1. Dreyfus, um precursor das novas abordagens à cognição
Em 1972, o filósofo norte-americano Hubert Dreyfus publicou What Computers Can’t Do – A Critique of Artificial Reason1. A obra surgiu em meio a uma euforia no campo da inteligência artificial (IA), então marcado pelos esforços em reproduzir as capacidades cognitivas humanas nos computadores. As críticas de Dreyfus à IA tiveram origem no MIT (Massachusetts Institute of Technology) – onde trabalhou nas décadas de 1960 e 1970, voltando-se originalmente para a GOFAI (Good Old-Fashioned AI), a IA em sua fase inicial. Trabalhando ao lado de desenvolvedores de sistemas, ele levantou questões centrais, muitas vezes inconvenientes para aqueles que mantinham elevado otimismo em busca de sintetizar a inteligência humana. Dreyfus se interessou por questões instigantes sobre a cognição que se relacionavam diretamente com os desafios da IA.
Em 1992, atualizando a obra anterior já citada (que também conta com uma edição revisada de 1979), o autor lançou What Computers Still Can’t do – A Critique of Artificial Reason (em português seria, em tradução livre, O Que os Computadores Ainda Não Podem Fazer – Uma Crítica da Razão Artificial). Trinta anos depois dessa obra e quase 50 desde o lançamento da primeira edição, as ideias de Dreyfus ainda trazem insumos bastante ricos para a construção do pensamento filosófico crítico acerca da IA e da cognição humana. Os computadores continuam não podendo realizar certas tarefas, enquanto em outras eles nos superam. Em contraste, tarefas para além dos cálculos matemáticos surpreendem, às vezes, pelo desnível entre a aparente simplicidade com que configuram no repertório cognitivo humano e o desafio que impõem para serem formalizadas nos sistemas artificiais2. O que há, e que persiste, entre humanos e máquinas que gera tal abismo?
O paradigma computacional da mente predominou na ciência cognitiva que nasceu nos anos de 1950, mas vem sendo posto em xeque a partir do crescimento do campo e do desenvolvimento paralelo de pesquisas em IA e robótica, além das contribuições de filósofos para essas investigações. Quando se modifica o paradigma, não mais parece adequado associar a inteligência humana a puro processamento e formalização. No começo do desenvolvimento das pesquisas em ciência cognitiva, prevalecia o cognitivismo clássico: o cérebro seria um processador ou um manipulador de símbolos, funcionando como uma máquina que, ao receber inputs, gera outputs, num movimento linear. Acreditava-se que essa manipulação seria suficiente para gerar inteligência. O computador digital surgiu como “um mecanismo de processamento de informações de objetivos gerais, que calcula de acordo com regras explícitas e recebe dados em função de elementos atômicos logicamente independentes uns dos outros” (Dreyfus, 1975, p. 205). A IA em sua fase inicial, porém, teria falhado justamente por conta de suas bases teórico-conceituais,
do arcabouço conceitual baseado na suposição de que qualquer explicação do comportamento humano pode e deve tomar a forma platônica, bem-sucedida na explicação física; que as situações podem ser tratadas como se fossem estados físicos; que o universo do homem pode ser encarado como um universo físico. (Dreyfus, 1975, p. 206)
Além do cognitivismo clássico, no decorrer da pesquisa em cognição e IA surgiu também o conexionismo. Os modelos conexionistas artificiais, ou as redes neurais artificiais, baseiam-se em representações distribuídas e codificações sobrepostas, o que os diferencia, portanto, da linearidade característica dos sistemas simbólicos simples dos primórdios do cognitivismo (Clark, 2014, pp. 69-70). Na contemporaneidade, ganha destaque no campo da inteligência artificial a vertente conhecida como machine learning ou aprendizagem de máquina, essencialmente fundamentada em estatística.
Paralelamente, emergem no campo das ciências cognitivas os chamados 4Es da Cognição (4E Cognition): Embodied, Embedded, Enactive e Extended (Newen et al., 2018) – ou cognição Corporificada, Situada, Enativa e Estendida. Apesar de tais abordagens apresentarem diferenças e ramificações, há algo comum às quatro e que permeia a linha básica de pensamento que as orienta: a ideia de que os atos cognitivos – de perceber, memorizar, aprender, tomar decisões, etc. – não se devem unicamente à atividade intracraniana, mas demandam uma parceria ativa e engajada entre o cérebro, o corpo como um todo e o ambiente no qual se está inserido. Essas perspectivas, na realidade, propõem que, mais do que depender desses elementos, a cognição humana é constituída por eles, uma vez que emerge justamente a partir da relação sistêmica entre todas essas partes. Acoplados ao espaço ao qual estamos intimamente ligados, moldamos esse ambiente e somos formados, ou moldados, por ele. Isso inclui elementos físicos e culturais, as pessoas com as quais nos relacionamos, as instituições e as tecnologias – que construímos, mas que também nos transformam ativa e continuamente3.
Ideias presentes nessas quatro novas perspectivas à cognição humana remetem a muito daquilo que Dreyfus desenvolveu em sua crítica filosófica à IA, em busca de conhecer a capacidade humana de desempenhar as mais diversas atividades que cotidianamente protagonizamos. Essas ações, por vezes, parecem simples; em outros momentos, se mostram extremamente complexas; o fato é que temos um acervo variado de maneiras de lidar com as mais diferentes situações que enfrentamos. Esse nosso repertório amplo de habilidades para atuar em tantos cenários e contextos físicos, sociais e culturais, não raro inéditos e surpreendentes para nós, tem relação direta com o corpo e com as emoções. Do mesmo modo, os elementos corporais, as constantes trocas entre o ser e o mundo e a inseparabilidade entre cognição e emoções são aspectos marcantes dos 4Es.
Neste artigo, que se volta para a educação como área de interesse, procura-se estabelecer conexões entre algumas das ideias centrais de proponentes da cognição enativa e as proposições de Dreyfus acerca do nosso estar-no-mundo engajado, corporificado e que, ao menos em alguns momentos, dispensa representações mentais e computação. Toma-se como pano de fundo a discussão acerca de um dos grandes problemas da inteligência artificial (o qual ainda persiste), advindo da dificuldade que sistemas artificiais têm de lidar com problemas aparentemente mais básicos, mas não necessariamente mais simples – o que se conecta com a relação entre cognição e contexto, e ainda entre corpo e cognição. Este é um debate do qual a educação pode se beneficiar, uma vez que a IA e a educação têm em comum um importante objeto de pesquisa: ambas procuram desvendar como ocorre a aprendizagem, como percebemos e aprendemos sobre o mundo.
O desenvolvimento da presente análise baseia-se nas concepções enativistas de Di Paolo (2009) e de Di Paolo et al. (2010, 2017, 2018). Faz-se relevante destacar a seleção destas referências especialmente porque o enativismo ou a cognição enativa não se desenvolve em apenas uma vertente, mas em várias, que têm tomado rumos sensivelmente diferentes. As concepções de Di Paolo e colegas têm relação com a teoria do neurobiólogo Humberto Maturana e do biólogo e filósofo Francisco Varela (Maturana & Varela, 1980, 2019), proponentes da teoria da autopoiese, apesar de não serem plenamente compatíveis com a proposta destes autores. Utilizo-me, ainda, de conceitos da fenomenologia presentes tanto na teoria de Dreyfus como na dos supramencionados autores enativistas; para tanto, utilizo-me dos trabalhos de Zahavi (2019) e Thompson (2007).
2. O problema do senso comum
Trabalhando no MIT, Dreyfus pôde observar o empenho dos cientistas da computação focados em reproduzir as habilidades humanas em computadores num momento caracterizado por muito otimismo na IA. Foi significativo, para ele, testemunhar a equipe então liderada por Marvin Minsky4 mobilizada para entender por que seus computadores não estavam conseguindo compreender histórias que crianças pequenas conseguiam5. Minsky acreditava que teríamos máquinas com inteligência comparável à de humanos em 30 anos – em referência ao filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (Dreyfus, 2005, p. 48). Mas resolver o problema dos computadores que não conseguiam compreender as histórias simples significava endereçar uma questão ligada ao conhecimento do senso comum: como ensinar aos computadores aquilo que parece que todo mundo sabe sem precisar que lhe seja ensinado? Como fazê-los entender histórias e contextos que, quando ouvimos, parece que compreendemos de imediato? As sutilezas do mundo: aquilo que nem mesmo costumamos colocar em palavras, que é difícil de explicar, mas que vamos absorvendo à medida que experimentamos variadas situações.
Quando se deparou com essa questão, Minsky6 pensou que o obstáculo que veio a ficar conhecido como commonsense knowledge problem ou problema do senso comum seria resolvido a partir do armazenamento de regras e fatos nas máquinas, para que elas pudessem selecioná-los nas diferentes situações em que fossem solicitadas7. Dreyfus, porém, entendeu que a solução não era essa. Parecia-lhe que a questão-chave seria determinar quais elementos seriam relevantes em cada situação ou contexto8. Essa seria a real capacidade de agir a partir do senso comum. Consequentemente, um computador não poderia chegar a raciocinar como um ser humano depois de internalizar uma quantidade gigantesca de regras. E os impedimentos para isso estariam, justamente, no fato de que o caminho que humanos seguem para a aprendizagem vai muito além da aquisição de regras; nós até podemos conhecer algumas delas, para que nos ajudem a começar a aprender algo, mas precisamos, sobretudo, saber para que as regras servem. É preciso compreender, ainda, que essas regras podem mudar, quando o contexto muda. Humanos têm a capacidade de agir no decorrer dessas mudanças, de selecionar estratégias para saber o que fazer para resolver os variados problemas que aparecem. Enquanto isso, no caso de um computador, uma transformação de contexto pode deixá-lo simplesmente sem resposta.
No entanto, de onde vem então essa capacidade de agirmos de acordo com o contexto, respondendo tão habilmente às mais diversas situações pelas quais passamos, por vezes nos saindo bem até mesmo naquelas que vivemos pela primeira vez? Nós estamos imersos no mundo desde sempre, com nossos corpos; graças a esse acoplamento com o ambiente, vivemos experiências e nos tornamos hábeis e ágeis a partir delas. A nossa aquisição de conhecimento se dá de um modo tal que assimilamos um contexto, e não apenas um fato isolado. Com o tempo, passamos a combinar regras, que aprendemos no começo, com a nossa experiência e, assim, agimos a partir de um repertório de regras práticas (working rules of thumb) (Feigenbaum & McCorduck, como citado em Dreyfus, 2014, p. 27). Procurando compreender a maneira como adultos adquirem conhecimento, Dreyfus e Dreyfus (1984) e Dreyfus (2014) desenharam uma teoria sobre os estágios percorridos até nos tornarmos especialistas em algo. Na próxima seção, irei apresentá-la9.
3. Os estágios da aprendizagem propostos por Dreyfus
A teoria de Dreyfus propõe que se, ao iniciarmos a aprendizagem de determinada habilidade, nós começamos internalizando regras, quando nos lançamos às variadas situações que os contextos práticos daquela atividade demandam nós exercitamos a nossa capacidade de lidar com elas e vamos trabalhando numa espécie de composto habilidades-contextos-mundo-situações. As regras acabam, assim, repousando num tipo de pano de fundo, sendo gradualmente suplantadas por um conhecimento empírico, contínuo. Essa fundamentação de Dreyfus para a aquisição do conhecimento10 se distancia da abordagem segundo a qual um aprendiz, à medida que se torna mais experiente, interioriza mais e mais regras abstratas e sofisticadas (Dreyfus, 2014, p. 30). Pelo contrário, o aprendiz iniciante conhece somente algumas poucas regras simples e, enquanto avança, vai substituindo a necessidade dessas regras pela sua própria experiência e aprendizagem corporal e emocional. Um bom exemplo disso seria o aprendiz de um atelier de arte, que vai seguindo e copiando o mestre até dominar técnicas e inventar seu próprio estilo. A seguir, apresento os passos propostos na teoria.
3.1. Os Seis Estágios de Dreyfus para a aquisição de Habilidades
A proposta de Dreyfus para a aquisição de conhecimento em adultos – inicialmente, ao desenvolvê-la com o irmão Stuart (Dreyfus & Dreyfus, 1984), eram cinco etapas; anos mais tarde, a última foi adicionada – é uma sequência de estágios que vai do novato ao mestre. A teoria se baseia justamente na ideia, já esboçada aqui, de que o aprendiz parte de regras abstratas, descontextualizadas, até chegar a casos e contextos particulares. Após tomar conhecimento dos estágios de aprendizagem que o filósofo propõe, pode-se compreender por que um repositório de regras, sozinho, não tornaria um computador um especialista. Os passos estão descritos a seguir (Dreyfus, 2009):
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Estágio 1 – Novice (Novato): trata-se de um estágio de aprendizagem em que o instrutor transmite regras ao aprendiz, sem contextualizá-las; ou seja, regras gerais, como um computador seguindo um programa (comparação feita pelo próprio autor). Neste estágio, por não saber em que situação cada informação memorizada faria sentido, o aprendiz está longe ainda de uma aplicação prática do aprendizado obtido ao seu cotidiano;
Estágio 2 – Advanced Beginner (Iniciante Avançado): o aprendiz conhece algumas máximas e suas aplicações gerais. Ele passa a conhecer e reconhecer uma série de exemplos. A diferença entre uma regra e uma máxima é que a segunda depende de uma compreensão do domínio ao qual ela se aplicaria. O estudante desenvolve a capacidade de reconhecer aspectos relevantes do material que viu no primeiro estágio, confrontando-o com situações tais que exigiriam a aplicação das regras e das máximas;
Estágio 3 – Competence (Competência): este é um estágio crucial para o esquema dos passos de aprendizagem proposto por Dreyfus. O aprendiz começa a tomar decisões, vendo-se diante da necessidade de verificar e decidir o que é relevante em cada situação. Como não é possível que, ao chegar a este estágio, o aprendiz conheça todas as possibilidades, em teoria, existentes para cada situação que venha a enfrentar, ele pode não ter certeza sobre como proceder, o que lhe causa insegurança também. Isso pode ser exaustivo e assustador, segundo Dreyfus. A diferença crucial entre esse estágio e aquele em que o foco é na internalização de regras é que, no anterior, o aprendiz poderia atribuir os seus erros às regras, acreditando não ter tido acesso àquelas que lhe seriam mais adequadas, enquanto no estágio da competência ele começa a se sentir responsável pelas escolhas que faz. As emoções entram em jogo fortemente. O aprendiz pode se sentir confuso e fracassado, ou quem sabe ser bem-sucedido e se sentir bem por isso; de uma maneira ou de outra, trata-se de sensações ainda não vividas tão intensamente quando se está no estágio iniciante. Esse é um ponto essencial entre máquinas e seres humanos, destacado por Dreyfus: ainda que uma máquina busque atingir certas metas, quando as atinge isso não lhe provoca sensação alguma. Isso se deve à presença do corpo e das emoções; esses dois elementos são responsáveis por demarcar um espaço essencial para a trajetória do aprendiz, que poderá levá-lo ao patamar seguinte de aquisição de conhecimento;
Estágio 4 – Proficiency (Proficiência): este é o nível alcançado quando o aprendiz, assimilando experiências de maneira corporificada e após viver emoções relacionadas, passa a fazer discriminações acerca das situações vividas, com respostas associadas. Ele ainda não viveu tantas situações quanto as possíveis, para saber quais os resultados que seriam obtidos em cada uma e a cada decisão tomada; precisa decidir o que fazer a partir dos componentes mais relevantes de cada situação. Pode voltar a uma regra, para tentar aplicá-la; mas pode ainda, intuitivamente, fazer uma escolha com base em suas reações corporais;
Estágio 5 – Expertise (Especialista): neste estágio, graças ao seu amplo repertório de perspectivas intuitivas, o aprendiz percebe imediatamente o que deve fazer, e com mais sutileza. O autor dá alguns exemplos de como o aprendiz poderia passar para este estágio; um deles é o pós-doutorando que trabalha no laboratório de um cientista de sucesso para aprender com situações cotidianas reais, deixando para trás seu “entendimento descorporificado, teórico”11; o aprendiz consegue, a partir da observação e imitação do profissional, entender o que fazer em situações nas quais até mesmo não há regras que sirvam, “como quanto persistir quando o trabalho não parece estar indo bem, quanta precisão mais deve ser buscada em cada tipo diferente de situação de pesquisa, e daí por diante” (Dreyfus, 2009, p. 38)12. Outro exemplo, das ciências humanas, seria a orientação que o estudante recebe do professor, quando atua como assistente; Dreyfus afirma que o aprendiz imita o professor, e cita Wittgenstein como um estudioso que teria deixado uma geração de aprendizes que reproduziram seu estilo questionador, e até mesmo seus gestos. Por conta dessas consequências decorrentes de seguir um mestre, Dreyfus defende a importância de aprender com mais de um professor: assim, o aprendiz poderia criar um caminho para desenvolver o seu próprio estilo;
Estágio 6 – Mastery (Mestre): somente seres humanos podem chegar a esse estágio de aprendizagem, assim como somente nós sentimos medo de assumir os riscos que são necessários para se passar de um estágio baseado em regras para outro em que experiência, intuição e contexto passam a vigorar. No estágio 6, o aprendiz busca oportunidades de extrapolar o conhecimento adquirido, motivando-se e aceitando o risco de não se sair tão bem durante um tempo, enquanto estiver desenvolvendo novas habilidades, segundo Dreyfus (2009, pp. 40-41).
Dois pontos acerca dos estágios de aprendizagem, ainda não mencionados até aqui, merecem ser ressaltados agora. O primeiro diz respeito à enculturação: não é apenas o estilo de um mestre que influencia o aprendiz. Por estar imerso em uma certa cultura, adquire-se, durante o processo de aprendizagem, o que Aristóteles chamou de practical wisdom (sabedoria prática, em tradução livre) – destaca Dreyfus (2009, p. 45). O segundo ponto é o seguinte: já que professores influenciam e inspiram seus aprendizes, eles podem levar à formação de estudantes mais ou menos envolvidos emocionalmente com as situações de aprendizagem que vivenciam.
Se, a cada vez que nos dispomos a aprender algo novo, precisamos, de alguma maneira, das regras para dar início à aprendizagem – ainda que fique para trás aquela versão descontextualizada, desconectada da realidade desse conjunto de instruções –, como é que fazemos para agir numa certa velocidade e de uma maneira coordenada, adequada a cada situação que vivemos? Isto é, como conseguimos nos sair tão bem em nossas atividades cotidianas, aquelas que nem mesmo nos são ensinadas de maneira formal? Como damos conta da vasta gama de fatos que supostamente compõem a sabedoria do senso comum, sendo capazes de lançar mão justamente daqueles que são mais importantes em cada momento? Não podemos ser melhores nisso do que um computador pode ser, mas o ponto é que não precisamos, porque não agimos dessa maneira (Dreyfus, 2005). Como Dreyfus coloca, nós, pouco a pouco, nos tornamos bons em discriminar, ou seja, em escolher aquilo que nos é relevante em cada situação. Não há um único conjunto de regras que dê conta de tudo isso.
Uma vez que estamos imersos no mundo, com seus ambientes compostos de inúmeras variáveis e gerando as múltiplas contextualizações, engajamo-nos nesses espaços de maneira habilidosa, e isso ocorre por coexistirmos em harmonia com o mundo. O conceito de Dreyfus que define esse estar-no-mundo habilidoso é o de skillful coping 13. Como seres skillful, nós ganhamos uma nova dimensão para pensar a maneira como funcionamos, como agimos, como operamos neste mundo, que não está apartado de nós; o mundo somos nós, nós somos o mundo; por isso o engajamento com ele é tão fluido e envolvente. Somente podemos ser assim – tão hábeis e eficientes em nosso engajamento com o mundo – porque agimos a partir de nossos corpos.
Esse entendimento se contrapõe à interpretação predominante na tradição filosófica, de Platão a Descartes e persistindo até hoje, que atribui ao corpo uma posição pouco privilegiada dentre os elementos ligados à razão. Tradicionalmente, o corpo não seria um apoio, muito menos parte constitutiva; seria, por vezes, até mesmo um obstáculo à inteligência e à razão – o que Dreyfus (1992, p. 235) reforça; a coisa pensante (Res Cogitans) de Descartes não tinha corpo, e ainda era necessário tomar o cuidado de não se enganar com ele, para encontrar a verdade e se livrar das falsas impressões; o conhecimento deveria vir da mente, e não do corpo; e a mente, por sua vez, seria mais fácil de conhecer do que o corpo, pelo acesso direto que se teria a ela (Leporace, 2019).
Dreyfus nos conduz a perceber que o acesso direto é, na verdade, aquele que temos, a partir de nossos corpos, ao mundo que habitamos. E somos nós que constituímos esse mundo, agindo sobre ele, modificando-o, atribuindo-lhe sentido. Longe de se limitarem a meras máquinas cartesianas, extensões carnais capazes de transviar o caminho da busca pela verdade científica empreendido pela mens.cogito, os corpos respondem pelos processos envolvidos em viver e em adquirir conhecimento de maneira ativa. Tanto precisamos de nossos corpos para ter comportamento inteligente que, se quisermos ter computadores para além do comportamento formalizável, eles deverão ter corpos; se não têm, o projeto da inteligência artificial já nasce fadado ao fracasso (Dreyfus, 1992, p. 235).
Há algo, porém, no entendimento de Descartes quanto à mente humana que foi aproveitado integralmente por Dreyfus. Por que Descartes – quem Dreyfus conta ter sido também o primeiro a conceber a possibilidade da criação de robôs – teria atribuído a capacidade da razão a uma mente, isto é, a algo (na concepção dele) imaterial? Porque ele entendeu que uma máquina (o corpo) não daria conta de trabalhar em tantas situações diferentes, e então precisava compreender como isso se daria: a mente é que teria essa capacidade.
Apesar de não estar consciente da diferença entre uma situação e um estado físico, Descartes já viu que a mente poderia lidar com um número indefinido de situações, enquanto uma máquina tem apenas um conjunto limitado de estados e então irá em algum momento revelar sua falha ao responder apropriadamente. (Dreyfus, 1992, pp. 235-236)14
Se a máquina em questão fosse um supercomputador, com uma capacidade de processamento muito mais rápida do que uma máquina que Descartes pudesse imaginar em sua época, ela seria capaz de pôr em xeque o argumento cartesiano contra a capacidade da máquina e em defesa de algo abstrato que pudesse justificar a nossa capacidade de raciocinar de diferentes maneiras? De acordo com o pensamento de Dreyfus, não, pois a capacidade de lidar com situações diversas não está na mente ou no corpo, mas numa mente corporificada. Seres humanos, com seus corpos-mentes em conjunção com o mundo, podem lidar com um número indefinido de contextos, enquanto uma máquina, descorporificada e desengajada do mundo, não tardaria a se revelar falha. Dreyfus (1992, p. 236) nos lembra que falta a um “cérebro numa garrafa” e a um computador digital a habilidade de se engajar em situações práticas de forma corporificada. Por isso, como mencionado, ele aponta o corpo como o principal obstáculo ao desenvolvimento da IA até a um nível em que possa ser equiparada à inteligência humana.
Isso nos leva a uma reflexão sobre o que é mais difícil de ser reproduzido: o sistema cognitivo que costumamos considerar mais básico, por assim dizer, e que envolve o sistema sensorial, motor, de manipulação de objetos; ou o sistema nervoso central, com toda a sua aclamada complexidade. Herbert Simon15 – um roboticista otimista, na visão de Dreyfus (1992) – teria dito que a reprodução artificial deste último deveria vir bem antes de que se conseguisse alcançar a do primeiro. Mas, e se o trabalho do sistema nervoso central depender justamente do sistema de locomoção, no sentido da sua constituição? Isto é: e se um não existe sem o outro? E se as formas lógicas de inteligência, da cognição ‘superior’, necessariamente derivarem e forem guiadas pelas formas ‘inferiores’? Isso abalaria o otimismo de Simon (Dreyfus, 1992, pp. 236-237). Afinal, sem se instanciar uma, não se poderia instanciar a outra. Na seção a seguir, dando prosseguimento a uma discussão que se conecta a isso, exploro interseções entre o conceito de skillful coping, ideias da fenomenologia e conceitos do enativismo, com foco na maneira como se desenrola o processo de experimentar o mundo.
4. Skillful Coping e Experiência
No conceito de skillful coping e na proposta dos estágios percorridos para que se adquira uma habilidade, propostos por Dreyfus, há um destaque para o aspecto da experiência. Essa ênfase liga-se à postura adotada pelos enativistas, que defendem a ideia de que a experiência é necessariamente corporificada e se encaminha a partir do entrelaçar entre o ser cognoscente e o mundo que ele habita. “Longe de ser um epifenômeno ou um quebra-cabeças como é para o cognitivismo, a experiência na abordagem enativa está entrelaçada com o estar vivo e imerso num mundo de significado” (Di Paolo et al., 2010, p. 43)16. Segundo enativistas e outros proponentes dos 4Es, o cognitivismo teria negligenciado a questão da experiência, que veio a assumir um espaço relevante a partir do momento em que se passou a reconhecer com seriedade o aspecto da corporificação na atividade mental. Dreyfus, porém, teria sido um dos que se preocuparam em endereçá-la:
A defesa de Dreyfus da aquisição não representacional de competências (2002) baseia-se em prestar cuidadosa atenção à experiência de passar por um processo de melhoria no desempenho de tarefas. Ao fazermos a viagem de principiantes a peritos através da prática, não só se melhora o desempenho habilidoso, mas também se transforma a experiência. Isto é de esperar se a corporificação no sentido enativista for levada a sério. (Di Paolo et al., 2010, p. 44)17
O conceito enativista de experiência relaciona-se com outros conceitos fundamentais dessa abordagem à cognição, nomeadamente autonomia e sense-making, e ainda com a maneira como o enativismo conceitua corporificação. A ideia de autonomia tem sua gênese no conceito, supramencionado neste artigo, de autopoiese – tal como concebido por Maturana e Varela (2019) no âmbito da biologia. Antes mesmo de partir para compreender a atividade cognitiva em si, o enativismo procura circunscrever quem é o agente, o ser cognoscente, e como é formada e mantida a sua identidade. Um ser autônomo é, assim, aquele capaz de se distinguir de seu meio e de outros seres graças à sua capacidade contínua de automanutenção. É um ser que pode se regenerar, cuidar-se, agir em prol da conservação da sua vida. Apesar de ter essas habilidades, esse ser encontra-se imerso no ambiente que habita de forma tal que não pode prescindir dele para garantir sua manutenção; assim como na autopoiese, em que a célula (unidade mínima de vida definida por Maturana & Varela) necessita das trocas energéticas constantes e equilibradas com o meio extracelular para se manter viva, a ideia de autonomia baseia-se na manutenção do ser cognoscente a partir do equilíbrio entre a sua atividade e a do seu meio, as quais são indissociáveis.
Sense-making (Di Paolo et al., 2010, 2018) é a capacidade que esse ser autônomo tem de dar sentido ao que há no mundo. As coisas que existem passam a compor o repertório do ser cognoscente a partir do momento em que se tornam relevantes para ele, tendo algum sentido ou significado para as suas ações cognitivas. Interessante notar que, ao encapsular a ideia de cognição nesse conceito, o enativismo rompe com uma sequência tradicionalmente encontrada na ciência cognitiva de conceber como ‘básicas’ as atividades ‘corporais’ e como atividades mais sofisticadas da cognição (high cognition) aquelas que estão ligadas ao raciocínio. Faz parte da cognição de diversos organismos, dotados de características corporais – e, consequentemente, mentais – bastante diferentes, a atividade de fazer sentido do mundo. Isso não estaria restrito, portanto, àqueles organismos capazes de raciocinar como os seres humanos. Vale ressaltar, porém, que a proposição é de que, além de autonomia, é necessário que um ser vivo, para ser considerado cognoscente, seja também capaz de se adaptar. Visto que contam com outros atributos, que aumentam cada vez mais a sua autonomia, os organismos se tornam mais complexos. Sendo assim, num nível mais elevado de complexidade, atribuído aos seres humanos, os seres cognoscentes são capazes de autoimagem e de desenvolver projetos complexos, por exemplo (Di Paolo, et al., 2010).
Na medida em que, em consonância com o enativismo, o ser cognoscente mantém a sua individualidade, sendo dotado de uma capacidade de automanutenção, é a partir desse ponto que ele compreende o mundo, estabelecendo trocas com o meio com base em sua própria perspectiva e fundamentadas na sua própria normatividade. Isto é, em vez de pensarmos em uma absorção passiva de informações do ambiente, as quais o agente simplesmente receberia para então realizar alguma ação, devemos pensar em uma constante atividade, fluida e dinâmica, de atribuição de significado e sentido àquilo que o cognoscente encontra enquanto age. Trata-se de um processo dinâmico em que o cognoscente é protagonista; fazem total diferença a sua perspectiva, as suas demandas, o seu corpo, as suas crenças, o seu propósito e as suas orientações. Por conta disso é que o enativismo preconiza que um sistema cognitivo é corporificado de uma maneira tal que sua atividade depende dessa condição (corporificar-se) de uma forma “não trivial” (Di Paolo et al., 2010, p. 42). Para o enativismo, a corporificação vai além do sentido meramente funcionalista, isto é, não adianta somente conceber o corpo como um dispositivo de processamento de informações; corporificação, para o enativismo, significa que:
o corpo é a principal fonte de significado; a corporificação significa que a mente é inerente ao processo precário, ativo, normativo e mundano de animação, que o corpo não é um fantoche controlado pelo cérebro, mas todo um sistema animado com muitas camadas autônomas de autoconstituição, autocoordenação e auto-organização e vários graus de abertura ao mundo que criam a sua atividade de fazer sentido. (Di Paolo et al., 2010, p. 42)18
Ao defender a ideia de skillful coping contrastando-a com a forma como sistemas de computação funcionam e, assim, explicando a inviabilidade de computadores alcançarem essa habilidade humana, Dreyfus adota a postura fenomenológica: não há dicotomia entre sujeito e mundo, e é isso que permite que o sujeito tenha esse engajamento hábil. A fenomenologia preconiza que a mente humana sempre está voltada para algum objeto do mundo; na verdade, ela só existe porque se volta para objetos do mundo. O foco da fenomenologia está, então, não na estrutura da mente, mas na díade mente-mundo, o que se torna mais claro a partir do conceito de intencionalidade. A consciência não está contida num certo lugar e nem é, em si, um local especial; deve, em vez disso, ser definida em termos dessa sua abertura ao mundo. Zahavi (2019, pp. 17-21) esclarece que, devido a esse seu caráter aberto, a nossa consciência sempre se direciona a algum objeto: temos a consciência de algo; por ser intencional, a consciência não é fechada em si mesma, ocupa-se de objetos e eventos diferentes dela própria.
No tratamento fenomenológico, o acesso dessa consciência aberta aos objetos presentes no mundo se dá de uma maneira direta, sem mediações. Em uma perspectiva tradicional, representacional, a percepção implica em duas entidades diferentes – o objeto extramental e o objeto intramental, sendo este último correspondente às representações mentais. O acesso à primeira entidade seria mediado e tornado possível pelas últimas (Zahavi, 2019). Mas, na fenomenologia, rejeita-se a ideia de que é preciso representações mentais mediando o acesso da consciência aos objetos existentes no mundo. Defende-se simplesmente que, quando temos a experiência de perceber, nós não somos confrontados com figuras ou signos de objetos, mas com os próprios objetos em si. A ideia é: se estivermos diante do objeto, por que haveria de ser necessário algo a mediar a nossa percepção? Qual a necessidade de um reflexo num espelho interno, por assim dizer, quando se tem disponível a própria imagem19?
A questão da existência ou não de representações mediando a nossa relação com o mundo acompanhou o desenvolvimento do trabalho de Dreyfus e segue sendo um dos tópicos mais importantes quando se trata de buscar a compreensão da cognição humana. Dreyfus defende que temos uma relação direta com o mundo quando nele agimos e que também por ele somos constituídos, tal como a fenomenologia presume. No entanto, vale ressaltar que Dreyfus não defende que toda e qualquer atividade cognitiva prescinda de representações mentais. O que ele defende é que isso não é necessário em alguns casos e atividades. Ao ser demandado pelo mundo, pelo ambiente em que se situa, pela situação em que o sujeito cognoscente se encontra absorvido, o corpo não apenas reage, de maneira causal; não se trata apenas de um reflexo, como behavioristas poderiam indicar; o corpo age (e, assim, Dreyfus também está de acordo com a perspectiva fenomenológica segundo a qual o corpo é o sujeito e o sujeito é o seu corpo), com uma série de movimentos que não exigem representações, movimentos que o corpo sente como apropriados com base no caráter holístico da situação, do contexto, sem que o sujeito precise representar mentalmente aquilo que seria o objetivo a ser alcançado (Dreyfus, 2002, p. 415). Isto é, conforme a situação nos envolve, sentimos com todo o corpo como agir; quando nos deixamos envolver pelo que se passa, portanto, nós tomamos as decisões que nos são demandadas e agimos habilmente, em nosso pleno acoplamento com o mundo.
Além de reagir à ideia de que representações mentais e cálculos tenham que estar presentes em toda e qualquer ação cognitiva, Dreyfus (2002, p. 419) não concorda com a concepção tradicional de representações cerebrais típica do cognitivismo20. Isto é, ele não acredita que estados cerebrais, sozinhos, possam explicar a nossa relação com os objetos no nosso entorno sob certas circunstâncias. No início de um processo de aquisição de conhecimento, regras podem corresponder a certas atitudes do aprendiz, de uma maneira mais exata e linear; no entanto, à medida que evolui, o aprendiz passa a responder não a características isoladas de uma situação, mas à situação como um todo21; desse modo, o cérebro molda-se para responder a esse contexto integral, que não pode ser resumido em apenas uma regra em específico ou em regras isoladas.
Já no enativismo, a questão das representações não toma apenas uma direção, mas varia conforme as raízes e pontos de vista de cada vertente da abordagem. Segundo Di Paolo et al. (2017), as representações internas – no sentido forte de estados internos com conteúdo cognitivo – são rejeitadas pela abordagem enativa.
A vantagem desta rejeição é que a noção de representar, como um tipo de atividade cognitiva, exige uma explicação, embora não em termos de elementos que sejam eles próprios representacionais, pois é uma boa ideia evitar misturar explanans e explanandum. E esta é a razão pela qual o enativismo é não representacional em vez de anti-representacional: a representação como uma família de atividades cognitivas complexas, que aparecem mais tarde e são, na sua maioria, socialmente mediadas, existe e merece ser explicada, mas não em termos de outras representações. (Di Paolo et al., 2017, p. 27)22
Conforme os autores esclarecem, o enativismo muda a perspectiva, defendendo que o significado da atividade cognitiva não depende de veículos que armazenem informação, mas da “coordenação de processos dinâmicos em várias escalas pelo agente autônomo” (Di Paolo et al., 2017, p. 27). Esse agente atribui sentido ao mundo ao seu redor a partir do acoplamento com o ambiente, que se dá por meio de processos precários de autoindividuação; essa precariedade típica do acoplamento entre o agente e o ambiente distancia o enativismo das concepções funcionalistas para a cognição, como também colocam Di Paolo et al. (2017).
5. Se Os Computadores Ainda Não Fazem O Que Fazemos, Isso Interessa À Educação
Apesar da aceitação crescente do corpo e de sua relação com o ambiente como um componente essencial à atividade cognitiva, fator que encontra no programa de pesquisa enativista uma de suas teses mais fortes, em paralelo a esse movimento cresce na inteligência artificial o foco no desenvolvimento de redes neurais artificiais. Essas redes, que são a base dos sistemas de machine learning, são essencialmente inspiradas no cérebro biológico humano. Podem levar em conta características ambientais e corporais, mas funcionam na base de conexões entre as unidades de processamento paralelo que as compõem. Ainda que tais conexões ocorram de maneira paralela, em vez de linear, como se concebia os sistemas cognitivistas tradicionais, ainda estamos falando de inputs que geram outputs. Tendo essas redes como ponto de partida, o significado, ou o sentido das coisas do mundo, continua tratado como processamento de informações, ainda que seja um processamento paralelo, distribuído, e nem sempre programado de ponta a ponta, já que se utiliza estatística para que os algoritmos ‘aprendam’ para gerar outputs (o que, na prática, significa fazer previsões com base em dados já armazenados).
Sendo assim, não eram apenas os computadores dos primórdios da IA que não faziam muitas das atividades que nós somos capazes de fazer. Ainda hoje, as mais avançadas redes de machine learning são recursos isolados do mundo, desacoplados dele e descorporificados, isentos de emoções, incapazes de viver experiências como as que vivemos e que estão no centro da nossa atividade cognitiva; ainda que sejam capazes de categorizar uma imensa quantidade de dados comumente chamados de big data, esses sistemas não sentem nada, nem quando atingem seus objetivos e nem quando simplesmente ‘fracassam’. Apesar disso, a educação vem sendo cada vez mais permeada por tais recursos, na forma de plataformas de aprendizagem, por exemplo. Supostamente úteis para personalizar o ensino e atender aos alunos de forma a dar conta de sua individualidade, esses sistemas basicamente operam com dados. Quantos aspectos fundamentais da individualidade de cada um ficam de fora desses dados que, de forma tão fragmentada, alegadamente refletem a realidade desses alunos23?
Quando, inspirados pelas ideias de Dreyfus e dos proponentes de abordagens contemporâneas à cognição, adotamos uma postura enativista, podemos dizer que sistemas de aprendizagem de máquina ainda estão enraizados em uma ideia de cognição limitada à atividade cerebral. Esses recursos, pode-se assim compreender, operam a partir do paradigma cognitivista – o que não é exatamente surpreendente, já que se trata do paradigma predominante na ciência cognitiva. Se esses recursos são promovidos como inovadores, mas no fundo seguem operando a partir de uma velha premissa, ou de um paradigma que já não monopoliza o campo da ciência cognitiva, pode-se dizer que há um ponto de tensão. Afinal, trata-se de tecnologias para desenvolver a mente, mas uma mente que se concebe de maneira limitada e circunscrita ao cérebro, e ainda por cima restrita a uma noção de cérebro que é essencialmente um processador de informações. De forma extensiva, tem-se em consideração a aprendizagem também como significando o sucesso do processamento de informações pelos aprendizes.
Esse é um elemento pertinente à discussão sobre como aprendemos e sobre como podemos utilizar tecnologias educacionais para aprender mais e melhor. É preciso ir além dos dados sobre a atividade cerebral dos alunos quando se deseja compreender, de fato, o que acontece com o ser cognoscente quando ele está aprendendo. Deve-se admitir que as máquinas não precisam aprender como nós para possivelmente colaborarem com a nossa aprendizagem em algum nível, mas, por outro lado, é preciso tomar o cuidado de não equiparar a aprendizagem humana a puro processamento de informações. As novas abordagens à cognição contribuem para expandir, em vez de reduzir, a concepção predominante de aprendizagem (Bannell et al., 2021); nos conduzem, ainda, a revisar alguns dos principais discursos da neurociência aplicada ao campo educacional, uma vez que somos instigados a buscar a cognição não apenas no cérebro, mas no corpo em contato constante com o mundo, o que inclui as tecnologias.
6. Consideracões Finais
O conceito de inteligência não está dado, bem como o conceito de cognição ou o de aprendizagem. Segundo Dreyfus, para superar a concepção computacional da mente a pergunta que precisa ser (re)feita é: de que maneira o ser humano produz comportamento inteligente? Ou mesmo uma espécie diferente de pergunta, pois a noção de ‘produzir’ comportamento em vez de apenas demonstrá-lo já estaria contaminada pela tradição (Dreyfus, 1975, p. 206). As novas abordagens de pesquisa para a cognição humana procuram, exatamente, maneiras de compreender e, em algum momento, poder (re)conceituar a cognição. Parte dessas abordagens, especialmente as que buscam na fenomenologia seu aporte teórico, se mostram em linha com algumas das proposições de Dreyfus – ao deslocar o aparato cognitivo somente do cérebro para um contexto mais amplo, que inclui o organismo como um todo e o mundo.
Entre essas abordagens há reações, também, a um determinado tipo de construção para a cognição que toma as representações mentais cerebrais, os cálculos, os algoritmos e as regras de computação como a chave de toda atividade cognitiva. Quando se separa mente e mundo, é preciso que haja uma maneira de conectar os dois; daí a necessidade de que as representações e os cálculos façam essa mediação. Mas, quando a mente e o mundo são aproximados, considerados como mutuamente constitutivos, essa necessidade de mediá-los se reduz, ainda que não por completo, como se vê na proposta de Dreyfus.
A fenomenologia, que está na raiz das ideias de Dreyfus e de boa parte dos proponentes dos 4Es, apresenta, de um modo geral, uma alternativa à forma como agimos no mundo, que prescindiria de representações ou, pelo menos, dispensaria um determinado tipo de representação em certas situações envolvendo cognição. Também dispensa o conceito de inputs que dão origem a outputs, da linearidade percepção-ação, indicando que esses processos acontecem simultaneamente. Em diálogo com o conceito enativista de sense-making, o conceito de skillful coping encapsula a ideia da nossa capacidade de agir em conjunção com o ambiente. Essa capacidade nos torna sujeitos cognoscentes que constroem conhecimento à medida que vivenciam situações e aprendem a lidar com elas horizontalmente, isto é, a partir de um olhar e de uma sequência de ação voltados para a completude daquele cenário.
Ao apontar para a necessidade do corpo e das emoções para a aquisição de conhecimento, Dreyfus (2009, p. 32) remete a um outro dualismo, para além da separação entre mente e corpo: a bifurcação entre emoções e razão.
Não temos nós no Ocidente, desde os Estoicos, e especialmente desde Descartes, aprendido a progredir por meio do domínio de nossas emoções e sendo objetivos e desengajados tanto quanto possível? Não seriam as motivações racionais, o desengajamento objetivo e a avaliação franca a melhor maneira de obter experiência? (Dreyfus, 2009, p. 32)24
A realidade mostra que não, não é suprimindo as emoções do circuito da aprendizagem, agindo desconectados delas, que vamos desenvolver nossa perícia em algum assunto; para isso, é necessário envolver-se com as atividades realizadas, e consequentemente sentir remorso pelos erros ou alegria pelos acertos. A resistência a esse envolvimento, Dreyfus ressalta, pode levar à estagnação, ao tédio, ou até levar o aprendiz a regredir25.
A discussão aqui apresentada indica, assim, a dificuldade da reprodução de certas habilidades humanas em sistemas artificiais por conta do caráter constitutivo do corpo e do mundo na cognição humana; da maneira contextualizada, situada, como agimos; por conta também da complexidade dessa forma de agir. Fundamentada na fenomenologia, 50 anos depois a proposta de Dreyfus não parece ameaçada de perder a validade em decorrência dos desenvolvimentos recentes no campo da IA. Pelo contrário: muitos dos problemas centrais apontados por esse filósofo persistem na fase atual da IA.
Num momento em que a IA, especialmente na forma de machine learning, ganha espaço no campo da educação, essas indicações podem contribuir para ampliar a perspectiva crítica sobre o assunto. Afinal, se sistemas artificiais deixam de fora aspectos tão essenciais à cognição humana como o corpo e as emoções, um olhar mais atento pode demonstrar que é apressado pressupor que tais sistemas poderiam substituir professores em determinadas tarefas ou presumir que tais sistemas sejam capazes de ensinar. O ‘learning’ de machine learning refere-se à aprendizagem de máquina. Mas como pressupor que uma máquina aprende, se nem mesmo está dado aquilo que significa aprender? Um caminho frutífero é o de buscar uma compreensão da aprendizagem para além das formalizações, como Dreyfus propõe. Se não somos como computadores, outros caminhos se fazem necessários para compreendermos a cognição humana. Analisar com cuidado as potentes propostas advindas do enativismo, que têm forte relação com a fenomenologia do cotidiano desenvolvida por Dreyfus, pode contribuir para transformar o paradigma ainda predominante nas teorias de aprendizagem, hoje.