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Revista :Estúdio
versión impresa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.8 no.20 Lisboa dic. 2017
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Interioridades: Teresa Milheiro
Interiorities: Teresa Milheiro
Isabel Ribeiro de Albuquerque*
*Portugal, artista visual e joalheira. Licenciatura em Artes Plásticas / Pintura, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBAUL). Mestrado em Teorias de Arte, FBAUL.
AFILIAÇÃO: Universidade de lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.
RESUMO:
Este artigo é uma viagem sobre a obra de Teresa Milheiro a qual se confunde com a sua vida e a sua interioridade. Partindo do seu trabalho de escultura/joalharia, que Teresa ancorou na imagética de Gi Vicente, vamos fazendo pontes com as suas diversas fases como as "joias de autodefeses","joias de tortura", ou as biojoias e ainda a fase de crítica social onde questiona a arte, a moda, a política e a ciência, criando o conceito de "Auschwitz psicológico". Para além da temática é importante uma referência à perícia técnica e artística do seu trabalho.
Palavras-chave: Auschewitz psicológico / joia de autodefesa / joias de tortura / interioridade / imagética.
ABSTRACT:
This article presents a trip on the work of Teresa Milheiro. which is interwined with her life and her interiority. Starting from her work of sculpture / jewelery, which Teresa anchored in the imagery of Gil Vicente, we are making bridges with its various phases, such as " selfdefense jewels", "torture jewels" or "biojewels" and also social criticism where she questions art, fashion, politics and science, creating the concept of "psychological Auschwitz". In addition to the theme, a reference to the technical and artistic expertise of her work is important.
Keywords: psychological Auschwitz / self-defense jewels / torture jewels / interiority / imagery.
Introdução
O objetivo deste texto é dar a conhecer o trabalho de joalharia de Teresa Milheiro. Para tal pretendemos partir da obra Passagem para Um Outro Lado, um conjunto de marionetas, que consideramos uma obra fulcral no seu trabalho e ir estabelecendo pontes com as diversas fases da sua escultura/ joalharia.
Não podemos dissociar a atividade artística da sua própria vida porque as suas preocupações sociais e políticas e os seus sentimentos revelam-se na sua obra como uma forma de denúncia literal por vezes, subtil por outras, ou ainda através da estetização da dor.
Segundo Ruy Otero há uma forma lisboeta de se ser punk e a Teresa será um ícone desse estilo devido à maneira como critica a subserviência ao dinheiro e ao poder e ao seu sentido ético (Otero, 2016: 50). A sua obra está cheia de alegorias e metáforas do ser humano que Teresa transfigura em marionetas ou insetos.
Passagem para um outro lado
Passagem Para Um Outro Lado é, para nós, uma viagem sobre a interioridade humana com tudo aquilo que a comporta. Sabemos que tanto o encantamento como o sofrimento humano têm sido um manancial inesgotável de inspiração para todos os artistas de todas as artes ao longo dos tempos. Entendeu Teresa Milheiro ancorá-la nalguma imagética de Gil Vicente. Se pegarmos na trilogia das Barcas, encontramos uma prefiguração de julgamento que leva a artista a transformar cada personagem num animal: um peixe do fundo do mar, ou um animal voador conforme o que fez em vida e quando morre passa para o Inferno, o Purgatório ou para o Céu.
Paralelamente pode afirmar-se que estas peças também remetem para o mundo de Franz Kafka, da Metamorfose e para o pensamento Proto Indo-Europeu. Também aí se encontra a crença que uma pessoa quando morre pode encarnar depois num animal. Por isso devemos respeitar todos os animais pois não sabemos o que foram anteriormente. Poder-se-á retroceder ainda mais no tempo e olhar para a arte antiga do Próximo Oriente. Aí encontramos semelhanças principalmente nos finos trabalhos em metal feitos com grande perícia técnica e formal na Suméria (Figura 1).
Contudo este tipo de escultura, e podemos considerar a joalharia uma escultura de pequena dimensão, é um caso inédito na joalharia contemporânea. Quer sejam objetos de ourivesaria utilitários quer sejam esculturas maciças sumérias, podemos compará-las às esculturas de Teresa no plano da qualidade e perícia, sendo estas mais difíceis de executar porque são ocas e com muitas e complexas ligações e articulações, como é patente nas marionetes (Figura 2).
Estas peças estiveram expostas em 2016, no Museu do Dinheiro e tão importante quanto os trabalhos expostos foi a conceção e construção do espaço que a conteve — o espaço cénico. Este foi um outro trabalho artístico adjacente e complexo do qual a artista não abdicou nem deixou nas mãos de um comissário. Foi concebido também como ato de criação como se o momento de transformação que as peças representam tivesse sido congelado no espaço/tempo. À construção do espaço de apresentação das peças juntou-se também a parte da iluminação, que parece ter sido trabalhada como no cinema, criando um ambiente de silêncio que nos convidava à reflexão, o silêncio expressivo à maneira de Fernando Pessoa:
Todaarte é uma forma de literatura, porque todaarte é dizer qualquer coisa. Háduas formas de dizer — falar e estar calado. (…) Há que procurar em toda a arte que não é literatura a frase falante que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama (Pessoa, 1980: 279).
Frases silenciosas que Teresa nos sussurra através daquelas peças de joalharia sui generis porque não são para usar em cima do corpo, contudo precisam dum corpo para adquirirem uma vida própria.
Tanto o Papa que representa os valores decrépitos da igreja, o clero devasso e descuidado do cumprimento dos seus deveres religiosos, como o Imperador querepresenta a ganância se transformam em Peixes Abissais, contudo o do Papa tem asas porque é um ser intocável. Por outro lado o Caga-milhões ou agiota é um empresário vazio de valores humanos e portanto transforma-se em Peixe-ouriço. Mas o Parvo ou o Bobo que simboliza o povo em geral torna-se uma Melga comum, ideia que nos remete para o inseto gigante em que Gregor Samsa se transforma, na Metamorfose de Kafka.
Existem ainda três personagens Vicentinos que não se transformam em nada: o Diabo-Anjo, símbolo da luta entre o bem e o mal, o Bebé e o Palestiniano. Prefiguração dos nossos dramas insolúveis. Peixes e pássaros com bicos ou espinhos, insetos com pernas que nos lembram agulhas são uma abordagem já habitual no trabalho da artista, onde as agulhas de seringa são uma presença constante. Agulhas que têm um carater ambivalente porque tanto inoculam o mal como o curam. E toda esta ambivalência entre sofrimento e busca da felicidade atravessa toda a obra de Teresa Milheiro. Noutro plano podemos apreciar ainda o lado de reflexão de crítica social pegando na personagem da Alcoviteira, que denuncia o tráfico de influências e de pessoas e o mundo de intriga e da moda que se transforma num polvo, que é por excelência o símbolo da máfia que estende os seus tentáculos pela sociedade. Como noutros trabalhos da artista encontramos sempre as preocupações de carácter sociopolítico. Formas de crítica a "um novo colonialismo", ao politicamente correto, como o seu trabalho The Big Sucker (Figura 3).
Os valores criticados, e, atrás referidos, sobre a Alcoviteira já eram objeto de preocupação da artista na fase em que explora duma forma acutilante a obsessão com a imagem física, focando a crescente predileção generalizada pela juventude e pela beleza. Procura destacar duma maneira original, a relação entre a arte, a moda, a política e a ciência. A sua joalharia encerra sempre uma reflexão crítica à sociedade. Podem ser exemplos a mania doentia de manter a juventude através de injeções de botox ou de cirurgias, o que foi motivo para a sua peça Be Botox Be Fucking Beautiful. Esta peça é um kit de botox que se pendura ao pescoço para que se possa combater as rugas em qualquer lugar e a qualquer hora. Tão pouco a artista teve qualquer intenção de dissimular o aspeto frio e duro do colar.
Num mundo onde se dá tanta importância à perfeição do corpo, este colar explicitamente frio e pesado, quase ameaçador lembrando um instrumento de tortura em miniatura, torna-se um objeto perturbador para quem o use, contrastando com a mensagem inscrita nele.
Noutra peça, Milheiro parece ironizar sobre o uso quase doentio dos aparelhos para corrigir os dentes, combinando materiais pouco ortodoxos na joalharia atual, mas cheios de significado, que apesar de terem uma forma agressiva são de enorme beleza.
A artista acha que presentemente se vive num "Auschwitz psicológico" porque as pessoas sujeitam-se a tudo duma forma espontânea, em nome dum ideal de perfeição, para atingir uma beleza estereotipada, imposta pela moda, pela sociedade e pelo status. Segundo ela é como se vivêssemos num campo de concentração psicológico que leva as pessoas a perder a personalidade e ficarem uniformizadas.
Na sequência da Alcoviteira, em 2009, a artista desenvolve uma série de peças como denúncia do tráfico de órgãos, fazendo corações, rins, pulmões, em resina que depois eram embalados assepticamente (Figura 4).
Enquanto algumas peças se podem usar no corpo como objetos de adorno tradicionais, há outras que foram concebidas para usar presas na boca caindo ao longo do corpo. É o caso do Kit de Sobrevivência, (1995) que consiste numa combinação de prata, cateteres e peça em borracha para inserir na boca. Este objeto servirá para transformar a urina em água potável, pois a meio dos tubos terá um filtro para fazer essa conversão, o qual deverá ser mudado com frequência. É uma peça de joalharia de intervenção para alertar as pessoas para o estado do Planeta e para a escassez do bem precioso que é a água (Figura 5).
A peça The Killing Jewel, é uma analogia entre a obsessão com a droga, o bem mais precioso para um consumidor, e o ouro como um valor obsessivo para o comum das pessoas. É como se esta droga permitisse à pessoa viver uma realidade dourada (Figura 6).
No mesmo sentido, a peça The anti-existence device pretende simbolizar uma existência não real e a passagem para outra realidade, uma realidade virtual desejavelmente mais feliz. É um objeto para usar na parte detrás do pescoço que contem várias substâncias que obstruem o contacto com a realidade (Figura 7):
— Botox para a eterna juventude,
— Alterador da imagem,
— Anestesia para a dor física,
— Fluido para criar a ausência de dor emocional.
É com este lado agressivo que Teresa desenvolve o seu trabalho nos anos 90, criando "joias de tortura" que são uma espécie de escultura que se veste como por exemplo o Colete e os Capacetes de tortura. Nesta altura, a necessidade de se defender na noite lisboeta do Bairro Alto que frequentava regularmente nos anos 90, leva-a a construir "joias de autodefesa". Criou uma série de mãos articuladas e braceletes com pontas aguçadas (Figura 8) que rivalizam com as luvas-faca criadas para o filme de terror (1984), A Nightmare on Elm Street (Figura 9).
São desta altura também os insetos — figuras por vezes ambíguas pelo contraste do seu ar doce com as pontas e os bicos aguçados idênticos aos das joias de autodefesa (Figura 10).
Os insetos que constrói desde o início, o uso de dentes de tubarão, ossos e insetos, espinhas de peixe, lagartixas e rãs dentro de resina, aos quais Teresa classifica como biojoias, são parábolas da sua interioridade que irrompe como uma corrente telúrica, quer sejam objetos para usar como adorno ou para contemplar.
Conclusão
A joalharia contemporânea tem enveredado por caminhos muito diversos e por vezes radicais e há muito deixou de ser apenas um adorno para se tornar num veículo de expressão comunicacional artística e pelo qual é possível passar uma série de pensamentos, sentimentos, emoções que povoam a interioridade humana.
Há um pathos de morte e ressurreição e, ao mesmo tempo, um sentido de ironia em todo o trabalho de Teresa Milheiro. A agressividade, o sofrimento, a sobrevivência e até a dor infligida estão sempre presentes no seu trabalho.
De uma imagética variada e profunda, avultam evocações de bichos antigos, quase pré-históricos, que também podem simbolizar a fragilidade e, simultaneamente a resistência humana. Pode aderir-se ou rejeitar-se a prefiguração imagética de Teresa Milheiro mas não é possível evitar que nos toque quando ficamos face a face. Para além da multiplicidade das alegorias a que recorre devo salientar aspetos de algumas figuras totalizantes e paradoxais: um inseto de recorte primevo que contrasta com a asa de anjo (Melga), ou um outro bicho que enfiado num braço mimetiza-se como corpo de bicho de seda, encanto das crianças. Como se Teresa Milheiro quisesse ou pudesse abarcar e cristalizar numa só obra toda a dialética paradoxal da vida.
Uma pequena, mas não menos importante referência à perícia técnica e artística do seu trabalho. Teresa Milheiro parece incorporar todas as técnicas, todas as artesanias, todos os saberes que ao longo dos tempos foram evoluindo e culturalizando os artistas e o mundo das artes. A sua técnica, a sua arte, a capacidade de transfiguração dos materiais levam-nos a roçar o assombro. Uma mulher que incorpora todas as dores e todos os saberes dos tempos.
Referências
Pessoa, Fernando. (1980) Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática. [ Links ]
Otero, Ruy. (2016) Passagem para um outro lado: Teresa Milheiro, catálogo da exposição Impresso pelo Banco de Portugal. ISBN 978-989-678-472-0 [ Links ]
Enviado a 26 de janeiro de 2017 e aprovado a 15 de fevereiro de 2017
Correio eletrónico: lab.d.arte@gmail.com (Isabel Ribeiro de Albuquerque)