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Revista Crítica de Ciências Sociais

versión On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.133 Coimbra mar. 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.4000/11pr8 

Recensões

Recensão: Ensaios escolhidos, vol. I: colonialismo, resistência, independência

1 Doutorando na Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, gustavofreitas.jor@gmail.com

Margarido, A. . (, 2023. ),, Ensaios escolhidos, vol. I: colonialismo, resistência, independência. (, Henriques, I. C. , Ed.)., Edições 70, ,, 493p. pp.


Esta obra organizada por Isabel Castro Henriques - que tanto colaborou com Alfredo Margarido1 como foi uma referência para ele com a sua produção acerca dos costumes da costa ocidental africana (p. 325) - reúne textos de 1964 a 2008 (publicados por Margarido, falecido em 2010, entre os 35 e os 80 anos). O subtítulo - Colonialismo, Resistência, Independência - é uma tríade que funciona muito bem como tese, antítese e síntese na forma como Margarido problematiza o colonialismo português, a resistência africana, em especial, e a inevitável conquista da independência por parte dos povos subjugados. A referida tríade representa precisamente esta incontornável compilação que, mesmo não trazendo textos inéditos, inscreve-se de modo indispensável entre as obras basilares da crítica pós-colonial portuguesa - não só pelo seu valor histórico, mas especialmente pelo seu peso sociológico.

O livro conta com dois textos introdutórios. Um da sua organizadora, em que apresenta o “provocador cultural” e o “lutador antifascista e anticolonialista” Margarido, partindo de excertos de textos escritos por amigos dele postumamente e que estão compilados em Alfredo Margarido (1928-2010): um pensador livre e crítico, publicado em 2012. Descrito por Henriques como um desarticulador de saberes estabelecidos e alguém que gostava de ser escrutinado, Margarido foi certamente um pensador que fez de si um experimento de sua própria teoria ao tentar desassociar-se da presunção epistemológica europeia. Uma segunda introdução é assinada por Diogo Ramada Curto, um dos diretores da Coleção História e Sociedade, na qual este livro é publicado. Em seu texto, Ramada Curto dedica-se, entre outras coisas, a destacar a deliberada falta de reconhecimento da qual Margarido foi vítima, especialmente em Portugal.

Curiosamente, numa carta remetida ao filho de Mário Domingues (cf. Garcia, 2022) - inquestionável nome da imprensa negra a partir da segunda década do século xx -, o próprio Margarido, fazendo o papel que Henriques e Ramada Curto desempenham em seu favor na obra em análise, afirma que Domingues não tinha o devido reconhecimento por causa do que descreveu como o “mesquinho espaço português”. Talvez tenham sido ambos vítimas desta mesquinhez, mas, assim como Margarido denunciou esquecimentos, houve quem também o fizesse por ele.

Indo aos textos do autor que a obra celebra, é possível perceber um especial interesse pelos territórios africanos que estiveram sob domínio colonial português, o que pode se justificar tanto pelo facto de ele próprio ter vivido em Angola como por ter sido contemporâneo dos últimos momentos do colonialismo português pré-1974, tendo, neste período, convivido com grupos de resistência anticolonial dentro e fora de Lisboa. Por exemplo, o primeiro e mais antigo texto, Negritude e humanismo (p. 3), foi publicado em Lisboa pela Casa dos Estudantes do Império. Descrita por Margarido como “uma ilha independentista em plena capital colonialista” (p. 213), esta casa possibilitou-lhe muitos encontros que foram estratégicos para a sua formação e para a construção da sua crítica às ideologias coloniais.

As produções de Margarido agrupadas numa primeira parte da obra sob o título “Dominação e autonomias”, constituem um importante diálogo com outros questionadores da ideologia colonial, como o filósofo francês Jean-Paul Sartre e o político e poeta martinicano, Aimé Césaire. Enquanto critica o pensamento de Sartre - que, influenciado pelos pensamentos de Kant e Hegel, teima em dissociar o negro da técnica e em aproximá-lo da natureza e da selva -, recorre a Césaire para tentar se desvencilhar das lentes brancas europeias, que impossibilitam o reconhecimento dos valores e dos saberes das sociedades não-brancas, e para questionar o determinismo colonial que põe tantos sujeitos num lugar de inferioridade. Um outro nome recorrente em inúmeros ensaios é o de Gilberto Freyre, sociólogo brasileiro sobre quem recai a responsabilidade pelas formulações ideológicas que fundamentam o luso-tropicalismo. Margarido estabelece com ele uma relação de aproximações e distanciamentos, que passa pelo reconhecimento da revindicação, por parte do brasileiro, de uma ideologia nacional autóctone e de uma postura crítica frente ao salazarismo em textos publicados na imprensa brasileira, até ao momento em que Freyre passou a viajar a convite do Estado Novo para reforçar a ideologia colonial portuguesa e auferir ao colonialismo português um estatuto de benevolência e excecionalidade em relação às demais potências colonizadoras.

A crítica colonial de Alfredo Margarido foi bastante influenciada pela filosofia marxista/materialista, tendo tido especial atenção aos papéis desempenhados por novas e velhas burguesias nas dinâmicas político-sociais das antigas colónias. A sua mais-valia confere-se através do quão abrangente podia ser o seu pensamento, que se inquietou com inúmeras questões, embora algumas delas não tenham recebido tanta atenção. Isto, a meu ver, é algo muito valioso, pois estabelecem-se novos pontos de partida para as pessoas que, inquietadas pelas críticas dele, continuarão a questionar a colonialidade remanescente. Seguem-se alguns desses temas: a precariedade dos portugueses não beneficiários do colonialismo cujas condições se deviam exatamente à insistência no empreendimento colonial, mas que mesmo assim integravam a massa hegemónica que legitimava a continuidade de tal sistema; o conhecimento que os sujeitos colonizados tinham da geografia portuguesa em detrimento da geografia e da cultura do seu próprio território; o facto de que tanto os republicanos quanto os ditadores portugueses tinham imbricado na sua ideologia política a naturalização do colonialismo; e a forma como o Brasil se relacionava com o complexo novelo colonial português após a sua descolonização, dado os contributos que pontualmente deu para o reforço do colonialismo (ou, posto de outra forma, o atraso das independências) em África.

Já nos últimos textos, na parte dedicada à crítica de Margarido aos propósitos da lusofonia, o autor mostra-se mais uma vez na vanguarda ao abordar o luto colonial, um tópico que mesmo muito embrionário na sua teoria, coaduna-se com as discussões correntes a respeito da pós-memória e de como o trauma colonial herdado se manifesta. No entanto, se Margarido é bastante atual em alguns pontos do seu discurso ao usar termos como “estado-unidense” ao invés de “americano” e nos seus textos mais recentes fazer uso de aspas ao mencionar os “descobrimentos”, não conseguiu alcançar, pelo menos no contexto das obras incluídas neste livro, a crítica ao racismo presente na obra de Monteiro Lobato, a quem recorre, por conta do personagem Saci, para ilustrar a possibilidade de se “integrar os africanos na formação da sociedade brasileira” (p. 318).

Em forma de conclusão, destaco como crítica à obra a presença de uma ainda latente presunção intelectual europeia ilustrada pelos usos das diferentes línguas desse continente. Se Margarido criticou a instrumentalização da língua portuguesa como ferramenta neocolonial no que seria uma lusofonia, onde Portugal permanece como “proprietário” ou “guardião” dos usos corretos da língua (p. 450), os excertos, especialmente em língua francesa, sem tradução ou paráfrase, tanto nos textos introdutórios como nos ensaios escolhidos, não só prejudicam a fluidez da narrativa como tornam impossível uma compreensão integral do texto da parte de quem não domina os demais idiomas, algo incompatível com o que é abordado na própria obra.

Financiamento

Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e pelo Fundo Social Europeu através de uma Bolsa de Investigação para Doutoramento com a referência FCT/FSE/2021.08712.BD.

Referências bibliográficas

Garcia, J. L. (2022). Mário Domingues: precursor da afirmação negra e do anticolonialismo. In J. L. Garcia (Ed.), A afirmação negra e a questão colonial: textos, 1919‑1928 (pp. 11-84). Tinta‑da‑China [ Links ]

Notas

1Isabel Castro Henriques assina com Alfredo Margarido o único texto em coautoria do livro, o subcapítulo 3.1., originalmente publicado como introdução na obra Cultura e opulência do Brasil, de André João Antonil (em 1989).

Recebido: 11 de Julho de 2023; Aceito: 12 de Outubro de 2023

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