespecíficos, associados a duas CAAF inconclusivas, não permitiram a exclusão de patologia neoplásica, nomeadamente de origem hematológica, pelo que a biópsia excisional foi necessária para o diagnóstico definitivo.

A obtenção do material histológico não é isenta de riscos, incluindo complicações imediatas e tardias, sobretudo no contexto de patologia maligna, com risco aumentado de recorrência regional tardia e metástases à distância.

A sialoadenite esclerosante crónica apresenta características anatomopatológicas próprias. Para o anatomopatologista, é um diagnóstico diferencial desafiante que inclui, entre outros, a síndrome de Sjögren, a sialoadenite linfoepitelial e linfomas. Apesar das semelhanças morfológicas, a sialoadenite esclerosante parece apresentar quantidades de IgG4 muito superior aos restantes diagnósticos, sendo necessário a sua pesquisa direta para distinção. As restantes principais características histológicas são a presença de um denso infiltrado linfoplasmocitário, fibrose estoriforme e flebite obliterativa. (10

Em 2011, foram propostos critérios diagnóstico definitivos de doença associada a IgG4, que deverão incluir todos os seguintes: evidência clínica de doença, concentração sérica de IgG4 de >135 mg/dL; infiltração de >10 células IgG4+ por campo de grande aumento (ainda que com cut-off variável entre órgão) e uma relação IgG4/IgG total >40%. Tumores malignos, patologias autoimunes, como artrite reumatoide, e patologia alérgica podem levar a um aumento sérico substancial de IgG4, pelo que a medição sérica de IgG4 é insuficiente para estabelecer diagnóstico definitivo, levando a falsos positivos. Por outro lado, uma percentagem relevante de doentes pode não apresentar aumento sérico da IgG4, dificultando o seu diagnóstico, que apenas poderá ser estabelecido pela anatomia patológica, devendo o rácio sérico IgG4/IgG total manter-se nos 40%.11 No caso clínico apresentado, todos os critérios diagnósticos foram cumpridos, exceto o rácio IgG4/IgG total, que foi obtida no período pós-corticoterapia, mas que apresentou valores muito próximos dos 40%, admitindo-se que poderá em parte ter sido alterada pela terapêutica.

O espectro de doenças associadas à IgG4 apresenta manifestações fenotípicas que podem ser organizadas da seguinte forma: grupo I - doença pancreato-hepatobiliar; grupo II - doença retroperitoneal e da aorta; grupo III - doença localizada à cabeça e pescoço; grupo IV - doença da cabeça e pescoço (Mikulicz), com atingimento sistémico. (12 O presente caso parece enquadrar-se no fenótipo tipo III da doença, não se tendo observado sinais e sintomas ou alterações imagiológicas na TC tóraco-abdomino-pélvica sugestivas de fibrose sistémica.

Os achados imagiológicos são inespecíficos. Incluem lesões hipoecóicas preferencialmente nas glândulas submandibulares frequente sem envolvimento das glândulas parotídeas. (13) Podem apresentar adenopatias locorregionais. Na tomografia computorizada observa-se uma densidade e captação de contraste homogéneas nas glândulas. Na ressonância magnética (RM), as lesões apresentam um sinal baixo a intermédio e homogéneo em imagens ponderadas em T2 e baixo sinal em T1 com captação de contraste homogéneo. (14

O tratamento desta patologia inclui corticoterapia com doses inicialmente altas (prednisolona 30-40 mg) com desmame progressivo ao longo de 3-6 meses. A recorrência é frequente, ocorrendo em mais de 50% dos doentes. (2 Na doença refratária ou recorrente, a utilização de fármacos poupadores de corticoides como azatioprina, micofenolato ou rituximab está indicada.

A malignização é extremamente rara, estando descritos alguns casos em doentes com doença IgG4 com envolvimento da órbita. (2 Parece também haver um aumento do risco de desenvolvimento de linfomas B sistémicos. (15

Este diagnóstico, se suspeitado clinicamente, poderá suscitar uma quantificação sérica de IgG4 e relação com IgG total, bem como pesquisa orientada para identificação de envolvimento sistémico, prévias à realização de biópsia excisional, podendo, segundo alguns autores, evitá-la. (1) No entanto, qualquer uma destas opções só deverá ser tomada após realizado um estudo intensivo com o intuito de excluir os restantes diagnósticos diferenciais. Havendo patologias que não são passíveis de exclusão sem recurso a exames invasivos, nomeadamente biópsia excisional, será prudente manter o seguimento apertado destes doentes.

Conclusão

A sialoadenite esclerosante crónica é um diagnóstico diferencial a considerar na abordagem de massas cervicais, sobretudo na região submandibular. A sua inclusão no diagnóstico diferencial irá permitir um diagnóstico mais rápido, excluir a presença de envolvimento sistémico e orientar o seguimento dos doentes. Trabalhos futuros poderão focar-se na definição clara de critérios diagnósticos que permitam diminuir o número de biópsias excisionais nos doentes e, consequentemente, a sua morbilidade.

Referências

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Declaração de Contribuição/Contributorship Statement

JPP: Escrita do artigo (introdução e discussão)

CAV: Revisão de literatura e escrita do artigo

AHC, HE, FT e JP: Escrita do artigo (caso clínico e discussão)

JPP: Article writing (introduction and discussion)

CAV: Literature review and article writing

AHC, HE, FT e JP: Article writing (clinical case and discussion)

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 07 de Abril de 2022; Aceito: 30 de Outubro de 2023; : 29 de Novembro de 2023; Publicado: 29 de Dezembro de 2023

Autor Correspondente/Corresponding Author: José Pedro Pais [jose.pais@cuf.pt] ORCID iD: 0000-0001-8409-2448

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