Introdução
Em Portugal, e na maior parte dos países europeus, há referenciação de pessoas ciganas2 aqui residentes há mais de quinhentos anos (Cortesão & Pinto, 1995; Fraser, 1997; Liégeois, 1989; Nunes, 1996; Stauber & Vago, 2007). As pessoas ciganas continuam a ser referenciadas como as mais pobres e excluídas (Mendes, Magano & Candeias, 2014), persistindo, de um modo geral, a pouca escolaridade, as condições de habitação precárias e o sentimento de discriminação e racismo. São vítimas de estereótipos negativos, racializadas, segregadas, e consideradas como “resistentes” a formas de integração social ou acusadas de não se quererem integrar (Marques, 2007; Silva, 2014; Vala, 1999). As razões históricas para esta forte rejeição e relações conflituosas entre ciganos e não ciganos são ainda pouco conhecidas, mas sabe-se que passa sobretudo pela afirmação cultural pouco tolerada de modos de vida autónomos, por parte de grupos marginalizados e excluídos (Casa-Nova, 2009; Fienbork et al., 1998; Liégeois, 1989; Mendes, 2005). A fixação territorial e o conjunto legislativo elaborado em Portugal e na Europa para regular os modos de vida e as expressões culturais ciganas remetem para um historial de perseguições, expulsões, marginalização e exclusão, na generalidade dos países onde vivem ciganos, bem como para formas de escravatura e de extermínio (Fraser, 1997; Nunes, 1996; Stewart, 2012).
Apesar do incremento da investigação e da consciencialização política de que as pessoas ciganas são fortemente segregadas, até 2013 não existiam políticas sociais públicas específicas. Vários órgãos de soberania da União Europeia produziram orientações para promover a escolarização e o acesso à habitação, à saúde e ao trabalho, demonstrando atenção à situação de pobreza extrema e exclusão em que se encontravam as pessoas ciganas na Europa. É, assim, elaborada a Estratégia Europeia para a Integração dos Ciganos (ENICC) (Resolução do Parlamento Europeu, de 9 de março de 2011, sobre a estratégia da UE a favor da integração dos ciganos (2010/2276(INI)), 2011), medida que é imposta a todos os países-membros da União Europeia. Nesse âmbito, em Portugal é elaborada a Estratégia Nacional para a Integração dos Ciganos (Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, 2013), com destaque para quatro eixos de intervenção: saúde; educação; habitação e emprego; formação profissional. Esta Estratégia foi revista em 20183, por se reconhecer que, apesar da evolução nos últimos anos, continuam a registar-se níveis elevados de discriminação, pobreza e exclusão social de muitas pessoas e famílias ciganas, bem como um forte desconhecimento e desconfiança entre pessoas não ciganas e pessoas ciganas. Contudo, persistem problemas de pobreza e exclusão, sendo entre as pessoas ciganas que se verificam os casos mais extremos de pobreza, analfabetismo e discriminação social (Mendes, Magano & Candeias, 2014; Direction Générale de l’Emploi et des Affaires Sociales, 2014; European Roma Rights Center & NÚMENA, 2007). Os vários relatórios da European Union Agency for Fundamental Rights (FRA) dão conta da situação de pobreza em que vivem as pessoas ciganas e também da segregação e racismo de que são alvo (FRA, 2012, 2018, 2022), revelando que as medidas públicas implementadas têm sido insuficientes para ultrapassar os problemas estruturais com que estas pessoas se debatem.
Em Portugal, os estudos sobre a situação das pessoas ciganas têm procurado conhecer, detetar e denunciar situações de pobreza e de exclusão social (Castro, 2013; Mendes, 2005, 2012), mas também evidenciar as maiores taxas de analfabetismo e abandono escolar precoce (Mendes, Magano & Candeias, 2014), a menor formação profissional (Santos et al., 2009), menor acesso a emprego (Pereira, 2016) e um maior número de vítimas de racismo e discriminação (Silva, 2014, 2022). Num estudo elaborado a nível nacional, em 2014 (Mendes, Magano & Candeias, 2014), verifica-se a continuidade e reprodução da pobreza e exclusão das pessoas e famílias ciganas, situação reafirmada recentemente por um estudo da FRA (2022), que referencia que 96% vivem em situação de pobreza. No entanto, apesar da enorme incidência de casos de pobreza e segregação (normalmente mais estudadas), existem pessoas e famílias ciganas que não se encontram nessa situação, sendo crucial des-homogeneizar as perspetivas (Casa-Nova, 2002; Mendes, Magano & Candeias, 2019).
O objetivo desta investigação é contribuir para a desocultação de trajetórias de vida de pessoas ciganas integradas, trabalhadores por conta de outrem, que rompem com imagens estereotipadas e cristalizadas no tempo, dando a conhecer os processos dinâmicos de interação social e também de empoderamento e afirmação identitária. Este artigo apresenta e reflete sobre diferentes modos de vida de pessoas ciganas e de percursos de integração social, tendo por base uma investigação qualitativa sobre ciganos integrados em Portugal (Magano, 2010).
Enquadramento teórico
Para este enquadramento, recorremos a contributos teóricos da sociologia da integração, da interação social e das relações interculturais para identificação de mecanismos sociais e de fatores e contextos sociais e familiares que permitiram construir percursos de vida diferentes dos tradicionalmente imputados a pessoas ciganas (estereotipados e cristalizados no tempo) e também sublinhar formas de miscigenação cultural e identitária.
Entende-se o conceito de integração no sentido da tradição sociológica, que não tem uma conotação negativa, nem “normativa”, devendo ser demarcado da noção de políticas de integração (Schnapper, 2007). Assim, deste ponto de vista, a investigação sobre integração não se limita a considerar a dimensão “étnica” ou cultural, mas também tem em conta a situação económica e social das populações marginalizadas; ou seja, adota uma perspetiva global sobre a análise do fenómeno social.
O conceito de projeto de vida de Velho (1999) permite-nos perspetivar o indivíduo como um agente, com autonomia própria e capaz de fazer opções de vida, mesmo quando vive em contextos fortemente condicionados culturalmente. Por sua vez, a conceção de quadros de experiência, de Goffman (1991), ajuda-nos a conceber processos de integração com a possibilidade de sobreposição de processos de socialização, consubstanciados em vários quadros que se organizam e priorizam. Por fim, o conceito de pluralidade identitária, de Lahire (2003), leva-nos a equacionar a construção de identidades como processo plural e compósito em que cada indivíduo acumula e mistura traços identitários que se miscigenam e reconfiguram. Os indivíduos ciganos não são simples recetores de normas e regras sociais, pois interiorizam, reformulam e recriam de diferentes formas os conteúdos de aprendizagem social advindos do processo de socialização (Dubet, 1996). Assim, cada indivíduo pode interiorizar de forma específica as normas e regras sociais da sociedade em que vive: é o ‘espaço dos possíveis’ a que se refere Bourdieu (2001). Deste modo, os ciganos “integrados” podem ser considerados como uma espécie de “trânsfugas culturais” (Lahire, 2003), o que pode traduzir, por vezes, um consciente desejo de desvinculação de situações de exclusão e marginalização social do universo quotidiano associado à vida dos ciganos. Então, entendido numa perspetiva dinâmica, o indivíduo cigano é capaz de emergir da estrutura social (Casa-Nova, 2013), quebrar ciclos de reprodução social e ter um projeto de vida individual, mesmo que isso implique distanciamento em relação ao grupo de pertença e a certos valores da “tradição cigana”. Mas ele também pode gerir, de forma mais ou menos equilibrada, as suas várias pertenças; isto é, o indivíduo pode acomodar (incorporar) diferentes traços culturais, não sendo exclusivamente um ou outro, mas vários ao mesmo tempo e mesmo novos ao longo da vida (Lahire, 2003; Maalouf, 1998), sendo que todos eles não estão de forma alguma “engessados” no tempo (Cunha & Magano, 2019).
No caso português, as transformações sociais e culturais verificadas a partir de 1974, data da implementação do sistema democrático, repercutiram-se nos indivíduos e famílias ciganas mas também nas relações e interações entre ciganos e não ciganos. O sistema democrático fez emergir novas formas de pensar e de estar, quer na sociedade em geral, quer entre os ciganos, o que remete para a simbiose e metamorfose de traços culturais. Foi nesse interstício teórico-metodológico que se desenvolveu esta investigação sobre ciganos integrados, numa perspetiva de que integração não significa assimilação, nem perda das pertenças culturais (Casa-Nova, 2013; Magano, 2010).
Metodologia
Esta investigação qualitativa teve por base a realização de entrevistas em profundidade com o objetivo de conhecer trajetórias de vida de pessoas ciganas e, através das narrativas de vida, perceber as lógicas de ação biográficas (Bertaux, 1997) e de configurações de relações sociais e familiares. A partir dos relatos de vida, procurou-se identificar os fluxos dos percursos de vida, os contextos socioculturais em que ocorrem, as instituições sociais envolvidas nos processos, os modelos sociais de referência e as relações familiares e sociais que permitiram produzir modos de vida diferenciados dos tradicionais ciganos, conjugando uma abordagem de tipo biográfica e familiar. Para isso, foram considerados os processos de socialização, as redes sociais em que se incluem, os contextos em que cada indivíduo se move e as oportunidades de diversificar as relações sociais para traçar e compreender estes percursos, ou seja, os “campos de possibilidades” (Bertaux, 2020). Os critérios de seleção de entrevistados foram, em primeiro lugar, a inserção profissional por conta de outrem no mercado de trabalho, pretendendo-se estabelecer um distanciamento da imagem estereotipada de ciganos como pessoas que “não trabalham” ou que apenas “trabalham por conta própria”. Em termos sociológicos, o tipo de trabalho/profissão e a situação profissional ainda continuam a ser as principais variáveis consideradas para a definição do estatuto social do indivíduo nas sociedades contemporâneas (Schnapper, 2007). Os participantes no estudo foram selecionados tendo em conta os critérios que mais se ajustavam à investigação, uma vez que se trata de um estudo qualitativo (Lessard-Hébert et al., 1990). Para esta seleção usou-se a técnica “bola-de-neve”, baseada na indicação de pessoas que se enquadrem nos critérios definidos (Freyssinet-Dominjon, 1997).
Os dados que suportam este artigo foram recolhidos entre 2008 e 2010. Realizaram-se 21 entrevistas em profundidade a pessoas de origem cigana, em áreas urbanas e rurais (Bragança, Braga, Coimbra, Lisboa e Porto), com idades compreendidas entre os 20 e os 60 anos. No que se refere às habilitações escolares4, cinco entrevistados têm o 4.º ano de escolaridade (quatro mulheres e um homem); uma mulher tem o 5.º ano; dois entrevistados têm o 6.º ano (uma mulher e um homem); cinco têm o 9.º ano (três mulheres e dois homens), um tem um curso técnico-profissional; dois têm o 12.º ano (dois homens), dois são licenciados (um homem e uma mulher) e dois homens têm mestrado; por fim, uma mulher não sabe escrever. Verifica-se também uma diferenciação quanto às ocupações profissionais desempenhadas: formadores e professores, consultores, mediadores socioculturais, auditor, educadora de infância, auxiliar de serviços gerais, empregados de mesa e de limpeza, cozinheira, empregada de fábrica de pão, empregado de bomba de gasolina, agente policial, jardineira, cozinheira e guarda-noturno. O conjunto de participantes representa de alguma forma um “desvio” em relação ao universo mais conhecido e difundido sobre as profissões das pessoas ciganas, apesar das transformações sociais nos últimos anos. Estes dados foram complementados e cruzados com dados resultantes de outras investigações.
Resultados
Diferenciação de percursos de vida de pessoas ciganas
A importância da habitação
A itinerância ou nomadismo era uma das características que frequentemente se associava a pessoas ciganas (Castro, 2013; Fonseca, 1996). Por esse motivo interessou-nos conhecer o tempo de residência nos locais de habitação, tendo-se constatado a prevalência para residir, desde a geração dos avós, nas mesmas áreas geográficas, dentro das mesmas localidades. Em termos habitacionais, a maioria reside desde a infância em habitações com condições de habitabilidade5. Uma entrevistada refere ter vivido numa “barraca”6 até os pais serem realojados (Lisboa) e outro entrevistado recorda-se de a sua família ainda ter vivido num acampamento (Braga). Os restantes entrevistados viveram em casas próprias ou arrendadas, sobretudo em habitações sociais7, contudo, alguns indicam nunca ter vivido numa habitação social. As más condições habitacionais na infância (falta de água e energia elétrica) são apontadas por alguns como causa de dificuldades, por exemplo, para realizar a higiene para ir à escola.
A importância das relações sociais com ciganos e não ciganos
Ter ascendência familiar exclusivamente cigana ou mista assume um papel relevante para a definição de trajetos de vida e é estruturante nas redes sociais familiares e não familiares. Mas, além dos/as progenitores/as, também se assiste à influência de outros familiares na vida dos entrevistados, como é o caso de duas entrevistadas que foram criadas, uma pela avó cigana e outra pela madrasta (não cigana). Outra mulher (com pai e mãe ciganos) foi educada numa instituição de acolhimento de menores. De facto, as duplas origens familiares facilitam o processo de socialização entre pessoas ciganas e não ciganas, permitindo socializar com o “modo de vida cigano” e conhecer aspetos culturais ciganos, mas também conviver com familiares não ciganos e aprender com a cultura não cigana (Martin & Gamella, 2005). A dupla influência de origens é importante quando é necessário fazer opções pessoais e profissionais. Um dos entrevistados reforça esta ideia quando diz que “teve de harmonizar entre o estar na ‘comunidade’ (cigana) e estar na sociedade portuguesa” (homem, 24 anos, progenitores ciganos, zona urbana); ou seja, ele tem a perceção da importância do envolvimento das famílias, da sua capacidade de ajustamento a diferentes situações sociais e do desafio de corresponder às exigências específicas de cada uma. Efetivamente, ter familiares ciganos e não ciganos proporciona relacionamentos próximos e contínuos com vários universos culturais; convocando ora uma ora outra influência, o indivíduo aprende desde a infância a movimentar-se entre eles e a incorporar aspetos de uns e de outros. Por exemplo, a este propósito, uma entrevistada refere:
Sim, é verdade, eu não posso mentir… eu não faço praticamente vida de cigana, não é? Não é muito, não faço mesmo! Como é que hei de dizer? Foi derivado ao meu trajeto de vida, mesmo. Porque a minha infância foi vivida com a família do meu pai, que é cigana, e a família da minha mãe, que não é cigana. Passei a minha infância até aos nove anos com a família do meu pai. (Mulher, 26 anos, pai cigano e mãe não cigana, 9.º ano de escolaridade, zona urbana)
Identificação com a cultura cigana
A reflexão sobre as várias possibilidades de origem cigana é traduzida nas várias narrativas pelas expressões “pura”, “não pura” ou “menos pura” e emerge como um elemento importante para justificar trajetos e opções de vida, que os entrevistados reconhecem afastar-se do que entendem ser o “cigano-padrão”. Esta reflexão assenta na importância do sangue, mas também na cultura (Gamella, 2013). Entende-se que há “pureza cigana” quando o pai e a mãe são ciganos ou quando o pai é cigano, como nos indica um dos entrevistados.
Para os ciganos, sempre que seja filho de homem, mesmo que a mãe não seja cigana, que é o meu caso, são ciganos puros. No caso de ser filho de mulher cigana e de homem não cigano, já não é puro. (Homem, 52 anos, pai cigano e mãe não cigana, mestrado, zona urbana)
Ou seja, o pai é entendido como o transmissor da pureza da origem cigana. Essa distinção entre “puros” e “não puros” é relevante para os ciganos, mas não o é para os não ciganos: de um modo geral, são incapazes de os distinguir uns dos outros e tratam-nos todos de forma igual (quase sempre de forma estereotipada, negativa e discriminatória), mesmo quando são diferentes, como se pode verificar pelo seguinte testemunho:
Uma pessoa vai trabalhar, no trabalho convive com várias pessoas, com várias caras, mas sabem sempre que, se uma pessoa é descendente de cigana, já é cigana! E depois há sempre aquela coisa: “Ah é cigana!”, há sempre aquela coisa. Mas eu, de certa forma, sinto-me orgulhosa! Houve uma vez uma rapariga, quando eu trabalhava com ela nas limpezas, ela disse-me: “Ai, vieram-me dizer que tu eras cigana!”. Eu disse à rapariga: “Por acaso não sou bem cigana, sou metade!”. (Risos) (Mulher, 25 anos, mãe cigana e pai não cigano, 9.º ano de escolaridade, zona urbana)
A importância de nascer em família “integrada”
Outro aspeto significativo é a perceção de diferenciação em relação a outras famílias ciganas que o ter nascido em família “integrada” confere; esta perceção está ligada sobretudo ao elevado estatuto socioeconómico das famílias de origem, que os leva a (auto)distinguirem-se de outros, mais pobres. Dois entrevistados assinalam não terem experiência de viver “no meio de ciganos” e têm noção da excecionalidade da sua vida, quando comparados com os que consideram “verdadeiramente” ciganos, que muitas vezes se autoexcluem do convívio com não ciganos. Para estes entrevistados, a convivência com não ciganos acontece ao longo das suas vidas, como se pode constatar pelos frequentes casos de apadrinhamento8 e pela ligação a indivíduos de referência que lhes possibilitaram o acesso a determinado tipo de bens (por exemplo, os estudos) e que os acompanharam nos seus trajetos de vida; ou seja, referenciam fatores exteriores à família e aos locais de residência em que estruturaram os percursos e atribuem a não ciganos a detenção de mais capital social e a facilidade de acesso a mais informação e melhor orientação na sociedade (Elias, 2004; Mendes, 2012). Por outras palavras, as relações com pessoas não ciganas são vistas como facilitadoras para fazer um percurso de escolarização mais longo e mais integrado no mercado de trabalho (Magano, 2010).
A questão de género: Singularidade de percursos de mulheres
De um modo geral, as mulheres entrevistadas têm a perceção da singularidade do seu percurso de vida em relação a outras mulheres ciganas, com outros modos de vida. Para algumas, essa singularidade consiste numa conquista pessoal que entendem dever-se ao esforço individual ou ao empenho de alguns familiares. Ou seja, as práticas sociais individuais são situadas no espaço e no tempo, mobilizando o sentido do conceito de agência com fluxo contínuo de conduta nas atividades do agente (Giddens 2004, p. 14). Não obstante, as mulheres ciganas estudadas assinalam mais dificuldades do que os homens no acesso à escolarização prolongada no ensino regular (Magano, 2010), o que evidencia a diferenciação de género, salientada também em outros estudos nacionais (Magano & Mendes, 2016; Mendes, 2007; Mendes, Magano & Candeias, 2014). Cruzando os níveis de escolaridade das entrevistadas com as suas origens familiares, há uma tendência para níveis de escolaridade mais elevados por parte das que descendem de casais mistos, aspeto que nos homens entrevistados não assume particular relevância. Assim, no caso das mulheres, o facto de serem oriundas de famílias mistas, criadas por outros familiares ou instituições de acolhimento, revela-se um fator decisivo para uma maior escolarização. Também o afastamento de familiares ciganos, ou de contextos em que residem apenas famílias ciganas, favorece percursos de escolaridade mais prolongados.
As razões apontadas pelos homens para a não conclusão da escolaridade obrigatória são diferentes das mulheres. Para eles, continuar ou abandonar o sistema escolar parece ser mais uma decisão pessoal, dependente da sua vontade, e não tanto uma decisão parental, como acontece com as raparigas. Ainda assim, a escolaridade dos homens entrevistados é mais elevada do que a da geração anterior, embora, sobretudo no caso de algumas mulheres, fique aquém da escolaridade mínima obrigatória em Portugal (o que indica que continuam a ser vítimas de discriminação de género na cultura cigana comparativamente com a escolarização das raparigas adolescentes não ciganas).
Na escola? Na realidade nunca andei na escola. Não, não nunca. É assim: quando eu estava em casa dos meus pais, os meus irmãos, todos iam à escola, todos; tanto que eles têm o nono, o décimo, têm todos habilitações muito, muito grandes. Só que, como eu era a mais velha deles todos, eles eram seis, comigo sete, eu tinha que me levantar às sete da manhã, dar-lhes o pequeno-almoço, vesti-los e levá-los à escola. (Mulher, 40 anos, ambos progenitores ciganos, sem escolaridade, zona urbana)
Devido a algumas políticas públicas, nos últimos anos, aumentou o número de mulheres ciganas que, sobretudo no âmbito do Programa Escolhas9 e do Projeto Mediadores Municipais, desempenham funções de dinamizadoras culturais, mediadoras municipais e mediadoras socioculturais. Igualmente relevante é a criação de uma bolsa para apoiar o estudo no ensino superior através do projeto Opré Chavalé10, promovido pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, em parceria com a Associação Letras Nómadas, e mais recentemente do Programa RomaEduca11 (Magano, 2022).
A relevância do casamento segundo a tradição cigana
O tipo de casamento, pela tradição cigana ou não, com um/a cônjuge cigano ou não cigano, pode desencadear diferentes proximidades com a “cultura cigana”. A tradição do “casamento cigano” é entendida como algo central para a persistência da cultura cigana e como ritual de passagem para o mundo dos adultos, um costume a manter (Gamella, 2013). Este tipo de casamento assenta na afirmação da virgindade da noiva e funciona como forma de exercer controlo sobre as mulheres. A prática do casamento cigano consiste em relações endogâmicas, muitas vezes precoces (na adolescência das raparigas), quase sempre com familiares próximos. Mas não se pode generalizar esta prática em Portugal, uma vez que algumas mulheres ciganas transmontanas mostram desconhecimento desta tradição, que surge frequentemente retratada na bibliografia e em algumas narrativas masculinas. Há também desconhecimento no que respeita a casamentos combinados pelos progenitores, prova de virgindade, assim como outros rituais festivos associados à boda cigana.
Contudo, para algumas mulheres, cujas famílias vivem ainda de forma mais tradicional, o facto de terem concretizado a sua união conjugal com um homem não cigano foi vivida como uma espécie de libertação, porque lhes permitiu evitarem um “casamento cigano” combinado, situação vivida por algumas mulheres entrevistadas. Em relação ao “rigor” imposto pelo casamento cigano, são referidas algumas formas de contornar aspetos tradicionais mais rígidos, como a “fuga” ou o casamento “à espanhola”12, que consiste numa espécie de encenação que possibilita aos jovens fazerem as suas escolhas em vez de aceitarem as imposições dos progenitores. Contudo, o casamento cigano ainda é entendido como um dos principais alicerces desta cultura, mesmo para quem não o realizou ou “fugiu” a essa responsabilidade.
A dificuldade de encontrar emprego devido à origem cigana
No que se refere às atividades profissionais dos/as participantes no estudo, elas refletem claramente as diferenças de escolaridade entre homens e mulheres. Sendo a escolaridade dos homens mais elevada, de um modo geral, eles desempenham atividades mais qualificadas do que as mulheres (apenas uma mulher desempenha uma atividade qualificada: é educadora de infância). Comum a todos e todas é o facto de desenvolverem atividades por conta de outrem, que era um critério de seleção dos entrevistados. Apesar de quase todos os homens entrevistados terem estado ligados à venda ambulante (que usualmente é referida como sendo “modo de vida cigano” em Portugal) para ajudar os progenitores, e de alguns, em determinado momento da sua vida terem exercido a atividade de forma autónoma, como meio de garantir a sobrevivência, esta foi deixada assim que surgiu a oportunidade de trabalharem por conta de outrem. Esta possibilidade é valorizada, por permitir um rendimento mensal fixo. No entanto, um dos entrevistados, exerce uma atividade por conta de outrem durante a semana, dedicando-se à venda ambulante ao fim de semana para equilibrar o orçamento familiar. Na sua perspetiva, as duas atividades são completamente conciliáveis. No caso das mulheres entrevistadas, uma informa ter feito venda ambulante na rua até aos 15 anos.
Homens e mulheres assinalam as dificuldades vividas para encontrar trabalho por conta de outrem: sentem-se tratados de forma negativa na procura de emprego, discriminados devido a recusas sistemáticas que acreditam ser devidas à sua origem cigana. Por vezes, referem, para aceder a trabalho assalariado a estratégia passa pela ocultação da origem cigana. Acontece que, às vezes, quando os responsáveis patronais ou chefias descobrem a origem, isso pode levar ao despedimento ou servir de justificação para a não progressão na carreira. A conquista de emprego é associada à vontade e à persistência pessoal de cada um/a (Magano & Mendes, 2014). Quando conseguem entrar no mercado de trabalho, há, quase sempre, um sentimento de que são constantemente colocados à prova, tendo de demonstrar as suas competências e aquilo de que são capazes.
Houve trabalhos em que eu fui tratada mal, fui espezinhada, mesmo. Saí de lá muito em baixo. (…) Trabalhei no Dolce Vita, na McDonalds, e a supervisora adorava mesmo o meu trabalho, gostava muito de mim como pessoa. Combinávamos para tomar um café, tínhamos uma equipa, um grupo de trabalho muito bom. Eu gostava muito de trabalhar lá e ela gostava muito de mim, do meu trabalho. Houve um dia que a minha tia, a que é irmã do meu pai, apareceu lá para jantar, e ela vê-se logo que é cigana, começou a falar comigo. A supervisora estava lá, chamou-me e disse: “É tua amiga?”. Eu disse: “É a minha tia”. A partir daí era bocas, que aquilo não era a casa dos ciganos. Fez-me a vida negra, muitas coisas… (Mulher, 26 anos, pai cigano e mãe não cigana, 9.º ano de escolaridade, zona urbana)
Diferentes conceções de ser cigano e cigana
Através dos discursos emerge a referenciação de uma vida “normal” por oposição a uma vida de cigano. Os entrevistados e as entrevistadas entendem ter um modo de vida “normal”, no sentido em que fazem uma vida não cigana; sentem necessidade de transmitir aos seus filhos traços culturais identitários ciganos com o objetivo de aprenderem o que é ser cigano/a e distinguirem entre o que é ser e não ser cigano/a. Por exemplo, um entrevistado traduz bem esse desejo quando diz que gostaria de ter um filho “doutor cigano”, que ele tivesse a possibilidade de fazer uma escolarização prolongada, mas que não perca perdesse a sua ancoragem identitária ao que é ser cigano.
O não fazer “vida de cigano” não significa que estas pessoas não se sintam ciganos/as; aliás, defendem mesmo a necessidade de alargar o conceito do que é ser cigano/a, de modo a incorporar novas formas de ser. O conceito de “ser cigano” tem várias dimensões: 1) uma perspetiva biológica, em que o ser cigano é entendido como uma herança, uma sina, a transmissão genética, uma questão de “sangue”; 2) a “aparência cigana”, uma vertente que serve para a construção de uma imagem social sobre o cigano, que se prende com as formas de se vestir, falar, andar e se relacionar com os outros, ciganos e não ciganos; 3) o modo de vida, sobretudo em torno da venda ambulante e vivência junto de outras pessoas ciganas. 4) por fim, o sentimento de identificação com alguns valores ciganos como a relevância dada à família, a alegria das festas e a união entre as pessoas (Magano, 2010; Magano & Mendes, 2016).
As pessoas ciganas entrevistadas (auto)diferenciam-se entre os ciganos que “evoluíram” e os que não “evoluíram” e entre os “ciganos verdadeiros” e os “não puros”. Por parte dos entrevistados existe autodistanciamento em relação aos que “não evoluíram” e autodiferenciação em relação aos outros ciganos. Por exemplo:
Os ciganos como deve ser, entre aspas, que têm um padrão “bom”, são aqueles que andam na venda, têm boas bancas, têm lojas, têm um bom estatuto social, está a entender? (Homem, 24 anos, ambos os progenitores ciganos, 9.º ano de escolaridade, zona urbana)
Apesar de estas pessoas ciganas estudadas terem percursos que se distinguem dos tradicionais ciganos, a identificação com a cultura cigana manifesta-se no “orgulho em ser cigano”, no “orgulho no percurso efetuado” e na reivindicação de ser cigano, que passa pela aceitação e afirmação das origens sociais e culturais cigana. Trata-se de ter a “tripa cigana”, como refere uma entrevistada, que não permite a desvinculação e ocultação dessas origens, antes abrindo espaço para um alagamento de conceção do que é ser cigana e cigano atualmente.
Discussão de resultados
Os ciganos/as, integrados/as do ponto de vista social e económico, distanciam-se de representações sociais estereotipadas, essencialistas e socialmente dominantes produzidas sobre as pessoas ciganas em situação de pobreza e exclusão social. A sua integração é aferida pela invisibilidade social enquanto “ciganos” no dia a dia e que passa sobretudo pelas ocupações em atividades profissionais diversas que se distinguem da “tradição” cigana. Especialmente no caso das mulheres, o afastamento da família e do modo de vida cigano é referido como uma opção tomada de forma consciente e deliberada com a criação de oportunidades, situadas e que souberam aproveitar, no sentido de agency (Giddens, 2004), fazendo os seus projetos de vida autónomos (Velho, 1999). A expressão “tracejar a vida”, usada por algumas entrevistadas, expressa esse sentimento de autoria do seu projeto de vida, das opções tomadas para a orientação dos seus percursos (Magano, 2010; Magano & Mendes, 2016).
Nas sociedades contemporâneas, em contextos capitalistas complexos e com a acentuação da individualização e a divisão social do trabalho, parece que se torna cada vez mais difícil ser cigano no sentido tradicional. A interiorização do modo de vida não cigano evidencia a racionalidade moderna do autocontrolo (Elias, 1989), através de manifestações de distanciamento evolutivo em relação aos outros ciganos. Nesta perspetiva, os outros (ciganos) são vistos como mais “atrasados”, e esta expressão remete, em alguns discursos, para as diferentes fases de integração inevitável, em que o “nós” de cada um é entendido como estando mais desenvolvido do que o dos outros e também a sentir-se ‘estabelecido’ e a ver os outros como ‘outsiders’ (Becker, 1985; Elias & Scotson, 2000). A noção de “atraso” é representada por características negativas, como falta de higiene, incapacidade de prever o amanhã (de ser previdente e poupar), violência interpessoal (rixas e desacatos frequentes), fechamento do grupo e imagem de pouco crédito. Estes indivíduos partilham e acionam diferentes códigos nas diferentes dimensões das suas trajetórias, articulando com essas ideologias as “províncias de significado” (Velho, 1999), interpretativas da sua posição no mundo social. Neste contexto de pluralismo, o indivíduo pode movimentar-se e fazer escolhas (Berger & Luckmann, 2004, p. 40); ou seja, passa a ser ele “quem escolhe os laços sociais” (Kaufmann, 2003, p. 263), sendo assim elemento determinante para a definição da sua trajetória de vida. A liberdade de escolha do indivíduo é uma das características fluidas da modernidade ou da tendência para liquidificar o que tradicionalmente era sólido, resistente ao tempo, com particular incidência no passado e na tradição (Bauman, 2001). É esta ideia que está presente quando o indivíduo afirma sentir-se simultaneamente integrado e cigano, o que demonstra a coexistência de modos plurais de produção de sentido sobre a integração cigana - ser cigano integrado mostra que um indivíduo não é apenas uma dimensão, mas sim uma totalidade compósita que revela toda a acumulação de experiência e de identificações, que mobiliza e operacionaliza para a definição das suas opções de vida (escolha racional), para o delinear do seu projeto de vida, da sua autonomia - são identidades compósitas, múltiplas e plurais.
As trajetórias e biografias dos indivíduos de origem cigana estudados (Bertaux, 2007) permitiram conhecer as singularidades dos processos de integração e de construção identitária, as províncias de significado e a produção de sentido interpretativo elaborado para explicar a complexidade que emerge do cruzamento de integração social e identidade. Constatámos que existe uma circulação entre contextos múltiplos por parte dos indivíduos de origem cigana integrados, o que leva a concebê-los como indivíduos plurais, produto de várias experiências, e nos afasta definitivamente de visões estáticas ou engessadas quer sobre os modos de vida dos ciganos, quer sobre a sua identidade (Cunha & Magano, 2019). Sobretudo no que se refere às conceções de ‘normalidade’, há reflexões complexas que expressam a interiorização de diversos traços identitários e se traduzem em formulações sobre o que é ‘normal’ no mundo dos ciganos e não o é para os não ciganos. Assim, à medida que se vão integrando, entendem que vão deixando de ser ciganos ‘normais’, menos ligados às tradições ciganas, embora as valorizem, se orgulhem das suas origens e se sintam ciganos e ciganas.
Conclusão
Através da análise de biografias de pessoas ciganas, foi possível constatar a diversidade de modos de vida, sem que isso signifique a perda da identificação com a cultura cigana. O conhecimento produzido contribui para desconstruir imagens estereotipadas e essencialistas, abrindo perspetivas múltiplas que rompem com visões hegemónicas e estaticizantes. Na verdade, constata-se que é possível ter diferentes trajetórias em termos escolares, habitacionais e económicos, e conciliá-las com o sentimento de ser cigano e cigana. Por vezes, esses percursos de vida são entendidos como algo que resulta da agencialidade e do projeto de vida traçado por cada um e cada uma, mas estão também estreitamente relacionados com um conjunto de fatores que favorecem ou dificultam essas posturas de emancipação e afirmação identitária.