Introdução
A coexistência de quatro línguas nacionais - alemão, francês, italiano e romanche - é uma característica fundamental da Suíça. Porém, com a crescente globalização, várias outras línguas de herança (LH) se juntaram a estas quatro, dada a forte presença de imigrantes na Suíça, representando 37,7% da população1. No presente texto, entendemos LH enquanto língua da família, aprendida no seio familiar e que difere da língua da sociedade de acolhimento e da língua de escolarização (Gonçalves, 2016; Schader, 2016; Valdés, 2001; Zingg, 2020).
Com o objetivo de promover “a coesão interna e a diversidade cultural do país”, o Art. 2º da Constituição Federal da Confederação Suíça2 estabelece a base legal para o multilinguismo. Contudo, os quatro princípios orientadores3 - igualdade das línguas, liberdade linguística dos cidadãos, territorialidade das línguas e proteção das línguas minoritárias - prendem-se com a natureza multilingue intrínseca do país e não tanto devido às várias LH faladas na Suíça (isto é, o plurilinguismo dos seus cidadãos). Ou seja, estes princípios estão relacionados com o facto da Suíça ser uma nação resultante de uma “vontade", historicamente comprovada, adquirindo a forma de Confederação em 1848, como a conhecemos na atualidade (Maissen, 2019).
O ensino de língua de herança (ELH), também conhecido como ensino de língua e cultura de origem, dependendo do cantão, existe atualmente na Suíça em mais de 40 línguas e tem lugar nas escolas públicas. As aulas de LH têm sido, até ao presente, consideradas enquanto oferta educativa adicional para alunos com uma língua diferente da do país de acolhimento. Por conseguinte, em geral, o apoio à aprendizagem da LH não é organizado ou financiado pelas autoridades educativas suíças. O ELH é patrocinado por: i) associações privadas, sejam locais, regionais ou nacionais; ii) pelos países de origem, no caso de países tradicionais de imigração como Espanha, Itália, Portugal e Turquia, e anteriormente também a ex-Jugoslávia; ou ainda, iii) indivíduos e organizações sociais suíças (Schader, 2016).
O trabalho colaborativo entre o ensino regular (ER) e o ELH situa-se sobretudo ao nível da organização logística, sendo muito reduzido a nível pedagógico-didático. A reputação social do ELH é ainda diminuta, ainda que sejam produzidos relatórios sobre o seu funcionamento, desenvolvimento e implementação por algumas entidades educativas sobretudo nos cantões de Zurique e Basileia (Volksschulamt, 2016).
As diferentes situações a nível financeiro dos responsáveis pelo ELH e as exigências profissionais que recaem sobre os professores, tanto do ER como do ELH, dificultam a cooperação, embora nos últimos anos tenha sido dada alguma atenção ao ELH na Suíça e tenham sido desenvolvidos projetos para uma maior inclusão de todas as LH no ER suíço (Giudici & Bühlmann, 2014). Com efeito, desde 2011 que os fundos federais para projetos têm aberto oportunidades de desenvolvimento a nível nacional, apoiando a inclusão do ELH no sentido de uma didática do plurilinguismo no sistema educacional suíço, bem como a promoção da dimensão inter e transcultural.
Contudo, a cooperação entre professores do ELH e do ER tem-se limitado, até ao momento, a questões de organização, até porque este ensino é de frequência voluntária e não está integrado nem no horário escolar, nem no currículo. Iniciativas de cooperação entre o ELH e os professores do ER ainda são raras e pouco conhecidas na maioria dos cantões da Suíça. A mais-valia e os recursos dos professores do ELH são, portanto, pouco rentabilizados e explorados ainda que existam muitos pontos de contato entre os currículos, nomeadamente entre o Quadro de Referência para o ELH4 (Volksschulamt, 2013), recomendado aos responsáveis por esta oferta, e os currículos escolares suíços. A Universidade de Zurique (Pädagogische Hochschule) publicou, igualmente, em 2016, uma série de materiais para o ELH (Schader, 2016), traduzidos em várias das LH mais significativas da Suíça e disponibilizados online5.
Originalmente, o ELH era visto como uma preparação para um possível retorno ao país de origem, tanto nos países de emigração como nos países de imigração. Hoje, este ensino é politicamente reconhecido e visto como um contributo valioso para o desenvolvimento da competência plurilingue e intercultural de alunos com histórico de migração, e como apoio à construção de uma identidade coesa e plural (Gonçalves, 2020; Volksschulamt, 2020).
As recomendações de 1991 da Conferência Suíça dos Diretores Cantonais de Instrução Pública6 (CDIP, 1991, 2017, 2019) estabelecem orientações organizacionais para o ELH, nomeadamente: o uso gratuito de salas de aula e de infraestruturas, a promoção da cooperação entre o ELH e o ER, bem como a valorização das competências linguísticas na LH dos alunos. A estratégia da língua nacional (CDIP, 2014) e a concordata intercantonal de 2007 (CDIP, 2011) seguem a mesma orientação, especificando que o apoio organizacional dos cantões está vinculado à neutralidade política e religiosa do ELH. As regras podem diferir de cantão para cantão e a cooperação a nível cantonal e municipal também pode assumir particularidades diferentes.
A importância do multilinguismo está a crescer no mundo, sendo as sociedades atuais cada vez mais móveis e moldadas pelos processos de globalização. Neste contexto, uma educação em línguas que incorpore diferentes línguas abre a possibilidade de compreender o mundo de diferentes pontos de vista (Council of Europe, 2016). Uma visão de múltiplas perspetivas apoia a abertura em relação ao Outro, podendo contribuir substancialmente para a coesão da sociedade, um dos objetivos da Confederação Suíça, como já referido.
Abordagens didáticas ancoradas num modelo que combine a língua de escolarização, o bilinguismo, as línguas estrangeiras e as línguas de herança abrem caminhos para práticas como as sugeridas e defendidas pelo Conselho da Europa para a promoção do repertório plurilingue e das competências interculturais, como objetivo educacional abrangente:
A competência plurilíngue refere-se ao repertório de recursos que cada aprendente adquire em todas as línguas que conhece, ou aprendeu, e que também se relaciona com as culturas associadas a essas línguas (línguas de escolarização, línguas regionais/minoritárias e de migração, línguas estrangeiras modernas ou clássicas). (Council of Europe, 2010, p. 4)
Assim, o contexto de superdiversidade linguística da Suíça justifica um olhar e um fazer didático atento e aberto à presença ativa de todas as línguas na sala de aula.
Neste texto, argumentamos a favor de uma educação em línguas que acolha, rentabilize e desenvolva o repertório linguístico de todos os alunos. Defendemos, especificamente, o investimento nas LH, que poderá passar por um trabalho colaborativo entre os professores do ER e os professores do ELH. Por conseguinte, interessa-nos: i) compreender em que áreas a colaboração entre o ER e o ELH pode ser desenvolvida; e ii) qual a mais-valia do trabalho de articulação didática para alunos e professores (Gonçalves, 2016; Zingg, Minnig, & Mitrović, 2020).
Para respondermos a estas duas questões centrais, começamos por apresentar a Suíça enquanto nação quadrilingue. Através do exemplo da maior cidade bilíngue da Suíça, BIel/Bienne, ilustramos como uma sociedade superdiversa pode ser do ponto de vista linguístico. De seguida, e no contexto de uma sociedade transnacionalizada, o ELH é perspetivado no âmbito da educação em línguas e no quadro dos conceitos do Conselho da Europa.
Apresentamos dois projetos de colaboração em Tandem: o primeiro proposto pela Escola Superior de Educação de Berna (Zingg, Minnig, & Mitrović, 2020) e o segundo por duas docentes do ER no cantão de Neuchâtel. O trabalho realizado e os resultados alcançados nos dois projetos permitem-nos responder às questões de investigação acima apresentadas.
Para concluir, discutiremos a forma como o ELH poderá contribuir para rentabilizar o multilinguismo presente na escola, desenvolver a competência plurilingue, contribuindo o ER para uma vivência linguística plena no seio da sociedade helvética.
Línguas (I)Legítimas no Contexto da Superdiversidade
A fronteira territorial entre as línguas francesa e alemã vai do noroeste perto de Basileia até à Itália no sul. A fronteira física entre as línguas italiana e alemã corre ao longo das Montanhas Gotthard e do maciço central dos Alpes suíços. Por fim, o romanche situa-se em vários enclaves no cantão dos Grisões (Fig. 1)
Em 17 cantões fala-se exclusivamente alemão, em 4 cantões fala-se exclusivamente francês, num cantão fala-se exclusivamente italiano, 3 cantões são bilingues e um cantão trilingue. De acordo com as pesquisas mais recentes (Office fédéral de la statistique, 2021, p. 7), as principais línguas distribuem-se da seguinte forma: alemão cerca de 62%, francês 23%, italiano cerca de 8% e romanche menos de 1%.
A realidade linguística da população escolar contrasta em absoluto com o retrato da distribuição física das línguas na Suíça, uma vez que quase metade das crianças tem contacto com várias línguas em casa. Para menores de 15 anos, as línguas não nacionais mais comuns são o inglês (7,5%), albanês (6,7%), português (4,9%), espanhol (4,9%), bósnio-croata- sérvio- montenegrino (3,8%) e turco (2,8%), bem como mais de 70 outras línguas. Essas proporções variam nas diferentes regiões linguísticas da Suíça (Office fédéral de la statistique, 2021, p. 12).
O exemplo de Biel/Bienne8, a maior cidade bilíngue da Suíça, localizada na fronteira linguística entre a Suíça de língua alemã e francesa, ajuda-nos a compreender a realidade da superdiversidade (Vertovec, 2007). A coexistência entre falantes de ambas as línguas na cidade tem uma longa tradição, mas oculta um aspeto importante: um olhar sobre a composição atual da população estudantil com base nos censos de 2018 (Bista BE, 2018) mostra que o bilinguismo é complementado por muitas outras línguas no quotidiano escolar. Não se sabe exatamente quantas línguas são faladas todos os dias na cidade bilingue, ou melhor, multilingue. Algumas fontes apontam para cem, outras indicam um potencial de 150 línguas numa cidade de cerca de 50.000 habitantes. Como exemplo, a exposição “Le bilinguisme n’existe pas. Biu/Bienne, città of njëquind Sprachen”9, exibida em 2019/20 no Neues Museum Biel/Nouveau Musée Bienne, apontava para uma estimativa de mais de 200 línguas (Gráfico 1). Essa superdiversidade da cidade na fronteira linguística pode, num futuro muito breve, estender-se a outras regiões da Suíça, anunciando às escolas um afastamento do seu habitus monolingue, impelindo-as a encarar a situação linguística real, o multilinguismo.
Talvez a maior cidade bilingue oficial na Suíça constitua um exemplo extremo, mas este ‘laboratório de línguas’ ilustra a transnacionalização progressiva que outros países europeus também conhecem, ou seja, a normalização da diversidade linguística em todo o mundo. O escritor Robert Walser refere-se a Biel/Bienne, sua cidade natal, do seguinte modo: "Na verdade, eu cresci numa cidade cosmopolita muito, muito pequena"10 (Walser, 1985, p. 40).
O mediático título “Aumento do multilinguismo na Suíça: 68% da população usa regularmente mais de uma língua” reflete as alterações da situação linguística da Suíça nas últimas décadas, constatando-se a crescente importância do multilinguismo. Este aumento pode ser visto como uma extensão da pedra basilar do quadrilinguismo historicamente desenvolvido. Porém, o anunciado aumento do multilinguismo oculta o estatuto desigual das línguas da migração (Apóstol, 2020), bem como a sua ancoragem na constituição, uma vez que esta se refere sobretudo às línguas nacionais. A resistência às línguas da migração, embora invisível, levanta ainda muitas questões e poderá ser considerada reminiscência do estatuto ilegal das “crianças proibidas” (Frigerio, 2014) dos anos sessenta e setenta, altura em que era proibido o reagrupamento familiar para os trabalhadores sazonais.
Embora a violência estrutural das antigas leis de imigração suíças não possa ser diretamente transposta para o uso das línguas, as questões relacionadas com o reconhecimento, rejeição ou negligência em relação aos imigrantes facilmente são transferidos para as línguas. Estes aspetos repercutem-se negativamente na aquisição e manutenção das LH com efeitos, tanto no percurso escolar como, muitas vezes, no decurso da própria vida destas pessoas (Zingg, 2019b), como exemplificado em imensas histórias de vida de imigrantes na Suíça, sobretudo no seio da comunidade italiana (Frigerio, 2014). Neste âmbito, o conceito de “língua legítima” (Bourdieu, 1982), ajuda-nos a compreender o fenómeno de uma vivência “ilegítima da língua”, como descrita no “período das crianças escondidas”, devido à sua presença ilegal no país nos anos 60 a 90 do séc. XX (Frigerio, 2014).
De notar que o italiano tem um papel duplo na Suíça, por um lado é uma das quatro línguas nacionais, utilizada nas sessões do parlamento federal e oficial no cantão de Ticino; por outro lado, o italiano é uma LH nos restantes cantões (Protti, 2014). A segunda língua nacional a aprender no âmbito dos currículos suíços é o francês ou o alemão, as duas línguas maioritárias da Suíça. Este facto poder-se-ia compreender, uma vez que existe uma grande comunidade imigrante de origem italiana. No entanto, também existe uma comunidade imigrante da Alemanha e a língua alemã não é ensinada como LH nos cantões onde o alemão não é a língua falada. Esta realidade aponta para o estatuto desigual das línguas na Suíça (Hild & Scherrer, 2020, p. 28), mesmo entre as que são línguas oficiais, pesem embora as orientações no âmbito da política linguística definidas na Constituição Helvética, nomeadamente, as bases jurídicas para o tratamento das línguas e o respeito pelas minorias linguísticas.
Parece-nos que esta diferenciação poderá estar relacionada com práticas de legitimação do uso de determinadas línguas (alemão), porque mais faladas e valorizadas, e práticas de não legitimação de outras línguas (italiano e línguas de herança), porque com menor representatividade social e, porventura, menor prestígio e menor (ou inexistente) valor económico. Aliás, a noção “língua legítima,” de Bourdieu (1982), associada aos conceitos de distinção e de mercado linguístico esclarece que a mudança e o valor distintivo da língua se relacionam com as condições socio-económicas de vida em sociedade, o que parece ajustar-se ao fenómeno descrito. Ou seja, as línguas assumem estatutos e valores diferentes consoante o cantão, o que remete para a diversidade interna na Suíça, que contraria a tendência da apresentação homogénea da Suíça a nível cantonal no âmbito linguístico.
Questiona-se então se há línguas ‘legítimas’ e ‘ilegítimas’ (mesmo que oficiais!), ou práticas linguísticas reconhecidas como legítimas e práticas linguísticas reconhecidas como não-legítimas, relacionadas com a desvalorização de determinadas línguas existentes na estrutura social. O texto intitulado “Marginalização de professores comprometidos e competentes” (Hild & Scherrer, 2020), que dá conta de um projeto de investigação levado a cabo com os professores de LH sobre as suas práticas docentes, descreve a situação atual de marginalidade dos professores do ELH e, consequentemente, do seu objeto de ensino: as línguas de herança. Embora a consciencialização em relação à importância do ELH tenha aumentado e as vantagens tenham sido enfatizadas várias vezes (Krompák, 2018), o ELH ainda tem uma existência sombria e ainda não chegou ao seio do ER. A situação descrita leva um professor de LH a questionar “O que se aplica aos imigrantes aqui, hoje? Ainda não têm direito à honra e dignidade - ainda estão na mesma posição que estavam na época da Ilíada?” (Apóstol, 2020, p. 30).
A atenção legislativa da Confederação Suíça relativa às línguas coloca em evidência tanto a consciência da sua importância, bem como a sua presença no sistema educativo e ainda o seu potencial económico, sendo a definição da política linguística articulada com o valor da língua para a economia do país (Grin, 2006). Entenda-se que o valor económico da língua dentro de um país se mede a partir do coeficiente de participação da língua nos diferentes ramos de atividade desse país, “o valor económico da língua será o cômputo do seu valor em cada uma das economias nacionais onde funciona, acrescido das relações económicas internacionais que ainda possibilita” (Oliveira, 2013, p. 419). Tendo em conta estes aspetos, poderá não ser surpreendente o lugar alocado às LH, uma vez que são muitas e nem sempre associadas a um valor económico específico. Mas, em relação ao italiano, uma língua nacional e com uma presença forte a nível da gastronomia ou da moda poderá não ser tão compreensível. Porém, uma discussão mais detalhada deste assunto não se inclui no âmbito deste artigo.
Assim, falar uma determinada língua na Suíça pode significar muitas coisas diferentes dependendo do lugar físico onde é falada, do contexto e ainda do indivíduo que a fala. Todos estes aspetos podem influenciar determinantemente a aceitação do falante (e, consequentemente, da(s) língua(s) usada(s)) pelo seu interlocutor. Dependendo destas variáveis, a língua pode ser considerada legítima ou ilegítima e, por isso, “falar” é sempre uma expressão de poder.
Educação em Línguas numa Sociedade Transnacionalizada
Numa sociedade transnacionalizada há uma infinidade de línguas presentes nas salas de aula, o que torna cada vez mais pertinente uma educação em línguas, por oposição a um ensino de línguas que tome cada língua como uma unidade fechada em si mesma. Explorar e rentabilizar o potencial das diferentes línguas de migração parece ser um caminho evidente a seguir. Por conseguinte, o ELH pode assumir uma função-chave para a promoção quer do desenvolvimento do multilinguismo existente no sistema escolar suíço, quer do repertório plurilingue individual de cada aluno. Ou seja, este espaço didático poderá dar um valioso contributo na exploração e desenvolvimento dos repertórios linguístico-comunicativos de todos os alunos, de modo a que estes sejam capazes de os reconfigurar e atualizar, de uma forma autónoma e significativa nas mais variadas interações sociais, de acordo com os contextos e as suas necessidades (Gonçalves, 2016).
Partindo do pressuposto de que toda a educação é situada no seu contexto político, social e económico, importa ter presente que a educação em línguas não é exceção. Educar em línguas numa sociedade transnacionalizada, explorando este espaço didático do ELH, implica que aprendizagem de línguas se configure não apenas na relação com a sociedade em que é(são) falada(s), mas também com os falantes que lhe dão vida, ou seja, com os contextos e repertórios linguísticos específicos de cada aluno. Educar em línguas transborda as potencialidades utilitárias e formativas das línguas, incluindo uma dimensão social e política.
Seguimos a conceptualização de educação em línguas apresentada por Gonçalves (2011, 2022), que se organiza em torno de três dimensões enquadradoras da ação pedagógica, nomeadamente: i) dimensão formativa, dedicada à formação do caráter e ao desenvolvimento de capacidades e atitudes no relacionamento com os outros que ultrapassam o domínio do linguístico; ii) dimensão pragmático-utilitária, relacionada com o caráter instrumental da aprendizagem de línguas, uma aprendizagem capaz de permitir ganhos de tipo económico, académico ou social; iii) dimensão político-social, de consciencialização do poder associado às línguas na (re)construção das sociedades pelas possibilidades que criam de intervenção, regulação, negociação e desenvolvimento.
No contexto do presente texto e do ELH, esta terceira dimensão assume relevância particular por dois motivos essenciais: em primeiro lugar, porque influencia decisivamente a construção de atitudes positivas de autoconfiança dos falantes de LH, nomeadamente em situações de baixo prestígio social atribuído à LH; em segundo lugar, porque é no âmbito desta dimensão que se podem desconstruir estereótipos, conquistando a língua e os falantes de LH uma voz e identidade, um estatuto semelhante às línguas nacionais (legítimas), no caso específico da Suíça.
Esta dimensão social e política da educação em línguas poderá encontrar algum espaço na lei da língua11 (SpG - Lei Federal sobre as Línguas Nacionais e o Entendimento entre Comunidades das Línguas), em vigor desde 2010, que apoia as minorias linguísticas e os cantões multilingues, reconhecendo a Suíça o papel fundamental da(s) língua(s) na expressão de compreensão.
Em consonância com o papel crucial das línguas no país, o primeiro dos cinco domínios dos planos curriculares suíços12 diz respeito à formação linguística. Neste domínio específico, prevê-se uma sólida cultura linguística na língua local (nível oral e escrito), o desenvolvimento de competências essenciais numa segunda língua nacional e, pelo menos, numa outra língua estrangeira, sendo o inglês a segunda língua estrangeira indicada. No que diz respeito aos alunos com histórico de migração, os cantões proporcionam apoio aos cursos de LH, garantindo a neutralidade religiosa e política. Os três currículos do ensino oficial preveem uma educação em línguas que promove competências linguísticas e interculturais, reconhecendo-as como essenciais para a comunicação entre as diferentes partes do país e além das fronteiras linguísticas, permitindo igualmente o acesso à cultura e à história da região em que a língua é falada. As orientações pedagógicas aí preconizadas estão alinhadas com as sugestões do Quadro Europeu Comum de Referência (Conselho da Europa, 2001), prevendo uma didática do plurilinguismo. Neste contexto, explorar a mais-valia da LH no ER pode ser operacionalizada no âmbito das abordagens plurais (designadamente da Didática Integrada), recomendadas nos vários planos de estudo suíços, numa perspetiva plurilingue e intercultural:
As abordagens plurais de línguas e culturas referem-se a abordagens didáticas que usam atividades de ensino/aprendizagem que envolvem várias (ou seja, mais de uma) variedades de línguas ou culturas. As abordagens plurais contrastam com abordagens que podem ser designadas ‘singulares’, nas quais a abordagem didática tem em conta apenas uma língua ou uma cultura particular, trabalhada isoladamente. (Candelier et al., 2012, p. 6)
As abordagens plurais são também recomendadas para o ELH, desenvolvendo-se o trabalho no âmbito da diversidade linguística, sobretudo em torno da LH e da(s) língua(s) de escolarização. Tendo em conta as quatro variantes das abordagens plurais13, a abordagem intercultural que trata da diversidade cultural é frequentemente explorada (Gonçalves, 2016, 2022), por ser a que apoia o aluno na sua construção identitária:
Numa abordagem intercultural, é objetivo central da educação em língua promover o desenvolvimento desejável da personalidade do aprendente no seu todo, como o seu sentido de identidade, em resposta à experiência enriquecedora da diferença na língua e na cultura. (Conselho da Europa, 2001, p. 19), (sublinhado das autoras)
Numa sociedade transnacionalizada, a educação em línguas assume importância crucial pela possibilidade de ler o mundo a partir de várias perspetivas (abertura ao Outro, tolerância, competências de mediação linguística e cultural). O trabalho articulado entre o ER e o ELH, desenvolvendo a competência plurilingue e intercultural dos aprendentes e respeitando e integrando todo o seu repertório linguístico, poderá contribuir para a legitimação de todas as línguas tanto na sala de aula, como na sociedade.
Neste contexto, importa compreender que configurações a colaboração entre o ER e o ELH poderá assumir, para que essa articulação didática se possa traduzir numa mais-valia para alunos e professores.
O Estudo - ELH e ER em Tandem
Metodologia
Uma das configurações possível para a colaboração entre o ER e o ELH é o trabalho em tandem pedagógico. Cada tandem é constituído por um professor do ELH e outro do ER, pelo que assume a particularidade de tandem plurilingue e transcultural, dadas as pertenças linguísticas e culturais diferentes de cada docente, colocadas em evidência no trabalho didático que preparam para implementar em conjunto. Estes pares planificam unidades didáticas que posteriormente são implementadas por ambos os docentes, em conjunto, nas turmas do ELH e nas turmas do ER (tendo em conta as adequações didáticas consideradas pertinentes pelos professores para cada grupo específico de alunos). Nestas aulas, as línguas e culturas têm um papel de destaque, os alunos são os especialistas linguísticos e culturais e assumem o papel de facilitadores da aprendizagem dos conteúdos na turma.
O presente estudo toma como objeto de análise os resultados de dois projetos de intervenção pedagógica implementada pelos docentes que constituem cada tandem, evidenciando o trabalho colaborativo entre os professores do ELH e do ER. Estes projetos foram selecionados para o presente estudo por reunirem características semelhantes, tanto ao nível estrutural e organizativo, como no que diz respeito aos princípios subjacentes e objetivos que perseguem.
Assim, a nível estrutural e organizativo, ambos os projetos foram financiados pela Conferência Suíça dos Diretores Cantonais de Instrução Pública14 no âmbito do apoio previsto para a promoção de práticas de ensino integrado da LH e as iniciativas partiram de estruturas do ER, com o objetivo de promover a cooperação entre os professores do ELH e os professores do ER através de trabalho pedagógico em tandem.
O primeiro projeto partiu da iniciativa da Escola Superior de Educação de Berna (PH-Bern). Foi organizado um evento de divulgação na PH-Bern para dar a conhecer o projeto aos professores do ELH e aos professores do ER da cidade de Berna.
O segundo projeto partiu da iniciativa de duas professoras do ER, que inspiradas pela apresentação do trabalho da Coordenação do Ensino Português na Suíça, no âmbito da formação “Enseigner en Milieu Interculturel”, conceberam e implementaram este projeto como trabalho final da referida formação, da responsabilidade da Escola Superior de Educação HEP-BEJUNE15, em 2017.
Quanto aos princípios subjacentes, os projetos de intervenção pedagógica em tandem entendem o plurilinguismo como uma oportunidade de exploração do repertório linguístico e cultural dos alunos, possibilitando o desenvolvimento da competência intercultural e proporcionando experiências de aprendizagem mais enriquecedoras, porque cultural e linguisticamente mais diversas. O trabalho docente tem como base a cooperação didática e pedagógica entre os professores do ELH e professores do ER em turmas com alunos em comum, com os quais já trabalhavam, mas de forma separada e paralela. No âmbito das unidades didáticas privilegia-se a implementação de práticas de ensino que incluem translanguaging (García & Li, 2014; Zingg, 2020).
Parte-se também do pressuposto que estes projetos de cooperação entre os professores do ELH e do ER poderão promover o início de novas abordagens didáticas para lidar com a diversidade linguística no cenário educacional pós-migrante. Acredita-se também que a colaboração entre esses dois grupos de atores poderá ajudar a neutralizar preconceitos sobre as línguas da migração, desconstruindo classificações estereotipadas das línguas, aliás um pré-requisito para uma escola amiga das línguas, dando destaque e visibilidade a todas as línguas presentes na escola (Camilleri Grima, 2007).
Este trabalho colaborativo visava o enriquecimento e desenvolvimento linguístico dos alunos, bem como o desenvolvimento a nível profissional dos professores (Zingg, 2019a; Zingg et al., 2020). No âmbito dos projetos também se previa a elaboração de material didático específico, com eventuais repercussões na (planificação de) formação contínua de professores. Pretendia-se alimentar (e incentivar) o lançamento de projetos de promoção das línguas através de formação contínua conjunta, desenvolver unidades de ensino específicas no contexto da didática do plurilinguismo e implementá-las no ensino regular, como previsto nos documentos curriculares orientadores16, mas quase não realizado até ao momento.
Ambos os projetos perseguiram dois objetivos comuns:
implementar uma pedagogia intercultural (no âmbito das abordagens plurais), que tenha em conta a língua e cultura de herança dos alunos no âmbito do currículo do ER, de modo a promover o repertório linguístico dos alunos e desenvolver as competências profissionais dos docentes envolvidos;
dar visibilidade aos professores de LH e ao ELH no ER através do trabalho colaborativo, reconhecendo-os a nível institucional (local) e ultrapassando a superficialidade da celebração esporádica da diversidade de línguas e culturas presentes no ER suíço.
Os projetos seguiram uma metodologia de investigação-ação (Altrichter, Posch, & Spann, 2018) e ambos contaram com a participação voluntária dos professores envolvidos, predispondo-se estes para o trabalho colaborativo entre colegas. Com efeito, a motivação dos participantes é pré-requisito necessário para a investigação-ação orientada para resultados, em que a relevância prática e a investigação científica se complementam. Os professores assumiram, como é natural em projetos desta natureza, uma atitude investigativa em relação à sua prática. O questionamento sistemático e crítico da própria prática de ensino pretendeu contribuir para a identificação de dificuldades e motivar mudanças nas práticas, visando a inovação pedagógica.
Por outro lado, o facto de os projetos terem sido desenvolvidos em zonas geográficas diferentes, envolvendo participantes e processos de implementação diferentes, oferece a possibilidade de, também em tandem, analisar e compreender as conclusões apresentadas por cada um, constituindo-se assim uma base para uma compreensão mais alargada dos aspetos em análise. Esta base poderá possibilitar a construção mais consolidada da resposta às questões de investigação, pesem embora as características situadas e a pequena dimensão de cada projeto.
Ao longo do projeto 1 - Mais língua(s) para todos foram recolhidos dados variados, incluindo documentos produzidos no âmbito do trabalho colaborativo. No final do projeto, os professores participantes elaboraram uma reflexão crítica, tendo sido sugeridos os seguintes tópicos orientadores: colaboração nos tandems plurilingues e transculturais construídos em conjunto; resultados de observação mútua; documentos de suporte e preparação digital dos materiais de ensino implementados; potencialidades e constrangimentos do projeto.
Ao longo do projeto 2 - “Tandem na escola” também se produziram documentos no âmbito do trabalho colaborativo, nomeadamente planificações didáticas e os materiais utilizados pelos professores. Foi realizado um questionário final aos alunos e professores, e respondido por todos. O questionário para os alunos visava compreender as estratégias de inter(compreensão) utilizadas, bem como a impressão geral sobre o projeto de intervenção pedagógica em tandem. O questionário para os professores tinha como objetivo compreender a mais-valia deste projeto no seu desenvolvimento profissional e o impacto nas suas práticas, bem como o seu contributo para a aprendizagem dos alunos.
Os resultados qualitativos de ambos os projetos foram sujeitos a uma análise de conteúdo (Bardin, 2000), que pretendeu fazer emergir os aspetos mais focados pelos participantes (abaixo apresentados de forma sucinta), de modo a compreender: i) em que áreas a colaboração entre o ELH e o ER pode ser desenvolvida; e ii) qual a mais-valia do trabalho de articulação didática para alunos e professores. Por conseguinte, foram estas as duas categorias que orientaram a análise efetuada.
Para o presente texto foram analisados apenas alguns dos dados recolhidos no âmbito dos dois projetos, nomeadamente as reflexões críticas finais elaboradas pelos professores participantes do projeto 1 e os resultados dos questionários finais aplicados aos alunos e professores participantes no projeto 2.
Projetos
Projeto 1- Mais língua(s)para todos
O Projeto Mais língua(s) para todos: projeto piloto para a cooperação pedagógica entre professores de LH e ER foi implementado em 2018/19 e em 2019/20, com a duração total de 15 meses.
Participaram 5 professores do ER e 5 do ELH de línguas diferentes. Os professores do ELH mostraram-se desde o início muito interessados e colaboraram ativamente na divulgação do projeto para motivar a participação de professores do ER junto dos seus contatos. Os professores do ER que voluntariamente participaram são plurilingues ou nutrem uma paixão pelas línguas, são professores com vinte ou mais anos de experiência de ensino. De referir ainda que alguns dos professores do ER envolvidos neste projeto já tinham participado em pequenos projetos para a promoção das línguas.
A tabela 1 resume os principais dados do projeto, participantes, línguas envolvidas e temáticas trabalhadas em articulação com o currículo do ER (Currículo 21).
Participantes | Línguas | Áreas Temáticas |
---|---|---|
5 professores ELH 5 professores ER | Albanês Alemão Árabe Francês Italiano Russo Sérvio | Projeto “Radio” Sensibilização à diversidade linguística Projeto artístico - pintura Projeto de mobilidade e intercâmbio entre turmas |
Os cinco tandems e as respetivas temáticas trabalhadas abrangeram todos os níveis da escolaridade obrigatória, nomeadamente, os três ciclos de ensino do ER, abrangendo todas as faixas etárias (dos 4 aos 15 anos).
Os projetos de ensino implementados pelos tandems contabilizaram um total de 20 sessões cada, envolvendo cinco LH diferentes, bem como diferentes escolas (de diferentes dimensões) e regiões do cantão de Berna (cf. Anexo 1 para uma visão mais detalhada do projeto).
Os professores envolvidos decidiram em conjunto a melhor forma de distribuir as 20 aulas ao longo do ano letivo. Um grupo trabalhou, em conjunto, uma hora por semana durante um semestre, outro grupo concentrou as 20 aulas em blocos para celebração das semanas das línguas. Os outros três grupos dividiram as 20 aulas pelos dois semestres do ano letivo.
Desenrolar do projeto
Para preparação da intervenção didática foram organizadas sessões de formação contínua para apoio aos professores participantes. Estas sessões foram complementadas com sugestões de leitura e com materiais didáticos numa plataforma de aprendizagem para os grupos-alvo do ER e do ELH.
Foram realizadas sessões de observação mútua entre o professor de LH e o professor do ER da turma, desenvolvidas no âmbito do projeto. Estas permitiram a identificação de potencialidades, bem como o reconhecimento de problemas no trabalho com as línguas de herança em presença.
Após o apoio formativo inicial, observação mútua e consultas bilaterais, os cinco tandems planificaram e construíram sequências didáticas adequadas a implementar no ER, no âmbito da promoção integrada da LH e da prática da didática do plurilinguismo. Os materiais de ensino preparados digitalmente estão disponíveis online17, com acesso gratuito e foram apresentados e partilhados a um público especializado num evento final realizado em 10 de setembro de 2020. Também foi realizado um pequeno vídeo resumo do projeto18.
Resultados
a) Áreas de colaboração entre ELH e ER
Os professores de LH apreciaram o intercâmbio contínuo com os outros professores (tanto da LH como do ER) e expressaram o desejo de integração do ELH no ER. A experiência confirma que os professores do ELH e os do ER raramente se encontram no quotidiano escolar e que a colaboração pedagógica - também esporádica e com base em projeto - foi muito bem-vinda:
Aprendi muito através da colaboração com o meu colega de tandem, tanto durante a aula, como na sua preparação e seleção de temas para serem desenvolvidos. Também foi muito útil ver como decorrem as aulas no ensino regular suíço, como as crianças se comportam e como o professor conduz as aulas. (PLH5)
Vários professores do ELH manifestaram o desejo de uma colaboração mais estreita com o ER:
Na qualidade de professor do ELH estou muito grato de ter tido a oportunidade de colaborar com um professor do ER e, acima de tudo, ter contribuído para a integração e valorização e de todos os alunos da turma junto das outras crianças com quem fizemos o projeto. (PLH3)
Enquanto área de colaboração, a importância do plurilinguismo é enfatizada, o plurilinguismo é um recurso e uma riqueza nas escolas suíças (PLH2).
Os resultados do projeto piloto confirmam a disposição e o desejo dos professores do ELH em trabalhar de forma mais colaborativa com os seus colegas do ER. Esta tendência ficou clara nos comentários de avaliação elaborados na sequência da apresentação final em setembro de 2020:
Gostaria que o trabalho desenvolvido chegasse cada vez mais ao conhecimento da direção da escola. A cooperação entre o nível primário e o ELH deve ser incentivada. (prof_ERA, 10/9/2020)
Vou falar do evento de hoje na sala dos professores, afixar o endereço da página internet e sugerir que o tema seja incluído para a semana de projeto. (prof_ERA, 09/10/2020)
Trabalhar em aspetos específicos do plurilinguismo, como, por exemplo, a recolha de ideias de todos, publicações escritas em conjunto, participação em congressos, cursos de formação contínua realizados em conjunto ou a filmagem de uma curta-metragem foram consideradas áreas e experiências colaborativas particularmente interessantes.
b) Mais-valia do trabalho de articulação didática
Pôde constatar-se que no contexto do ER, tanto os professores em formação inicial como os professores em exercício de funções, pouco sabem sobre o ELH (Hild & Scherrer, 2020) e todos os professores participantes confirmaram que aprenderam muito sobre as particularidades do trabalho didático uns dos outros durante o projeto.
Em particular, foi destacado o benefício para os alunos das unidades didáticas planeadas em tandem, nomeadamente ao nível da consciência linguística. Os professores do ER descobriram novas facetas dos seus alunos, sobretudo no que diz respeito ao seu repertório linguístico:
Foi impressionante ver como crianças de língua estrangeira, que tendem a ter dificuldades com o alemão, recorreram à sua experiência linguística, conseguindo identificar muitos nomes de cores a partir da sua língua de herança. Embora eu conhecesse a formação linguística dos meus alunos, foi apenas através do projeto que reconheci a diversidade linguística da nossa turma. (PER3)
Em geral, os dez membros do projeto defendem que toda a escola se deveria dedicar à didática do plurilinguismo, integrando as LH, e que os diretores escolares têm um papel essencial a desempenhar:
Durante anos como professora do ELH desejei projetos como este e fiquei feliz em participar agora. O motivo: Os alunos, assim como nós, beneficiamos muito das novas experiências, conhecimentos e experiências como estas permanecem mais tempo do que o projeto. (PLH5)
Para partilhar e divulgar no âmbito do ER a mais-valia do trabalho de articulação didática no que diz respeito à diversidade linguística e plurilinguismo, os professores sugerem ações de formação, de acordo com o contexto específico e as necessidades dos professores, bem como a criação de um link para o conjunto de ideias e para os vários outros materiais e documentação de apoio disponíveis (por exemplo, Perregaux, Goumoëns, Jeannot, & de Pietro, 2003; Schader, 2016).
Projeto 2 - Tandem na escola
O projeto Tandem na escola (quadro 2) foi desenvolvido numa escola do cantão de Neuchâtel e foi divulgado ao corpo docente da escola pelas professoras proponentes. Estas elaboraram uma listagem de temáticas constantes do PER19 possíveis de abordar em tandem para todas as disciplinas escolares, de modo a possibilitar a participação de todos os professores do ER, uma vez que os docentes do ELH já se tinham disponibilizado para o trabalho colaborativo.
Teve a duração de um ano letivo, nomeadamente em 2017-2018, e foi implementado por dois professores de PLH, com larga experiência no ELH, e por três do ER nas disciplinas de Francês (F), Ciências Sociais e Humanas (CSH) e Mundo Contemporâneo e Cidadania (MCC), também professores experientes.
Participantes | Línguas | Áreas Temáticas |
---|---|---|
2 professores ELH 3 professores ER | Francês Português | Literatura fantástica, lendas e mitos Descobrimentos Portugueses Migração Ditadura e Democracia |
Os 3 tandems e as respetivas temáticas foram trabalhadas com alunos dos 7.º, 8.º e 9.º anos. Os projetos de ensino implementados pelos tandems contabilizaram um total de 10 sessões, envolvendo uma LH, o português e a língua de escolarização, o francês (cf. Anexo 2 para uma visão mais detalhada sobre o projeto).
Desenrolar do projeto
Para a preparação da intervenção didática, os professores reuniram-se para selecionarem as temáticas a partir das apresentadas previamente e planificaram as sequências didáticas no âmbito das abordagens plurais (Candelier et al., 2012; Lambelet & Mauron, 2015). Os professores trocaram impressões sobre as características dos alunos das 3 turmas envolvidas no projeto e identificaram os alunos de origem portuguesa, que eventualmente assumiriam uma participação mais destacada nas aulas de tandem.
O projeto foi sempre acompanhado com reuniões de monitorização pela parte das proponentes. Os materiais foram disponibilizados a todos os participantes no projeto. As sessões de tandem foram implementadas e foram realizadas reuniões de balanço do projeto com todos os participantes, as proponentes do projeto, o Diretor da Escola e a Coordenadora do Ensino de Português na Suíça.
Os resultados finais foram analisados e partilhados pelas proponentes do projeto com todos os participantes. Como continuação do projeto, previa-se a sua divulgação na escola ao corpo docente em geral e, mais especificamente, da área das línguas, aliando esta experiência à formação de professores, nomeadamente no âmbito das abordagens plurais, bem como a sua extensão a outras LH presentes no ER. Porém, isso não chegou a acontecer.
Resultados
a) Áreas de colaboração entre ELH e ER
Os professores participantes salientam a importância do projeto no âmbito do intercâmbio intercultural como fonte de enriquecimento dos conteúdos curriculares, sobretudo nas disciplinas de Ciências Sociais e Humanas (CHS) e Mundo Contemporâneo e Cidadania (MC) tanto para os alunos, como para os professores. Neste contexto, destacam o elevado nível de participação e interação das turmas, bem como a facilidade com que a generalidade dos alunos aprendeu os conteúdos planificados.
Fiquei surpreendido pelos níveis de participação e interação das turmas, mas, essencialmente, pela facilidade com que a generalidade dos alunos apreendeu os conteúdos planificados. (Prof_ER2)
Verificou-se um maior envolvimento dos alunos nas disciplinas de francês e CSH quando o tópico da migração foi discutido.
Na realidade, os professores participantes foram unânimes em concordar que a experiência resultou plenamente. Importa dizer que o projeto funcionou em verdadeiro tandem e codocência nas disciplinas de Francês (F) e CSH, uma vez que na disciplina MCC o professor do ER não interveio diretamente na condução das aulas, porque não tinha preparado as sequências didáticas totalmente em conjunto com o docente de LH. Desempenhou, porém, o papel de perito, à semelhança dos alunos de origem portuguesa.
b) Mais-valia do trabalho de articulação didática
De acordo com a análise dos dados, a articulação didática contribuiu para o desenvolvimento da competência plurilingue e intercultural dos alunos e da sua capacidade de ativação de estratégias metacognitivas no âmbito dos seus repertórios linguísticos. A possibilidade de transferência de estratégias utilizadas para a compreensão de mensagens textuais foi uma das mais-valias apontadas pelos alunos, bem como uma maior predisposição para a aprendizagem de outras línguas, valorizando a riqueza da diversidade linguística e do plurilinguismo.
Os alunos demonstraram grande interesse nesta temática e mostraram-se recetivos ao facto de poderem ter uma experiência linguística diferente. (Prof_ER2)
Verifica-se que as turmas mais plurilingues se empenharam e investiram de forma mais positiva nas aulas em tandem, talvez fruto de um contacto frequente com a diversidade linguística e cultural.
Na turma bastante heterogénea em termos de nacionalidades, todos os alunos referiram que gostam de aprender e/ou falar línguas estrangeiras, demonstrando, muitos deles, compreender a importância do domínio de várias línguas para o seu futuro profissional. (Prof_ELH1)
Nas turmas predominantemente monolingues, embora alguns alunos tivessem considerado esta experiência desnecessária e uma perda de tempo, também foi valorizada pela maioria dos alunos, enquanto algo diferente do normal funcionamento das aulas e os alunos de LH participaram duma forma diferente na aula, colocando as suas competências linguísticas ao serviço da aprendizagem dos colegas:
A maior parte dos alunos participou e os alunos de origem portuguesa ajudaram os colegas a descodificar o significado de alguns vocábulos. (Prof_ELH2)
No que se refere ao desenvolvimento da competência de intercompreensão, as tarefas propostas na disciplina de francês orientaram os alunos para uma análise mais detalhada da língua portuguesa e incentivaram-nos a questionar as estratégias postas em prática para melhor compreender uma língua estrangeira, desenvolvendo consciência das estratégias de intercompreensão utilizadas.
Discussão dos Resultados
Tendo sido apresentados os dois projetos tandem e os seus resultados específicos, importa refletir sobre as questões centrais deste texto: 1. compreender em que áreas essa colaboração pode ser desenvolvida e 2. qual a mais-valia do trabalho de articulação didática para alunos e professores.
No que se refere ao primeiro aspeto - compreender em que áreas essa colaboração pode ser desenvolvida -, e de acordo com a análise efetuada, a colaboração entre professores do ELH e do ER pode, desde logo e como previsto nos currículos suíços, ser desenvolvida especificamente na área das línguas (De Pietro, Gerber, Leonforte, & Lichtenauer, 2015). Este espaço disciplinar é adequado à experimentação e desenvolvimento de estratégias de intercompreensão, no caso de línguas da mesma família. A análise entre semelhanças e diferenças entre as diferentes línguas em presença na sala de aula, quer pertençam ou não à mesma família linguística, promove a reflexão sobre a(s) língua(s) e consequentemente o desenvolvimento do pensamento metalinguístico. Por outro lado, nas outras disciplinas do currículo, as diferentes temáticas podem ser abordadas numa perspetiva que inclua os conhecimentos específicos dos alunos da sua cultura de herança, como, por exemplo, no âmbito da geografia, história ou artes. Sabendo que não só a seleção das áreas temáticas mas também o seu tratamento pode influenciar a motivação dos alunos de forma significativa (Gonçalves, 2002), uma aposta diferenciada no tratamento de temáticas com a colaboração do professor de LH pode aumentar a motivação e enriquecer as aprendizagens efetuadas por todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem (Moreira, 2020).
A articulação e o trabalho colaborativo entre os professores do ER e do ELH no desenvolvimento de projetos específicos no seio da escola poderá promover o desenvolvimento de competências transversais, essenciais ao ser humano do séc. XXI tendo em conta a cidadania democrática numa sociedade multilingue e transnacional (UNESCO, 2021).
No que se refere ao segundo aspeto - qual a mais-valia do trabalho de articulação didática para alunos e professores - embora inicialmente o trabalho colaborativo e a articulação didática no âmbito do currículo possa parecer uma sobrecarga para os professores, percebemos, em ambos os projetos, que os professores do ELH estão disponíveis e muito recetivos a projetos desta natureza, voluntariando-se para participar, e que os professores do ER também os consideram importantes, manifestando o seu agrado em participar. Por outro lado, constata-se que tanto os professores em exercício, como os futuros professores do ER, pouco sabem sobre as aulas de LH, embora, como referido, os três currículos da Suíça mencionem as LH e defendam uma didática do plurilinguismo, na qual as abordagens plurais se incluem (De Pietro et al., 2015). Abrir esta possibilidade no ensino de línguas (tanto as nacionais, como a estrangeira) permite claramente criar pontes com as LH - pelo menos esporadicamente - e permite a colaboração com os professores do ELH.
Seguir uma didática do plurilinguismo, recorrendo a tandems transculturais e transnacionais parece ser uma abordagem valiosa quer para professores em exercício de funções, quer para futuros professores. Os projetos contribuem para uma mudança de paradigma, que pretende passar do hiato entre o “mundo paralelo” ou “satélite” do ELH a um modelo que integre os professores de LH, promova o ensino destas línguas de forma ativa e integrada (Zingg, Minnig & Mitrović, 2020), confira visibilidade e importância às LH, promovendo, em simultâneo, a construção de uma identidade coesa e de uma autoestima saudável de todos os alunos (Gonçalves, 2020). Contudo, para compreender em que medida estes projetos podem ter impacto nas representações dos alunos, seria necessário desenvolver as experiências durante mais tempo e acompanhar o desenvolvimento das competências e representações dos alunos.
De referir ainda que os proponentes de ambos os projetos, embora pertencendo ao sistema de ensino suíço (no Projeto 1, a Escola Superior de Educação de Berna e no projeto 2, duas professoras de uma escola do ER) não foram participantes, pelo que não trabalharam diretamente com os alunos. Este aspeto parece-nos pertinente uma vez que, apesar de bastante apreciados por todos os professores participantes, os projetos não tiveram desenvolvimento subsequente comprometendo, desse modo, a sustentabilidade das ações e dos conhecimentos adquiridos. Ou seja, não foram criados laços colaborativos para que o trabalho pudesse evoluir de uma forma mais “natural” no seio do ER suíço. Para criar sinergias colaborativas, parece-nos pertinente que os projetos possam continuar a ser pensados numa lógica de investigação-ação, mas envolvendo todos os docentes em todas as fases do projeto, sobretudo na recolha e análise de dados da sua própria prática, já que aqui reside o potencial reflexivo dos projetos de investigação-ação. A planificação conjunta e definição de objetivos, prevendo uma maior reflexão por parte dos professores sobre as expetativas em relação ao projeto, poderá garantir uma orientação mais eficaz dos alunos, no sentido de desenvolver estratégias de intercompreensão, bem como um maior investimento no projeto que pudesse criar a sinergia necessária para a sua continuidade, o que naturalmente seria o impacto desejável em termos do desenvolvimento profissional dos docentes.
Por fim, há a salientar que estes projetos fizeram compreender que é igualmente necessário desenvolver uma didática do plurilinguismo no seio do ELH. Para os professores de LH também as práticas no âmbito das abordagens plurais constituíram uma aprendizagem e um alargamento dos seus repertórios didáticos. Este aspeto já tinha sido referido num estudo sobre as abordagens plurais no ELH (Gonçalves, 2016), cujos resultados no âmbito do ensino de PLH apontam para uma reduzida diversidade linguística, desenvolvendo-se o trabalho didático sobretudo em torno da LH e da(s) língua(s) de escolarização. Há, portanto, ainda um caminho a percorrer no sentido de aprofundar as práticas no âmbito das abordagens plurais tanto no seio do ER como no seio do ELH.
Conclusão
Pela constituição linguística do país, a Suíça perspetiva o seu modelo de sociedade, no âmbito linguístico, duma forma distinta da tendência dominante (Ferreira & Melo-Pfeifer, 2018) de características “mono”, uma vez que se assume como um país multilingue e define políticas que apoiam e promovem essa pluralidade e diversidade linguística. Os planos curriculares recomendam uma didática do plurilinguismo e abordagens plurais, no âmbito das quais se deve trabalhar o repertório linguístico dos alunos. Igualmente, também têm sido desenvolvidos alguns projetos para uma maior inclusão de todas as LH no ensino regular suíço (Giudici & Bühlmann, 2014).
Os projetos tandem apresentados vão neste sentido e os resultados alcançados são encorajadores, uma vez que, para além da mais-valia do trabalho colaborativo entre docentes do ELH e do ER, que têm trabalhado em paralelo sem cruzamentos muito significativos, ajudam-nos a compreender as áreas nas quais essa colaboração pode ser desenvolvida e qual a mais-valia do trabalho de articulação didática para alunos e professores daqueles dois sistemas de ensino, promovendo uma aprendizagem mais integradora. Com efeito, parece ainda faltar a capacidade de construir sinergias que transformem ações pontuais, orientadas e implementadas no âmbito de projetos, em hábitos de trabalho sistemáticos tanto individual (professores do ER e do ELH na suas salas de aula com os seus alunos, explorando e dando espaço aos diferentes repertórios linguísticos e culturais), como colaborativo (professores do ELH a trabalhar articuladamente com o ER na exploração e rentabilização do repertório linguístico dos alunos com histórico de migração).
Parece-nos, portanto, crucial passar de projetos dispersos e esporádicos, levados a cabo por um grupo reduzido de professores entusiastas e com boa vontade (Apóstol, 2020), a projetos mais prolongados no tempo e propulsionadores de práticas inovadoras que ganham gradualmente consistência, visibilidade e credibilidade junto das direções escolares. As boas experiências não podem terminar com o final do projeto ou com o final do respetivo financiamento. Estas devem incluir a capacidade de continuidade e de sustentabilidade. Estamos convictas de que um possível caminho a trilhar passará naturalmente pela divulgação das experiências em eventos de formação contínua, mas sobretudo pelo envolvimento dos docentes, tanto do ER como do ELH, em processos de investigação-ação colaborativos comprometendo as Direções Escolares nesse processo.
O facto do ELH não ser integrado no currículo do ER não pode significar que o ELH não tenha o seu lugar e que não seja dada visibilidade às LH. A criação de projetos comuns no âmbito das temáticas curriculares e a participação dos professores de LH nas atividades da escola podem promover a integração do ELH ao nível do desenvolvimento das competências transversais. Tanto o ER como o ELH têm um contributo a dar na preparação dos alunos para novas formas de aprendizagem que requerem outras competências e que passam pela possibilidade do sujeito se movimentar de uma língua a outra e de uma cultura a outra, criando as pontes necessárias, construindo uma identidade plural, que é mais do que uma nacionalidade.
Atividades pontuais e esporádicas, como os “Dias das Línguas” desenvolvidos em tandems nas aulas regulares, ou a Feira das Línguas (Basel) abrem potencial e mapeiam os recursos existentes da realidade multilingue de uma sociedade pós-migrante, sendo um benefício para crianças e jovens tanto monolingues como plurilingues e para os seus professores. O ELH pode desempenhar um papel chave expandido e tornando visíveis as línguas da migração. Reconhecê-las poderá conduzir o quadrilinguismo constitucional a um multilinguismo vivido.
Concluímos defendendo que “O que falar quer dizer” terá que implicar a passagem da associação de cada aluno a “uma” língua, “uma cultura”, “uma nacionalidade”, - assumindo que este “fala” de um “lugar único” de acordo com essa representação - para uma visão de abertura à possibilidade de descobrir o “Outro”, de explorar “o mundo das línguas”, de poder “falar a partir de lugares vários” e, dessa forma, construir a sua própria identidade, necessariamente, plural.