Introdução
A síndroma de apneia obstrutiva do sono (SAOS) é uma patologia que se caracteriza por episódios repetidos de obstrução da via aérea superior durante o sono, que pode ser parcial (hipopneia) ou total (apneia), provocando frequentemente dessaturação de oxigénio e microdespertares múltiplos, o que leva a um sono não reparador, sonolência diurna excessiva e alterações neuropsiquiátricas, respiratórias e cardiovasculares. Há vários fatores de risco para a SAOS, entre os quais o género masculino, a obesidade, alterações estruturais das vias aéreas superiores, a ingestão abusiva de álcool, o consumo de sedativos, o tabagismo e outros.1
A SAOS apresenta uma elevada prevalência (entre 4 a 6% nos homens e 2 a 4% nas mulheres), e o pico de incidência é entre os 40 e os 50 anos de idade. 2 Em Portugal, a prevalência da SAOS não é conhecida, 3 embora se considere alta dada a elevada prevalência de obesidade na população portuguesa4 - e sabendo que a obesidade é um dos fatores de risco mais significativo para o desenvolvimento de SAOS.1 A SAOS é uma doença subdiagnosticada, uma vez que o seu diagnóstico é baseado num estudo completo do sono (polissonografia), o que tem também dificultado a sua investigação epidemiológica. 5
A importância clínica da SAOS prende-se também com os seus efeitos na morbilidade e mortalidade: o risco de hipertensão arterial três vezes aumentado, assim como o de doença coronária (1,3×) e de acidente vascular cerebral (1,6×).6 Relaciona-se ainda com o desenvolvimento de insulinorresistência e diabetes mellitus. 7 As alterações neuropsicológicas (nomeadamente a sonolência diurna) aumentam o risco de acidentes de viação (8 vezes mais). 8 O custo de não tratar vs tratar uma SAOS é duas a três vezes superior devido sobretudo ao aumento de risco de doenças cardiovasculares e de acidentes de viação. 9
Um outro aspeto que reforça a importância do diagnóstico de SAOS prende-se com a eficácia comprovada da terapêutica com CPAP nasal (continuous positive airway pressure), quer na reversão das alterações neuropsicológicas, com redução da sonolência diurna e consequente redução do risco de acidentes, quer na redução dos eventos cardiovasculares associados à SAOS. 10
Segundo a Direção-Geral da Saúde (DGS), o seguimento dos doentes com SAOS estabilizados sob ventiloterapia deve ser realizado pelos cuidados de saúde primários (CSP). Deverá ocorrer, pelo menos, uma consulta médica presencial anual para monitorização clínica, suportada por relatório de ventiloterapia emitido pela empresa fornecedora de cuidados respiratórios domiciliários (CRD), no qual conste a adesão e a eficácia terapêutica. A monitorização clínica na consulta de seguimento tem como objetivos avaliar a adesão e a manutenção da eficácia terapêutica (objetivadas pelos registos do relatório), avaliar a evolução sintomática (nomeadamente hipersonolência diurna) e pesquisar efeitos secundários do tratamento. 11
Considera-se que existe adesão à ventiloterapia se se verificar uma utilização superior a quatro horas num período superior a 70% das noites. A eficácia terapêutica é considerada quando o índice de apneia-hipopneia residual (IAH) é inferior a 5/h. A hipersonolência diurna deve ser avaliada pela aplicação da Escala de Epworth, que deve motivar referenciação aos cuidados de saúde secundários quando ≥ 10. Os efeitos secundários mais comuns são: fugas de ar, sintomas nasais (e.g., obstrução nasal, epistáxis,...), abrasão ocular, úlceras da pele nas zonas de pressão, claustrofobia e aerofagia. 11
É perceção dos investigadores e dos restantes elementos médicos da Unidade de Saúde Familiar (USF) de que a SAOS e seu seguimento/controlo é um tema pouco reconhecido na medicina geral e familiar. Num outro trabalho de investigação, realizado previamente na USF, foi analisada a codificação dos doentes com SAOS, verificando-se uma não uniformidade na codificação desta doença, o que dificultava a caracterização desta patologia e destes doentes. Este trabalho foi o mote para a realização do estudo aqui descrito, esperando que contribua para um adequado acompanhamento dos doentes com SAOS.
O objetivo do trabalho é melhorar a qualidade do seguimento nos CSP de doentes com SAOS, que tiveram alta da consulta hospitalar, através da realização de avaliação clínica dirigida adequada.
Método
Foi realizado um estudo quasi-experimental, com avaliação pré e pós-intervenção, e avaliação interna e interpares, na Unidade de Saúde Familiar (USF) Buarcos, modelo B, envolvendo seis médicos especialistas de medicina geral e familiar (MGF) e oito médicos internos de formação específica de MGF.
A população em estudo foi obtida através da consulta do processo clínico informatizado (programas SClinico® e RSE®) e do programa Prescrição Eletrónica de Medicamentos (PEM®). Neste estudo a amostra, seletiva de base institucional, é igual à população.
Na 1.ª avaliação foram incluídos os utentes pertencentes à USF com prescrição de ventiloterapia entre 01.07.2016 e 31.12.2016, com diagnóstico de SAOS e alta da consulta hospitalar previamente a 2016. A 1.ª avaliação decorreu em janeiro de 2017 e a recolha de dados foi realizada por um dos investigadores.
Os critérios de processo avaliados (variáveis) foram:
1. Existência de, pelo menos, uma consulta médica presencial no ano civil/anual;
2. Registo anual dos critérios de adesão (%dias de utilização > 4 horas) e eficácia (índice apneia/hipopneia) da ventiloterapia, pela leitura de relatório da empresa de CRD;
3. Registo de aplicação e resultado da Escala de Epworth;
4. Registos de possíveis efeitos secundários (em texto livre).
A avaliação do 1.º critério de processo «Consulta médica presencial anual» foi realizada pela consulta dos processos clínicos dos utentes no programa SClinico®.
Os 2.º, 3.º e 4.º critérios, na 1.ª avaliação, foram avaliados após análise dos SOAPs de todas as consultas dos utentes em 2016.
Após esta primeira avaliação, a equipa da USF reconheceu a necessidade de melhoria do seguimento dos doentes com SAOS sob ventiloterapia.
A equipa de investigação procedeu à intervenção em janeiro de 2017. Em reunião de equipa médica foram divulgados os resultados da 1.ª avaliação e fez-se uma breve intervenção educacional, relembrando a importância de um adequado seguimento dos doentes com SAOS, de acordo com a Orientação n.º 022/2014, da DGS, e recordando os critérios de adesão e eficácia terapêutica, a Escala de Epworth e os efeitos secundários da ventiloterapia. Em equipa discutiram-se possíveis estratégias para melhorar o seguimento: foi decidido utilizar o campo notas do código P06 para registar no SClinico® os critérios de adesão, eficácia e Escala de Epworth. Os efeitos secundários da ventiloterapia seriam registados no SOAP da consulta. A equipa de investigação elaborou um folheto de apoio à consulta com os critérios de análise dos relatórios e a Escala de Epworth (Figura 1). Efetuou-se também o contacto com as empresas fornecedoras de cuidados respiratórios domiciliários para sensibilização ao envio dos relatórios realizados semestralmente.
Entre os membros da equipa da USF definiram-se os responsáveis por implementar e garantir a continuidade de cada medida. Foi decidido também, em equipa, a meta a alcançar, tendo sido acordada uma meta de cumprimento, em um ano, de 90% para o primeiro critério e de 40% para cada um dos restantes critérios.
A 2.ª avaliação decorreu no mês de janeiro de 2018. A população foi obtida de modo semelhante ao descrito anteriormente e pelo mesmo investigador.
Nesta avaliação, a população estudada foram os utentes da USF com prescrição de ventiloterapia entre 01.07.2017 e 31.12.2017, com diagnóstico de SAOS e alta da consulta hospitalar prévia a 2017.
Na 2.ª avaliação, a avaliação do 1.º critério de processo «Consulta médica presencial anual» foi igualmente realizada pela consulta dos processos clínicos dos utentes no programa SClinico®. Porém, os critérios 2 e 3 foram agora avaliados pelo registo no campo notas da codificação P06 e o critério 4 pela análise dos SOAPs das consultas.
As variáveis foram codificadas, registadas e tratadas em suporte informático (Microsoft Excel® e GraphPad®). Através da aplicação do teste exato de Fisher foi feita uma análise comparativa dos resultados obtidos antes e após a intervenção. Considerou-se que a eficácia da intervenção se traduziria num aumento do número de registos dos critérios de adesão e eficácia da ventiloterapia, da aplicação e registo da Escala de Epworth e da avaliação dos efeitos secundários da ventiloterapia.
Os profissionais de saúde da USF deram consentimento verbal para participação no estudo.
Durante todo o processo de recolha de dados foi garantida a confidencialidade dos participantes para elementos externos ao estudo. Os investigadores comprometeram-se a não utilizar os dados para outros fins. O estudo não implicou custos para a USF.
Resultados
Na 1.ª avaliação (pré-intervenção), a população incluía 29 utentes, com idade média de 63,66 (±9,6) anos, sendo 75,9% do género masculino (Tabela 1).
Em nenhum utente tinham sido cumpridos todos os critérios. O primeiro critério de qualidade foi cumprido em todos os utentes (n=29, 100%): todos tiveram, pelo menos, uma consulta médica presencial na USF em 2016. Em 14% (n=4) dos utentes foi avaliado o relatório dos CRD com, no mínimo, um registo anual dos critérios de adesão e eficácia terapêuticas (2.º critério). O terceiro critério de qualidade, o «Registo de aplicação e resultado da escala de Epworth», não foi cumprido em nenhuma consulta. Foram questionados e registados os efeitos secundários em 45% dos utentes (n=13) (Tabela 2).
A 2.ª avaliação incluiu uma população de 43 utentes, com uma idade média de 67,26 (±9,7) anos, sendo 69,8% do género masculino (Tabela 1).
Após a intervenção, na 2.ª avaliação, verificou-se um aumento de 12% no cumprimento de todos os critérios após a intervenção (0%, n=0 vs 12%, n=5; p=0,0773). O cumprimento do primeiro critério de qualidade foi semelhante nas duas avaliações (100% vs 98%, p=1). O registo dos critérios de adesão e eficácia terapêutica apresentou um aumento estatisticamente significativo (14%, n=4 vs 58%, n=25; p=0,0002). A Escala de Epworth foi aplicada e registada em cinco utentes (12%) (vs 0%, p=0,0773) e foram questionados os efeitos secundários a 47% dos utentes (n=20) (Tabela 2).
Discussão
Após a intervenção verificou-se, de forma global, uma melhoria no seguimento dos doentes com SAOS. Em 12% dos utentes foram cumpridos todos os critérios avaliados (vs 0% da primeira avaliação), o que apesar de não ser estatisticamente significativo contrasta com a primeira avaliação, em que nenhum utente estava devidamente monitorizado.
A leitura dos relatórios de ventiloterapia aumentou significativamente (quadriplicou) após a intervenção, tendo sido realizada em quase metade dos utentes avaliados, atingindo-se assim a meta para este objetivo. Para tal contribuiu a maior atenção dos profissionais de saúde para o seguimento destes doentes e o conhecimento sobre a possibilidade de solicitarem o relatório à empresa de CRD. Também algumas destas empresas se disponibilizaram em criar, com a unidade e os médicos, protocolos para envio programado dos relatórios de ventiloterapia.
Relativamente à aplicação da Escala de Epworth registou-se uma melhoria de 12%, não significativa estatisticamente. Ainda que a leitura dos relatórios revele a adesão e a eficácia terapêutica, a sintomatologia do utente deve ser também avaliada e a Escala de Epworth é uma ferramenta de fácil utilização que permite objetivar a sonolência, uniformizando as avaliações interprofissionais.
Quanto aos efeitos secundários, partindo de um valor inicial que englobava 45% da população, verificou-se um aumento de apenas dois pontos percentuais na sua avaliação.
Pela associação temporal, os resultados deveram-se provavelmente à intervenção efetuada, embora não seja possível estabelecer uma associação causal definitiva dada a inexistência de um grupo de controlo não exposto à intervenção.
Para a melhoria verificada na reavaliação foi essencial o reconhecimento do problema por parte dos médicos da USF e o trabalho em equipa. A decisão em equipa de adotar medidas simples e fáceis de executar, mas ainda assim eficazes, resultou numa melhoria do seguimento dos utentes com SAOS sob ventiloterapia. Apesar da melhoria, a meta definida em equipa inicialmente não foi atingida, tratando-se naturalmente de um ciclo de melhoria em constante atualização.
Não foram encontrados estudos semelhantes a este trabalho.
Uma limitação importante do presente estudo é a pequena dimensão da população estudada, sobretudo na primeira avaliação. No início do estudo constatou-se uma grande limitação na existência de diferentes codificações de SAOS. Outra limitação a referir prende-se com a qualidade e não existência de um campo próprio de registo dos dados necessários, uma vez que foram usados campos livres na pesquisa dos resultados.
Este estudo apresenta, como principais pontos fortes, a sensibilização e o empenho de todos os médicos para a correção do problema, a fácil implementação das medidas selecionadas, o envolvimento dos doentes que autonomamente começaram a solicitar os relatórios de CRD e a colaboração das empresas de CRD, tendo algumas demonstrado interesse em criar protocolos de envio de relatórios para a unidade.
As estratégias adotadas são simples e facilmente reproduzíveis em qualquer unidade dos CSP.
Conclusão
Apesar de se ter verificado uma melhoria no cumprimento dos critérios nos doze meses seguintes à intervenção é possível que o seu efeito se vá reduzindo ao longo prazo. Seria importante existir um campo específico nos programas médicos, de simples acesso, para registo destes critérios de seguimento e assim facilitar a consulta dos mesmos em contactos posteriores. Também seria útil a possibilidade de estabelecer protocolos concretos com as empresas de CRD ou a criação de canais de contacto com as mesmas.
A intervenção descrita poderá ser replicada por outras unidades de saúde onde se verifique um incompleto seguimento destes doentes e no estudo e codificação doutras patologias. Para os resultados obtidos contribuiu o empenho e a motivação de toda a equipa e a clareza das medidas a adotar.
Um seguimento adequado destes doentes, com avaliação da eficácia e adesão terapêutica, da sintomatologia e dos efeitos adversos, é essencial para uma eventual correta referenciação aos cuidados de saúde secundários. Este trabalho poderia, no futuro, desenvolver-se no sentido de verificar se os utentes estão a ser devidamente encaminhados aos cuidados de saúde secundários.
Não foram encontrados estudos semelhantes, mas considera-se esta melhoria uma mais-valia para a qualidade dos cuidados prestados. A ventiloterapia é eficaz no tratamento da SAOS e os métodos para avaliação da adesão e eficácia terapêuticas são simples de utilizar, pelo que devem fazer parte das boas práticas nos CSP, garantindo uma correta monitorização destes doentes. Uma vez que se verifica que praticamente todos os utentes têm uma consulta presencial anual há espaço para que estes critérios sejam avaliados e este seguimento otimizado.
O presente estudo pretende dar início a um trabalho contínuo, em permanente evolução, que permita a reflexão sobre os procedimentos a seguir para obtenção de melhores resultados, nesta que é uma patologia com grande impacto na morbimortalidade dos utentes, mas ainda distante dos indicadores de saúde mais utilizados nos CSP.
Contributo dos autores
Conceptualização, MPP, JBC e FC; metodologia, MPP, JBC e FC; validação, MPP, JBC e FC; investigação, MPP; análise formal, MPP e JBC; recursos, MPP; gestão de dados, MPP; redação do draft original, MPP e JBC; revisão, edição e validação do texto final, MPP, JBC e FC; supervisão, MPP, administração do projeto, MPP.