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Relações Internacionais (R:I)
versión impresa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais n.21 Lisboa mar. 2009
Portugal e a NATO
A Política colonial do Estado Novo e os Aliados (1961-1968)[1]
Pedro Manuel Santos *
Este artigo analisa a forma como a diplomacia portuguesa actuou na Aliança Atlântica em defesa da política colonial do regime e quais os obstáculos encontrados ao longo da década de 1960, logo após o eclodir da luta armada em Angola. Destaca também o papel que as duas administrações norte-americanas (Kennedy e Johnson) tiveram no seio da Aliança Atlântica e qual a influência no rumo da política colonial de Portugal e as opiniões dos restantes aliados.
Palavras-chave: NATO, Estado Novo, política colonial, Estados Unidos
Portugal and NATO. The colonial foreign policy of «Estado Novo» and the allies (1961-1968)
This article analyses the way Portuguese diplomacy worked trough NATO to defend the regime’s colonial policy, as well as the obstacles it faced during the 1960’s after the beginning of the armed conflict in Angola. It also emphasizes the role of Kennedy and Johnson administrations in the Atlantic Alliance and in the Portuguese foreign policy development as well as the allies’ perception on Portuguese behaviour.
Keywords: NATO, “Estado Novo”, colonial policy, United States
A posição de Portugal na NATO caracterizou-se desde a formação do Pacto, em 1949, por um anacronismo latente. Era o único aliado cujo regime nunca escondeu a admiração pelos regimes depostos na II Guerra Mundial e cuja filosofia política não se compaginava com a das democracias ocidentais. Foram questões de ordem geopolítica e estratégica que ditaram o convite à adesão de Portugal[2]. As duas consequências imediatas da entrada de Portugal na NATO verificam-se nos acordos assinados com os Estados Unidos em 1951. Em Janeiro, assinou-se o acordo de «Auxílio Mútuo para a Defesa de Portugal e Estados Unidos da América» e em Setembro do mesmo ano o «Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos». Apesar de as disposições do tratado não preverem a utilização do armamento NATO fora da área do Atlântico Norte, Portugal consegue incluir um anexo secreto aos acordos de 1951 que salvaguarda, ainda que ambiguamente, uma possível utilização daquele armamento nas colónias portuguesas. Nas palavras do historiador António Telo, a «participação portuguesa na NATO é um "mal necessário", mas que não vai alterar os conceitos de defesa existentes, pelo que se mantém a prioridade à Península e ao império»[3]. A política colonial do Estado Novo continuaria, portanto, a ser um dos vectores da política externa portuguesa.
Ao contrário do que acontecia no fórum das Nações Unidas, a política colonial portuguesa nunca foi alvo de ataques dos aliados no seio da Aliança. A NATO funcionava como um refúgio dos ataques internacionais. Salazar tentou optimizar esta situação, garantindo para Portugal apoios que pudessem contrariar os «ventos de mudança» que se adivinhavam em África.
Este artigo tem por objectivo mostrar a forma como a diplomacia portuguesa actuou na Aliança Atlântica em defesa da política colonial do regime e quais os obstáculos encontrados ao longo da década de 1960, logo após o eclodir da luta armada em Angola. Também se destacará o papel que as duas administrações norte-americanas (Kennedy e Johnson) tiveram no seio da Aliança Atlântica e até que ponto é que isso influenciou o rumo da política colonial de Portugal e as opiniões dos restantes aliados.
A SOLIDARIEDADE ATLÂNTICA E AS VOTAÇÕES NA ONU
Após o início das revoltas nacionalistas em Angola, a 4 de Fevereiro e a 15 de Março de 1961, Portugal continuava a debater-se com as resoluções anticolonialistas na ONU. Na mesma altura, a Libéria apresentava uma queixa contra a política colonial portuguesa no Conselho de Segurança. Na sessão do Conselho do Atlântico Norte, a 3 de Março de 1961, Portugal procura concitar o apoio atlântico para as votações em Nova York. O objectivo português era criar um «bloco NATO» que desse garantias de não fazer aprovar as resoluções contra a política colonial do Estado Novo. Ante este desígnio, Averell Harriman[4] foi claro: «seria mau promover um bloco NATO», uma vez que não existem «blocos de países», mas sim «países individuais cada qual com o seu ponto de vista particular». Após esta tirada, acrescentou que «Portugal não podia contar que todos partilhassem plenamente o seu ponto de vista, tal como os Estados Unidos não esperavam que as suas atitudes merecessem sempre o apoio dos restantes aliados». Temendo a posição desfavorável da novel Administração norte-americana, António de Faria, embaixador de Portugal na NATO, lança um repto a Harriman: «Se alguma das nossas províncias ultramarinas viesse a ser atacada e a tivéssemos de perder em face da indiferença dos nossos aliados, seriam inevitáveis acontecimentos de maior gravidade em Portugal e nenhum Governo poderia manter-nos na Aliança Atlântica.»[5] Estava iniciado o debate sobre a solidariedade atlântica, ou a falta dela, nas questões referentes a assuntos de um aliado NATO.
O problema colonial português não passou despercebido no Conselho. O embaixador holandês na NATO, Dirk Stikker, aconselhou António de Faria a procurar «elementos americanos importantes e influentes capazes de melhor compreensão» da política externa portuguesa. Era o caso de Dean Acheson, com quem Portugal «deveria entrar em contacto e que agora presidia [a um] grupo nomeado por Kennedy para estudar a posição americana e eventuais reformas na NATO»[6]. Por último, o embaixador aconselhava Portugal a não fazer nada que comprometesse a segurança e defesa da Europa e que nem sequer pensasse em sair do Pacto. Esta advertência fazia-a como amigo de Portugal.
Os restantes aliados sentiam que a hostilidade americana podia ser contraproducente e a votação americana na ONU, em Março de 1961, não deixou ninguém indiferente na NATO. No dia 20 de Março de 1961, Casardi, secretário-geral interino que substituíra Spaak após o pedido de demissão do belga, em Fevereiro de 1961, perguntava a Faria se Portugal estava interessado em levar a questão de Angola a discussão no Conselho da NATO ou se preferia o embaixador português que fosse ele a levantá-la[7]. Tudo isto porquê? Porque o embaixador italiano considerava que os Estados Unidos não tinham respeitado as disposições contidas no parágrafo 3.º, alínea c, do «Relatório dos Três Sábios». Nesta alínea encontra-se a seguinte disposição: «Nenhum governo deve adoptar uma política definitiva ou fazer declarações políticas marcantes sobre questões importantes para a Aliança ou para um qualquer dos seus membros sem a consulta prévia, excepto se houver impossibilidade material demonstrável.»[8] Ou seja, os Estados Unidos deviam ter consultado previamente os países membros da Aliança. Isso dava garantia moral e jurídica ao apoio que Portugal necessitava para discutir a questão no Conselho da NATO.
A 20 de Abril, numa longa exposição ao Conselho, António de Faria comunica aos restantes parceiros a mágoa e a desilusão do seu país relativamente às votações na ONU. Relembrou aos presentes que à questão da ONU, se Portugal administrava algum território que se enquadrasse na definição de território não-autónomo, o Governo português respondera sempre que não. Esses territórios eram parte integrante da Nação, logo, qualquer interferência das Nações Unidas seria vista como ingerência nos assuntos internos do país, o que ia contra a Carta das Nações Unidas. As províncias ultramarinas, na óptica do Estado Novo, davam garantias económicas e condições geoestratégicas para uma defesa contra o comunismo mundial. Esta posição ficou atestada nas palavras do representante português: «nós recusamos esta demissão [abandono da defesa das possessões africanas], esta traição dos valores morais, aos quais desejamos ficar agarrados.» Segundo Faria, adoptar posições que conduzissem a «novos Congos» era o que os Estados Unidos estavam a fazer quando propugnavam pela autodeterminação dos povos africanos. No final da sua exposição, o representante português lançou um apelo em nome do seu Governo para que «os países amigos e aliados não assumam uma posição de hostilidade para com Portugal». Caso «não lhes seja possível votar a seu favor, ao menos que se abstenham e que os seus representantes evitem fazer declarações públicas desfavoráveis»[9].
Em suma, Portugal passava assim o ónus da questão para os seus parceiros atlânticos: a defesa do Ocidente começava com a coesão da Aliança e para tal teriam de ser os aliados a mostrar que desejavam tanto essa defesa como Portugal. Com esta declaração, António de Faria reiterava a ideia de que se os aliados não estivessem de acordo com a política ultramarina portuguesa, pelo menos deviam abster-se de a criticar publicamente sob pena de isso violar o espírito de coesão e unidade da Aliança.
O embaixador americano, Thomas Finletter, contraria esta visão, dizendo que as posições recentes da administração americana tinham como propósito último «contribuir para um Portugal mais solidamente estruturado» e «fortalecer a Aliança, colectiva e individualmente». Este paradoxo evidente apenas se sentia na maneira como os objectivos eram alcançados, uma vez que o princípio era o mesmo. A NATO constituía o «fecho da abóbada da política americana, mas os americanos eram também obrigados a tomar em consideração as outras pedras»[10]. Tornava-se claro que os Estados Unidos ampliavam o jogo da Guerra Fria a uma escala global. O embaixador português «ataca» as declarações de Finletter com a citação de um princípio geral da consulta entre os países da NATO apresentada pelos Estados Unidos, no qual se diz que «o processo de consulta política requer a aceitação do facto de que possa haver alturas em que os aliados têm que "concordar em discordar", actuando aquele com a máxima discrição, maturidade e consideração pelos outros»[11]. Ironiza mesmo a falta de tacto dos americanos por não terem usado um princípio seu em Nova York. Conclui a réplica com o apelo à solidariedade dos aliados, que era o mínimo que podiam fazer.
De todos os parceiros, o americano era aquele que mais evidenciava afastamento face à política ultramarina de Portugal. Dentre os parceiros, aqueles que mais apoiavam Portugal pareciam ser a França, a Itália e a Bélgica. Isto indiciava que o equilíbrio de poderes na Aliança se definia entre as potências continentais europeias e a potência do outro lado do Atlântico, tendo o Reino Unido um papel de fiel da balança. Os britânicos manifestaram-se sempre prudentes e esperaram sempre para ver que consequências se retirariam da situação criada.
O FALHANÇO DO MULTILATERALISMO
Depois de comunicada a Salazar a nova orientação política para África da Administração Kennedy, em Março de 1961, os norte-americanos procuraram reunir apoio político na Europa. Não esquecendo a solidariedade atlântica, os Estados Unidos encetaram diligências junto dos governos nacionais da França e do Reino Unido. Para esse apoio ser efectivo, os governos francês e britânico deviam fazer o mesmo que o Governo americano fizera: demarcar-se do apoio à política colonial portuguesa. A razão da abordagem a estes dois parceiros europeus não tem só que ver com a sua posição na NATO, mas também se deve ao facto de pertencerem ao Conselho de Segurança da ONU. Dado que os Estados Unidos queriam conjugar as posições destas duas organizações internacionais, seria mais fácil pôr em prática um plano de coacção política se esta se fizesse através de aliados, mormente no fórum da NATO, obtendo para isso o apoio dos países mais importantes na Aliança.
É de iniciativa norte-americana o encontro tripartido, em Londres, a 4 de Maio de 1961, que marca o início do desencontro de posições dentro da Aliança. Washington convoca a França e o Reino Unido para um encontro onde se possa concertar uma posição comum a apresentar no próximo Conselho Ministerial da NATO, que decorreria no dia 8 de Maio, em Oslo. O objectivo deste encontro era congregar um apoio político que se pudesse manifestar através de démarches privadas da política colonial portuguesa. Para isso, os Estados Unidos «contavam com o Reino Unido e a França, com toda a sua experiência em matérias africanas, para melhor aconselhamento». O Reino Unido mostrou-se prudente na decisão de condenar a política colonial de Portugal, o seu mais antigo aliado, e a França revelou um cepticismo, senão mesmo oposição à ideia americana de se demarcar politicamente de um aliado na Europa[12].
A pretensão dos Estados Unidos centrava-se no papel que cabia à ONU na resolução do conflito colonial na África portuguesa. Para o representante norte-americano, a intervenção da ONU era «inevitável» caso «a situação se deteriorasse na África portuguesa». Mas antes de se chegar a esse ponto, era necessário que a França e o Reino Unido fizessem valer a sua influência política em Lisboa e mostrar a Salazar a premência das reformas nas colónias. Tornava-se óbvio que os Estados Unidos não queriam utilizar o fórum da NATO para discutir o colonialismo do Estado Novo, pois o bloco afro-asiático na ONU estava a ser aliciado pela URSS. Era mais fácil agora o Ocidente aproximar-se dos novos países africanos, saídos do jugo colonial, e procurar minimizar as consequências no futuro do que confrontá-los directamente com um apoio a um país colonialista. Isto mesmo é comunicado aos aliados neste encontro tripartido: «Se o Ocidente tentar e falhar em manter o assunto Angola fora da ONU, então perderemos muita da influência sobre a situação.»[13] Como era de crer que Portugal dificilmente aguentaria uma guerra em Angola sem o apoio dos principais aliados, era preferível aproximarem-se desses países africanos, apoiando os movimentos nacionalistas, por forma a anteciparem-se à URSS. Caso isto não acontecesse, os Estados Unidos preconizavam mesmo um «severo revés» nas relações com os países africanos[14].
Quer a França quer o Reino Unido mostraram-se relutantes em aceitar uma intervenção da ONU, pois consideravam-na contrária à Carta. Para eles, os acontecimentos em Angola eram da competência interna de Portugal e «[uma intervenção da ONU em territórios portugueses]só tornaria as coisas piores». Para os Estados Unidos, esta posição só favoreceria os soviéticos, pois deixava «toda a iniciativa e acção para os países africanos. Isto, consideravam os Estados Unidos, não é uma decisão acertada». Todavia, ficou acordado por todos que por ora não se devia pressionar os portugueses no Conselho do Atlântico Norte. Ou seja, os três aliados de Portugal preferiram deixar na penumbra as resoluções deste encontro por forma a não beliscar a coesão e unidade da Aliança, já que entre eles não se conseguiu chegar a um acordo unívoco, e isso mesmo foi cumprido na cimeira da NATO, em Oslo. Neste encontro, Portugal conseguiu o benefício da dúvida na resolução dos conflitos em Angola, contando inclusivamente com o apoio militar da Aliança.
O ARMAMENTO NATO E A CIMEIRA DE OSLO
A primeira prova de fogo de Franco Nogueira – que entrara para os Negócios Estrangeiros, a 4 de Maio de 1961, no seguimento da remodelação governamental após o golpe falhado de Botelho Moniz no mês anterior – deu-se em Oslo, na cimeira realizada entre os dias 8 e 10 de Maio de 1961. Era a reunião ministerial da NATO e Portugal apresentava aos aliados a concretização das diligências necessárias para a retirada temporária das suas tropas afectas à NATO. Esta cimeira foi fundamental para a execução da política externa portuguesa por duas razões. Em primeiro lugar, a nível bilateral com os Estados Unidos, Portugal confirma o novo rumo dado à política externa da Administração Kennedy, reiterada pelo secretário de Estado, Dean Rusk, num encontro ocorrido à margem da reunião com o novo ministro português. Em segundo lugar, pelo consentimento dado pelos aliados à retirada temporária do armamento NATO. Para tal foi importante a argumentação utilizada por Portugal nas suas declarações aos aliados.
Numa sessão anterior à Cimeira de Oslo, a 3 de Maio de 1961, António de Faria comunicava aos aliados que o Governo português, «por razões imperiosas de ordem nacional», se viu obrigado a alterar a sua contribuição militar e a desviar «as escoltas oceânicas reservadas e afectas ao SACLANT» para África, bem como algumas forças (subunidades militares) afectas ao SACEUR. Reafirmando sempre o carácter provisório destas medidas, Faria concluiu a sua declaração destacando «a urgência em nos defendermos contra as acções exteriores e garantir a paz em determinadas partes do território nacional ultramarino». Houve por parte dos aliados um consenso quanto a esta questão. Segundo o embaixador, «nenhum representante permanente fez comentários»[15]. Estava gerado um consenso momentâneo à volta da questão ultramarina portuguesa.
Dias depois, na cimeira ministerial, em Oslo, Franco Nogueira confirmou estes dados e citou os exemplos recentes da França – na Argélia e da Bélgica – no Congo – para justificar por si só o uso do armamento afecto à NATO numa situação de claro perigo de insegurança para uma nação aliada[16]. Ou seja, estando iminente a degradação de uma situação que poderia degenerar em perigo para a segurança de um país aliado, Portugal reclamava a igualdade de direitos dos aliados: o que se aplicava a um, devia aplicar-se a todos[17]. Nesta cimeira, Nogueira não esconde o desagrado português relativamente à ONU, chegando ao ponto de considerar ridículo que mais de metade do financiamento daquela organização viesse de países da NATO. Segundo o ministro, esses países fariam melhor em aplicar essas verbas em países subdesenvolvidos da própria Aliança para uma melhor e mais eficaz defesa do Ocidente. Mais uma vez se nota o interesse da diplomacia portuguesa em utilizar o fórum da NATO para constituir um bloco de defesa em Nova York. O ministro critica directamente os aliados na NATO que não têm dado o apoio que um parceiro atlântico por natureza merece. «Não se pode falar de solidariedade atlântica quando ataques daqueles do género da ONU são endossados por países da nossa Aliança.»[18] Isto é, o ministro português joga emocionalmente com a questão da solidariedade atlântica, não deixando de vincar aliás que uma Aliança sem coesão e unidade de nada serviria ao Ocidente. Todas as fraquezas que os aliados pudessem demonstrar seriam aproveitadas pela União Soviética. Por isso, tornava-se necessário que todos se unissem e fossem solidários com um país aliado que se dizia vítima de ataques de onde nunca suspeitariam que existissem.
Portugal desejava que a discussão sobre a questão ultramarina portuguesa fosse desviada da ONU, onde lhe eram claramente desfavoráveis as suas posições, para uma organização internacional onde tinha uma voz que era ouvida e onde sabia que podia contar com fortes apoios. Assim, o Estado Novo consegue que o Conselho do Atlântico conceda o seu aval ao apoio necessário para preservar a segurança de um aliado. Este apoio provém da habilidosa argumentação portuguesa que concita os dois maiores medos dos parceiros atlânticos: a falta de coesão numa decisão que envolve um aliado, que poderia ser aproveitada politicamente pela URSS, e a repetição de novos focos de instabilidade em África, caso não se agisse imediatamente em prol da segurança do território.
A POSIÇÃO DOS ALIADOS NO SEIO DA NATO
Os Estados Unidos, ou melhor, a Administração Kennedy, constituíram indubitavelmente o principal obstáculo à prossecução da política colonial portuguesa no início da década de 1960[19]. Num relatório elaborado por Dean Acheson, a pedido de Kennedy, sobre o papel da NATO na nova política externa norte-americana, o antigo secretário de Estado de Truman foi peremptório: «a inoperância da ONU na resolução dos problemas só provocaria divisões na Aliança.»[20] Para Acheson, não hostilizar um aliado num organismo internacional só beneficiará a coesão e unidade da Aliança. A melhor maneira de resolver um problema de um aliado é trazê-lo à discussão no Conselho do Atlântico e proceder a uma consulta genuína entre os contendores. Essa consulta genuína «pode muito bem ser dolorosa e áspera», mas é a única maneira de ser «coerente com os princípios de tornar a Comunidade Atlântica um instrumento efectivo para uma acção comum»[21].
Um outro relatório é entregue a Kennedy na mesma altura. Apresentado a 12 de Julho de 1961, o relatório do Grupo de Trabalho Presidencial (Presidential Task Force on Portuguese Territories in Africa) explanava a situação interna das colónias portuguesas e preconizava algumas medidas a adoptar pelos Estados Unidos a fim de se resolverem os conflitos em Angola. De acordo com o relatório, «os portugueses não iriam restabelecer a ordem nos próximos tempos» e «as suas tropas não conseguiriam ter sucesso em eliminar a actividade rebelde no Norte [de Angola]», onde se verificavam com maior intensidade os ataques dos nacionalistas da UPA[22]. Este ponto era já sinónimo de que era urgente pacificar a zona, pois o tempo corria contra os Estados Unidos.
Não obstante os Estados Unidos reconhecerem que a sua «influência em Portugal e dentro da NATO é limitada»[23], a atitude africana devia ser acarinhada sem que se pusesse em perigo o uso da Base das Lajes. É este o maior óbice dos Estados Unidos. Segundo as prospectivas militares do relatório, uma oposição frontal e hostil a Portugal provocaria graves danos políticos à coesão da Aliança Atlântica, podendo mesmo dar-se o caso da retirada de Portugal da NATO e a perda da Base das Lajes. Esta situação traria graves consequências para o dispositivo militar norte-americano de defesa da Europa e do Médio Oriente. A solução deste dilema passava pela congregação de apoios, no seio da NATO, dentre aqueles países que condenavam publicamente o colonialismo e apoiavam a autodeterminação dos povos africanos e os países escandinavos pareciam ser os parceiros ideais, pois tinham sido unânimes em apoiar a resolução da ONU, que condenava a actuação portuguesa em Angola, e a votar favoravelmente na Assembleia Geral contra a política colonial portuguesa[24].
Os grandes aliados da Administração Kennedy no seio da Aliança foram os nórdicos. Importantes sectores da política norueguesa e dinamarquesa defendiam publicamente a saída de Portugal da NATO. Na Noruega, os jornais afirmavam que «Portugal comprometia os seus aliados com a sua política em Angola» que «não promovia a paz e a segurança [no continente africano]». Para os noruegueses, «a Carta da NATO devia ser revista para tornar uma tal política incompatível com a participação [de Portugal] na Aliança Atlântica»[25]. Os dinamarqueses, por seu turno, pronunciavam-se «em termos francamente violentos contra a presença de Portugal na Aliança Atlântica, criticando a política seguida por este governo tanto na ONU como na NATO». Havia mesmo nos círculos governamentais quem defendesse a expulsão de Portugal da NATO, justificando que o «relativo enfraquecimento militar da Aliança, resultante da exclusão de Portugal, seria compensado pelo reforço moral que à mesma adviria de tal exclusão, dado que a moral é mais importante do que os canhões»[26].
Contrariando estas posições extremadas, a Bélgica e o Reino Unido apresentaram quase sempre uma «neutralidade benévola» no que dizia respeito à política colonial de Salazar. Por exemplo, o embaixador belga, Spaak, era da opinião de que Portugal devia «fazer todo o possível por liquidar o terrorismo em Angola antes da próxima Assembleia das Nações Unidas, de maneira a poder anunciar até lá reformas sociais, económicas e políticas nos territórios ultramarinos». Se Portugal instituísse reformas nas suas colónias, Spaak supunha mesmo «que a maior parte dos membros da NATO, que têm sido adversos, mudariam de atitude colocando-se ao nosso lado»[27].
O embaixador britânico, Stanley Tomlinson, afirmava não ser «provável que o seu Governo se associasse às críticas exageradas feitas contra Portugal», por cujas dificuldades tinha «uma profunda simpatia». Para o Reino Unido, a questão colonial portuguesa era «delicada», uma vez que «a apreciação britânica da natureza e do poder das forças em África divergia da apreciação feita por Portugal». O que estava em causa não era o apoio a um aliado, mas sim o apoio a uma política diferente da de um aliado. Quando Franco Nogueira anunciou as reformas ultramarinas, em Setembro de 1961, o embaixador britânico afirmou que estas «seriam insuficientes para pôr termo ao estado actual de agitação se não fossem seguidas de outras com objectivo político». Mais uma vez se comprova a maneira subtil de como os britânicos defendiam uma maior autonomia política para as colónias sem o afirmarem abertamente. Esta posição ambígua do Reino Unido iria pautar toda a actuação diplomática ao longo da década de 1960[28].
É um propósito egoísta e calculista que está na base do apoio francês a Portugal: De Gaulle queria autonomizar o poder do seu país em oposição à supremacia exercida pelos Estados Unidos no quadro da aliança e para tal usou Portugal como referência em África e possível ponto de apoio estratégico na Europa. O apoio diplomático francês na NATO foi visível durante toda a década de 1960. Esta união política entre De Gaulle e Salazar, ambos defensores de estratégias e objectivos muito próprios, prosseguiu pari passu durante os esforços diplomáticos portugueses para a defesa dos seus interesses em África. Após o deflagrar dos conflitos em Angola, quando Portugal reclamava nas reuniões do Conselho solidariedade para com um aliado que estava a ser atacado no seu território, a França expressou-lhe todo o seu apoio. Às críticas dos aliados de que Portugal praticava um regime de opressão nas colónias, o representante francês na NATO dizia que «era absurdo pretender» tal coisa. Portugal praticava sim um regime de «integração multirracial». O embaixador francês relembra ao Conselho que a França apoiara na ONU a argumentação portuguesa, pois acreditava que, «nos termos actuais da Carta, não se podia obrigar Portugal a prestar informações sobre as suas províncias ultramarinas»[29]. Em síntese, estes dois aliados convergiram na opinião de que algo tinha de ser feito para se alterar o quadro político e defensivo da organização numa fase importante da Guerra Fria. França e Portugal estiveram sempre lado a lado nas reuniões do Conselho da NATO, reflectindo a aliança desenvolvida desde o final dos anos de 1950. Até à queda de Salazar, a França foi indubitavelmente o grande apoio externo das campanhas portuguesas em África[30].
Um outro apoio importante à política colonial do Estado Novo na década de 1960, mas que não se manifestou abertamente na NATO, foi a República Federal da Alemanha (RFA). Este aliado nunca mostrou um apoio militante à política externa de Portugal nos conselhos da NATO, ao contrário da França. A actuação alemã pautava-se mesmo pela neutralidade quando em causa estavam as críticas à política colonial de Salazar. Face às invectivas dos parceiros no Conselho, os representantes alemães fizeram sempre de fiel da balança, uma vez que tinham a consciência de que Portugal era um aliado demasiado valioso para se enxovalhar diplomaticamente. O representante alemão, Von Plenke, argumentava numa reunião do Conselho que as divergências existentes entre os parceiros atlânticos não se deviam mostrar publicamente para não beneficiar os adversários. Declarava mesmo que o seu país «nada faria para criticar publicamente Portugal», atitude que se prolongaria por toda a década de 1960[31].
Grosso modo, estas eram as posições mais vincadas entre os aliados. Para Portugal, a falta de solidariedade dos aliados traduzia-se na prática num isolamento no seio da NATO. Esta ideia é confirmada por Salazar quando lhe chega às mãos um relatório, classificado de muito secreto, dos serviços portugueses de informação versando a política ultramarina portuguesa e a NATO. Aí ficamos a saber que os «Estados Unidos já informaram vários países da NATO acerca da proposta da Noruega no sentido de ser revista a permanência de Portugal como membro daquela organização». Esta informação, sublinhada a lápis azul por Salazar, indica o quão distante Portugal se encontrava das posições de alguns parceiros atlânticos. Também o Reino Unido, a Dinamarca e a Holanda tinham sido informados pelos Estados Unidos da intenção norueguesa de afastar Portugal da NATO, enquanto que a Turquia manifestava aos próprios Estados Unidos o pesar pelo descrédito de o Pacto «se continuar a identificar com países profundamente "colonialistas"», acentuando que é «favorável a uma revisão dos Estatutos da organização se houver interesse em que continue como membro»[32].
A ADMINISTRAÇÃO JOHNSON E O SUAVIZAR DE POSIÇÕES
O abrandar da pressão americana sobre a política colonial de Salazar acontece durante a Administração Johnson. Uma das suas causas foi o maior envolvimento militar e político dos Estados Unidos no Vietname. Portugal viu nesse facto uma excelente oportunidade para fazer vingar o seu argumento de que era preciso combater o comunismo internacional em toda a extensão do globo. Durante os quatro anos da Administração de Lyndon Johnson (1964-1968) – não incluindo aqui o período subsequente à morte de Kennedy, em Novembro de 1963 – não se registaram grandes diligências diplomáticas, se compararmos com aquelas que se registaram durante a Administração Kennedy, para inflectir o rumo da política externa portuguesa no que toca a África. A única tentativa digna desse nome foi o Plano Anderson, apresentado em 1965, pelo embaixador americano em Lisboa, George Anderson, a Salazar[33].
Os americanos logo depreendem que, «num futuro imediato, nenhuma probabilidade de mudança» existia «na atitude e determinação do Governo português» relativamente às colónias africanas. Perante este cenário, o embaixador Anderson recomendava que os Estados Unidos não forçassem a imposição e optassem por ser «tão liberais quanto possível na autorização de licenças de exportação para equipamento militar destinado a Portugal, à excepção de armas letais e aviões de guerra»[34]. Esta posição do embaixador americano foi sendo moldada e incrementada pelas visitas oferecidas pelo Estado português às colónias africanas, tornando-se este diplomata a posteriori um defensor da política colonial de Salazar. O historiador americano David Dickson concretiza: «a entrega de armamento continuava a aumentar e a política da Administração [Johnson] começou a girar em torno da aceitação da persistente influência política dos portugueses»[35].
Johnson não perdeu então muito tempo com a questão colonial do Estado Novo. Em Julho de 1964, a Embaixada em Lisboa dava o mote: «parece haver pouco a ganhar e algo a perder em pressionar muito insistentemente com uma linha de análise que os portugueses não estão preparados para acreditar ou aceitar».[36] Recorde-se que os Acordos dos Açores tinham sido suspensos por Salazar no final de 1962 até que a política norte-americana fosse mais favorável a Portugal. Constatando que o regime português era impermeável à argumentação a favor da descolonização, a Administração Johnson preferiu não desgastar mais o seu capital político junto de Salazar, numa altura em que os Estados Unidos procuravam sensibilizar os aliados da NATO para o problema do Vietname.
Esse esforço diplomático estendeu-se ao Conselho do Atlântico. A argumentação diplomática para reclamar apoio na NATO era quase uma cópia dos argumentos utilizados pelos portugueses no início das insurreições em Angola, em 1961. Veja-se o caso na cimeira da NATO, em Londres, em Maio de 1965, quando Dean Rusk criticou «com aspereza a falta de solidariedade global dos membros da Aliança que enfraquece esta perante a ameaça global aos membros da Aliança»[37]. Ou seja, os americanos utilizavam o argumento da solidariedade dos aliados para reclamar apoio numa altura em que, segundo eles, defendiam os interesses do mundo livre no Sudeste Asiático. A Aliança ouvia pela segunda vez e num espaço de quatro anos a mesma argumentação. Portugal sentia que os norte-americanos afinavam pelo mesmo diapasão e isso não deixou de ser reclamado como uma vitória da diplomacia salazarista. Em Portugal, transmitia-se oficialmente a ideia de que os americanos, «tão rígidos na interpretação da letra do Pacto», procuravam o apoio dos aliados na NATO «para as dificuldades com que se deparavam no Vietname», ainda que tal apoio não se concretizasse. Criticava-se mesmo a atitude dos Estados Unidos que, agora, por necessitarem de apoio para a prossecução da sua política no Vietname, utilizavam o «critério da solidariedade global e universal como único meio para fazer frente com sucesso a uma ofensiva global e universal»[38].
Em meados de 1966, a hostilidade americana face à política colonial portuguesa desaparecera por completo. Uma das explicações para tal comportamento pode ser corroborada pelo relatório produzido nesse ano pelo segundo-secretário da Embaixada em Lisboa, Everett Briggs. Neste relatório, a recomendação principal prendia-se com o abandono de qualquer iniciativa em relação a Portugal e às suas colónias – os Estados Unidos deviam optar pela aproximação pragmática em detrimento da aproximação ideológica no que tocava às questões africanas. Os últimos anos das relações luso-americanas tinham sido manchados pelo confronto ideológico de duas posições antagónicas com prejuízo para os Estados Unidos, já que o Acordo das Lajes não fora renovado. Segundo Briggs, «a insistência na autodeterminação como solução prática para a África portuguesa era inútil e irrealista». A solução passava pelo reconhecimento público das mudanças introduzidas pelos portugueses em África, logo após as insurreições nacionalistas. Isso seria certamente valorizado pelo Governo português e a Administração americana readquiriria o capital político necessário para a renovação dos Acordos dos Açores. A recomendação de Briggs inspirava-se nos resultados das tentativas pretéritas para inflectir o rumo colonial de Salazar, desde as restrições à venda de armamento militar, passando pela posição assumida pelos Estados Unidos nas Nações Unidas, que a nada conduziram. Em última análise, o que os Estados Unidos deviam fazer era assegurar que Portugal preparava as colónias para um futuro melhor, quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista social, sem se preocuparem «excessivamente com o desenvolvimento político dessas áreas no presente»[39].
A EXTENSÃO DO TRATADO AO ATLÂNTICO SUL
A extensão geográfica do Pacto ao Atlântico Sul foi sempre invocada por Portugal desde 1949. Durante as negociações para a adesão, Salazar procurou integrar na área de defesa o Atlântico Sul, tendo em vista designadamente os portos de Angola e o arquipélago de Cabo Verde e consequente defesa das possessões europeias em África[40]. Mas a proposta portuguesa para a inclusão das colónias africanas na zona de aplicação do tratado foi recusada durante as negociações. Os aliados europeus e norte-americanos não estavam dispostos a patrocinar essa defesa do império colonial português[41].
O problema dos limites geográficos do Pacto não foi exclusivo dos portugueses. Também a França e a Bélgica se fizeram ouvir na NATO. No caso da Bélgica, a crise no Congo levou Bruxelas a utilizar a retórica dos «interesses comuns de segurança consagrados no Pacto na esperança de que os outros aliados, incluindo o líder da Aliança, fosse solidário e apoiante [no restabelecimento da ordem numa zona fora do tratado]». Tal como invocou a França durante a crise do Suez, em 1956[42].
O que importa salientar aqui é a insistência com que Portugal utilizou o argumento da extensão geográfica do tratado. Numa altura em que o armamento já tinha sido enviado para África, Vasco da Cunha comunicava aos seus pares que Portugal se vira obrigado «por motivos imperiosos de ordem nacional a reduzir consideravelmente os seus compromissos NATO». Esta decisão ponderada pelos governantes portugueses tinha por móbil a defesa da «integridade nacional» de Portugal. O embaixador não deixou de referir também que todo o esforço que Portugal estava a fazer fora do tratado «tend[ia] a preservar para o mundo livre as regiões que em tempos de guerra seriam da mais alta importância do ponto de vista estratégico»[43]. A ideia de que o Atlântico Sul devia ser guarnecido militarmente, por forma a não permitir qualquer avanço das forças comunistas pelo flanco sul, era uma ideia continuamente utilizada por Portugal.
Houve um momento na história da Aliança em que este argumento chegou a ser considerado. Na sequência da crise dos mísseis de Cuba, em Outubro de 1962, foi produzido um relatório (Documento MC100) pela Comissão Militar da NATO com uma estimativa de ameaça a longo prazo. Neste documento, apontavam-se «as áreas do oceano Atlântico como uma linha de comunicações vital para os membros da Aliança» e alertava-se para o perigo de os soviéticos conseguirem uma supremacia em áreas que naquele momento estavam nas mãos de aliados[44]. Era clara a referência à importância das bases portuguesas no Atlântico Sul em caso de guerra. Depois da crise de Cuba, os altos comandos da NATO ponderavam todas as hipóteses e Portugal aproveitou este facto para mais uma vez reivindicar o valor estratégico das suas possessões em África. Por esta altura, o tom das críticas dos aliados revelava-se cada vez mais fugaz e intermitente. Já não havia a pressão diplomática que houvera logo após a irrupção nacionalista em Angola.
Em 1964, Portugal expunha mais uma vez as suas reflexões estratégicas no que diz respeito ao Atlântico Sul, relembrando que nunca impôs limites geográficos à acção da NATO e que era em defesa dos valores ocidentais, os mesmos que os Estados Unidos reclamavam na guerra do Vietname, que os portugueses combatiam em África. Reclamava-se, então, uma alteração dos estatutos da Aliança que se «deveriam inspirar nos valores» ocidentais, cuja crise de mentalidade no Ocidente não lhes permitia ver o perigo evidente, pois «havia falta de coragem para assumir a defesa desses valores»[45]. Esta tese foi debatida ad nauseam entre os aliados. Portugal concluía que «a Aliança, tal como existia, tinha uma utilidade muito restrita», utilidade que podia vir a ser irrisória «se o comunismo conseguisse levar avante a vasta manobra de flanqueamento […] através da Ásia e da África»[46]. Este acenar do perigo comunista, aliado à conjuntura do momento, começou a ganhar alguma aceitação e permitiu mitigar os ataques à política colonial de Salazar dentro da organização.
A INSTALAÇÃO DO IBERLANT EM 1967
A instalação do IBERLANT (Iberian Atlantic Command / Comando Ibérico do Atlântico), em Lisboa, em Fevereiro de 1967, constituiu talvez o maior endosso político da Aliança ao regime de Salazar após o início das guerras de África. Um ano antes, Salazar tomara conhecimento das duras críticas de De Gaulle ao comando militar da Aliança e à forma como aquela estava a lidar com a ameaça nuclear soviética. No relatório entregue ao ditador, duas hipóteses são aventadas para as objecções francesas à NATO: primeira, as ameaças que o mundo enfrentava, em especial a Europa, e que estiveram na génese do Pacto, em 1949, eram de outra natureza; e segunda, os aliados deviam manter as suas obrigações militares do Pacto face à ameaça comum, mas «não são necessárias nem desejáveis a existência de uma força integrada e uma estrutura de comando»[47].
O endurecimento militar norte-americano no Vietname viera confirmar as fragilidades da Aliança num momento crítico e De Gaulle aproveitou essa janela de oportunidade para reclamar um maior protagonismo na Europa para a França. O general queria, entre outras coisas, que o seu país tivesse um maior ascendente político nos comandos da Aliança. Um subterfúgio utilizado por De Gaulle foi o argumento da transferência do comando das bases americanas em França para os franceses.
Dada a impossibilidade de ver cumpridos os seus desejos, o chefe de Estado francês informa o Conselho no dia 12 de Março de 1966 que a França se retirava da estrutura militar da NATO, embora se mantivesse como membro da aliança política. «Estremece[u] o mundo ocidental»[48], nas palavras de Franco Nogueira. À primeira vista, e fazendo fé no comentário do ministro português, Portugal vê na decisão francesa uma consequência terrível e inevitável da evolução política da Aliança ao longo da década de 1960. Em Junho do mesmo ano, num encontro realizado em Bruxelas, os catorze aliados voltavam a debater o problema da França e fica decidido a transferência da sede da NATO para a Bélgica. Para os britânicos e americanos não fazia sentido a França integrar o quadro político da Aliança sem estar integrado no sistema de defesa militar. A esta observação contrapuseram-se Portugal, Canadá, Itália e os países escandinavos. Franco Nogueira confrontou mesmo os restantes aliados com a actual crise da Aliança, dizendo que esta era «uma consequência natural da crise política» existente na NATO e que «se traduzia na ausência de solidariedade revelada entre os aliados em quase todos os problemas» fora do âmbito do tratado[49].
Uma consequência directa para benefício português da retirada da França da estrutura militar da NATO foi a instalação do IBERLANT, em Lisboa. Quando, em 1958, a NATO decidiu criar um novo comando para o Atlântico e mar Mediterrâneo, a França e o Reino Unido disputaram entre si a sede e a chefia deste comando naval. Como não se chegou a um acordo, a criação do IBERLANT ficou adiada e passados oito anos a solução de compromisso passou pela entrega do novo comando a um almirante americano, Edwin S. Miller. Era mais uma ferroada da Aliança na ambição de De Gaulle. Os franceses tomaram esta decisão como uma afronta ao prestígio militar das suas forças. A saída da França da estrutura militar da NATO consumou-se com a retirada das forças militares francesas da RFA, a 1 de Julho de 1966, dando De Gaulle um prazo até 1 de Abril de 1967 para as forças americanas e canadianas se retirarem do território francês.
O comando do IBERLANT foi colocado em Lisboa[50] devido à sua posição geográfica e por via de considerações políticas relativas às tensões no Norte de África e mar Mediterrâneo. Mesmo aqueles aliados que sempre criticaram Portugal – os nórdicos, por exemplo –, não se manifestaram contra esta decisão da Aliança. Nada nos é transmitido dessas embaixadas, o que nos leva a supor que esses países distinguiram os interesses gerais dos interesses particulares. O que estava em causa na instalação do novo comando em Lisboa não era uma cedência particular a um aliado, que desde o início da década se encontrava marginalizado no seio da Aliança, mas uma estratégia funcional da própria Aliança. Em todo o caso, é justo dizer que o IBERLANT funcionou como um paliativo para as críticas mais ferozes dos adversários de Portugal.
CONCLUSÕES
Portugal beneficiou a todos os níveis do estatuto de parceiro atlântico. A maior vantagem foi a utilização de armamento afecto às operações militares da NATO nas repressões das revoltas nacionalistas, ocorridas no início da década de 1960. Salazar confundiu as contas dos aliados enviando para África armamento destinado aos planos defensivos da Aliança, bem como equipamento considerado «obsoleto». Da parte dos aliados, poucos se mostraram empenhados em escrutinar de perto essa situação. Sem essa tolerância, o País teria sentido muito mais dificuldades em prosseguir com a guerra no ultramar.
Para além do contínuo fornecimento de armamento NATO, a política colonial de Salazar conseguiu aguentar-se em África sobretudo graças aos apoios bilaterais de países aliados, cuja plataforma de entendimento foi o fórum da Aliança. Corroborando as palavras de António Costa Pinto, «a condição de membro da Aliança Atlântica pode ter sido irrelevante e incómoda para os restantes parceiros, mas foi um poderoso instrumento de estabilidade da Ditadura portuguesa, oferecendo-lhe um escudo protector na sua derradeira aventura colonial»[51].
As oportunidades de contacto e consulta oferecidas pela NATO permitiram a Portugal fortalecer as relações bilaterais entre aqueles aliados que partilhavam o seu ponto de vista acerca do ultramar e quiseram aproveitar esse apoio para interesse próprio, como foi o caso da França do general De Gaulle. Contrariamente à Administração Kennedy, os parceiros atlânticos nunca tentaram influenciar o rumo da política colonial do Estado Novo através da Aliança. Com Johnson no poder, essa intenção foi-se esvaindo ao longo da década e as últimas diligências visando uma inflexão da política ultramarina de Lisboa revestiram-se de um carácter mais discreto e bilateral.
Um aspecto que nunca chegou a ser equacionado por Salazar ao longo da década de 1960 foi a possível saída de Portugal da Aliança. Havia, no entanto, a convicção de que a organização devia cumprir o que estava consignado – defender o Ocidente da ameaça comunista nem que para isso fosse necessário combater em África. A tentativa de defesa de Portugal em África traduziu-se desde o início do Pacto no desejo de estender o tratado ao Atlântico Sul. Christopher Coker também defende esta ideia: «Longe do desejo da retirada da NATO e dos seus compromissos políticos e militares, Portugal desejava estendê-los.»[52] Como é sabido, Portugal nunca foi capaz de persuadir os seus aliados da bondade dos seus argumentos e a NATO – prudentemente – soube manter-se afastada dos seus conflitos em África.
[1] Este artigo é uma versão resumida da tese de mestrado em História das Relações Internacionais apresentada e defendida no ISCTE a 8 de Janeiro de 2008.
[2] Cf. TEIXEIRA, Nuno Severiano – «Da neutralidade ao alinhamento: Portugal na fundação do Pacto do Atlântico». In Análise Social. Vol. XXVIII, N.º 120, 1993. [ Links ]
[3] TELO, António José (org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica. Lisboa: Edições Cosmos, 1996, p. 89.
[4] Averell Harriman fora nomeado por Kennedy, em Janeiro de 1961, embaixador itinerante (ambassador at large) e era assim o diplomata que tinha a incumbência de preparar o terreno para a aplicação das políticas externas norte-americanas. O encontro com António de Faria deu-se no dia 3 de Março de 1961, aquando da visita do americano à sede do Conselho do Atlântico, em Paris.
[5] Telegrama n.º 39, 4 de Março de 1961, transcrito em TELO, António José (org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica, pp. 279-280.
[6] Telegrama n.º 51, de 14 Março de 1961, transcrito em TELO, António José (org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica,, pp. 283-284.
[7] Aerograma n.º 1653, de 20 Março de 1961, transcrito em TELO, António José (org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica,, pp. 286-287.
[8] In «Relatório dos Três Sábios sobre a Cooperação Não-Militar na NATO», Documento da NATO C-M(56)127(Revisto), de 10 de Janeiro de 1957. Disponível em: http://www.nato.int/archives/committee_of_three/CT.pdf.
[9] Declaração feita pelo Representante Permanente de Portugal na Audiência Privada do Conselho a 20 de Abril de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 110.
[10] Ibidem.
[11] Aerograma n.º 1702, 26 de Abril de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 116.
[12] PRO/FO 371/153445 (documento gentilmente cedido por Pedro Faria).
[13] Tripartite May 4, Entry 3093, Box 1. (Documento gentilmente cedido pelo Prof. Luís Nuno Rodrigues).
[14] «Our relations with the rest of Africa would have suffered a severe setback». Cf. Ibidem.
[15] Aerograma n.º 1718, 18 de Maio de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 3350, maço 63.
[16] Para uma perspectiva global do impacto da independência do Congo Belga, em Junho de 1960, e a posição da diplomacia portuguesa relativamente à mesma, cf. subcapítulo «A independência do Congo Belga (1960) e as suas repercussões na política externa portuguesa». In SANTOS, Pedro – Portugal e a NATO: Diplomacia em Tempo de Guerra (1961-1968). Texto policopiado. Lisboa, 2007, pp. 31-38.
[17] Cf. COKER, Christopher – «The Western Alliance and Africa 1949-81». In Africa Affairs. Vol. 81, N.º 324, Julho de 1982, p. 324.
[18] Declaração de Franco Nogueira, na reunião de Oslo, a 8 de Maio de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1000, maço 76.
[19] Luís Nuno Rodrigues documentou bastante bem o choque entre a Administração Kennedy e Salazar no início da década de 1960. Cf. RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.
[20] Diz Acheson que os Estados Unidos «devem reconhecer que formalizar a posição em votos terá pouca influência na resolução actual dos problemas discutidos, e criará divisões no seio da Aliança que pode limitar a capacidade em resolver esses problemas» («A review of North Atlantic problems for the future, by Dean Acheson, March 1961». JFKL, NSF, caixa 20 (documento gentilmente cedido pelo Prof. Luís Nuno Rodrigues).
[21] Ibidem.
[22] «Presidential task force on Portuguese territories in Africa», 12 de Julho de 1961. NA. SDCF, 1960-1963, caixa 1816 (documento gentilmente cedido pelo Prof. Luís Nuno Rodrigues).
[23] Ibidem.
[24] Cf. «Presidential task force on Portuguese territories in Africa», pp. 82, 12 de Julho 1962. Ibidem.
[25] Ofício PA/121, de 13 de Junho de 1961, da Embaixada de Portugal em Oslo. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 110.
[26] Ofício n.º 70, de 15 de Junho 1961, da Embaixada de Portugal em Copenhaga. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 110.
[27] Ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros enviado ao suplente Magalhães Cruz, levando ao conhecimento da delegação o conteúdo da conversa entre Spaak e o embaixador português em Bruxelas. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 110.
[28] A posição britânica na década de 1960 face à política colonial do Estado Novo pode ser consultada em OLIVEIRA, Pedro Aires – Os Despojos da Aliança, A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa, 1945-1975. Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2007, pp. 217-352.
[29] Aerograma Ostensivo n.º 2015, 16 de Novembro de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 111.
[30] Para uma melhor compreensão das relações luso-francesas durante a década de 1960, cf. MARCOS, Daniel – Salazar e De Gaulle: A França e a Questão Colonial Portuguesa (1958-1968). Lisboa: Colecção Biblioteca Diplomática do MNE – Série D, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2007.
[31] O apoio germânico à política colonial de Salazar durante a década de 1960 encontra-se bem fundamentado no trabalho de FONSECA, Ana Mónica – A Força das Armas: O Apoio da República Federal da Alemanha ao Estado Novo (1958-1968). Lisboa: Colecção Biblioteca Diplomática do MNE – Série D, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2007, p. 114.
[32] Informação n.º 1.605/61 – GU, Muito Secreto, AOS/CO/NE – 21 – 3, pasta 1, fl. 1.
[33] Luís Nuno Rodrigues explana os contornos do «Plano Anderson» no seu trabalho. Cf. RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963, pp. 309-310.
[34] RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963, p. 310.
[35] DICKSON, David A. – «US foreign policy towards Southern and Central Africa: the Kennedy and Johnson years». In Presidential Studies Quarterly. Vol. XXIII, N.º 2, Primavera de 1993, p. 308.
[36] Relatório de Frank Devine citado em RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963, pp. 307-309.
[37] NOGUEIRA, Franco – Salazar. Vol. VI. O Último Combate (1965-1970). Porto: Livraria Civilização, 1985, p. 42.
[38] Estas críticas eram oficialmente veiculadas pelo Governo de Salazar. In Separata do Boletim de Informações n.º 25, do Estado-Maior do Exército, Fevereiro de 1968. AHD – MNE, Embaixada em Washington, processo 15,40, maço 373.
[39] RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963, pp. 311-312.
[40] «Choosing to rule its colonies on the basis of coercion, Lisbon tried to win support for its contention that NATO´s southern flank could well be turned if the Soviet Union were ever to gain access to the vast strategic area stretching from the Azores to Cape Verde with its airfield on Sal and from Guinea to Angola with the natural harbours along its 1800 km coastline.» In COKER, Christopher – «The Western Alliance and Africa 1949-81». In Africa Affairs. Vol. 81, N.º 324, Jul. De 1982, p. 324.
[41] Cf. PINTO, António Costa – O Fim do Império. A Cena Internacional, a Guerra Colonial e a Descolonização, 1961-1975, Lisboa: Livros Horizonte, 2001, pp. 14-15.
[42] STUART, Douglas T., e TOW, William – The Limits of Alliance. NATO Out-of-Area Problems Since 1949. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990, p. 4. Estes autores também analisam o caso português em África (cf.pp. 305-311).
[43] Aerograma n.º 2024, anexo A, enviado por Vasco da Cunha, 28 de Novembro de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 3321, maço 63.
[44] O documento mencionado está inserto no relatório apresentado na reunião do Secretariado de Defesa, a 8 de Maio de 1963. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1300, maço 93.
[45] Memorial da reunião em Otava, 12 a 19 de Setembro de 1964. AOS/CO/NE – 21 – 3, pasta 3, fls. 3-18.
[46] MIRANDA, Bonifácio de – «O futuro da NATO em face da "descolonização"». Separata da revista Ultramar. Lisboa, N.º 17, Vol. V (N.º1), 1964, p. 10.
[47] AOS/CO/NE – 17 – 2, pasta 27.
[48] NOGUEIRA, Franco – Salazar. Vol. VI. O Último Combate (1965-1970), p. 129.
[49] Ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, PA/3/66, 18 de Julho de 1966. AHD – MNE, Arquivo Embaixada em Washington, processo 15,40, maço 373.
[50] O comando ficou instalado em São Pedro de Penaferrim, no concelho de Sintra, e foi inaugurado em Fevereiro de 1967.
[51] PINTO, António Costa – O Fim do Império. A Cena Internacional, a Guerra Colonial e a Descolonização, 1961-1975, p. 27.
[52] COKER, Christopher – NATO, the Warsaw Pact and Africa. Londres: MacMillan, 1985, p. 53.
* Licenciado em Filosofia pela FCSH UNL e mestre em História das Relações Internacionais, pelo iscte, com a tese «Portugal e a NATO: Diplomacia em Tempo de Guerra (1961-1968)».