INTRODUÇÃO
A Telemedicina é um termo complexo, tendo sido definido pela Organização Mundial da Saúde como a prestação de serviços de saúde à distância, quando esta é um fator crítico. Trata-se de uma forma inovadora de cuidados que está ao alcance de todos os profissionais de saúde, quer para a obtenção de informações sobre determinado diagnóstico, tratamento, prevenção de doenças, quer para a pesquisa, avaliação e formação contínua e atualizada dos profissionais de saúde (1).
A telemedicina ganhou destaque nacional nos últimos anos, principalmente na consequência da pandemia Covid-19, aumentando também o seu uso no tratamento de alterações psicológicas, nomeadamente nas perturbações do comportamento alimentar (PCA). Estas intervenções terapêuticas apresentam inúmeras vantagens: podem auxiliar a prevenção e o tratamento das PCA, são de fácil disseminação e permitem minimizar barreiras que possam existir, como por exemplo maior acessibilidade a doentes que de outra forma não teriam acesso a tratamento especializado, menor custo e permitem ainda o acompanhamento ao longo do tempo (2). Ao permitir uma maior acessibilidade ao tratamento e aos cuidados estas ferramentas podem reduzir o nível de stress e aumentar a satisfação dos doentes, aumentando o envolvimento do doente na sua doença e a adesão terapêutica (3).
As PCA são distúrbios psiquiátricos caracterizados por alterações no comportamento alimentar, onde as pessoas apresentam uma excessiva preocupação com o peso e com a sua forma corporal, levando a uma restrição alimentar, ingestão alimentar compulsiva, comportamentos purgativos e prática de exercício físico exagerado (2). Atualmente, existem cerca de 6 tipos de perturbações alimentares reconhecidas pela Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-V) e International Classification of Diseases (ICD-10). Estas incluem Anorexia Nervosa (AN), Bulimia Nervosa (BN), Comportamento Alimentar Compulsivo (CAC), Comportamento Alimentar Restritivo Evasivo, Pica e Ruminação (4). Dentro destes 6 tipos de perturbações alimentares as mais estudadas a AN, a BN e o CAC.
As PCA apresentam uma taxa elevada de mortalidade e um enorme impacto social e financeiro, ao necessitarem de tratamento a longo prazo (4). Nesse sentido, as utilizações das tecnologias digitais para o tratamento das PCA parecem ser promissoras.
Existem diversos modelos que demonstram como as novas tecnologias (computador e internet para o uso por exemplo de sessões terapêuticas, dispositivos móveis como as mensagens de texto, aplicações de autoajuda e também jogos e realidade virtual) podem ser incorporadas na prática clínica do tratamento das PCA nos diferentes estádios da doença, na triagem, podem por exemplo permitir a autoavaliação das PCA valorizando sintomas que mereçam intervenção, na monitorização e na avaliação em tempo real, ao passo que aumentam a conexão com o terapeuta (5, 6).
Dadas as vantagens mencionadas do uso das novas tecnologias, aliadas ao facto de serem mais interativas e atrativas do que as abordagens convencionais, estas merecem uma maior atenção por parte da comunidade científica de forma a perceber a sua eficácia e efetividade no tratamento das PCA.
Nesse sentido, as autoras deste trabalho almejam avaliar a utilidade das novas tecnologias no tratamento das PCA e perceber quais os indivíduos que podem beneficiar destas intervenções.
METODOLOGIA
Realizou-se uma pesquisa bibliográfica no dia 19 de março de 2022 nas seguintes base de dados: PubMed-MEDLINE, Scopus e Cohrane Library utilizando os termos MESH nomeadamente “feeding and eating disorders treatment and technologies of feeding and eating disorders treatment digital of feeding and eating disorders treatment apps of feeding and eating disorders treatment social media”.
Incluíram-se na pesquisa artigos científicos indexados publicados entre o dia 1 janeiro de 2010 e a data da realização desta pesquisa, unicamente publicados na língua inglesa.
Foram incluídos, essencialmente, artigos originais de meta-análises, revisões sistemáticas, ensaios clínicos randomizados e controlados, estudos de coorte, transversais e observacionais. Foram também incluídos artigos que permitissem uma melhor compreensão sobre o tema que incidiram sobre a etiologia, epidemiologia e impacto das aplicações online na saúde.
Para os critérios de elegibilidade, foi utilizado o modelo PICO (Population, Intervention, Comparison, Outcome) de forma a definir as variáveis a avaliar. Assim, considerou-se como população em estudo indivíduos de todas as idades com PCA e com acesso a tecnologias digitais, procurando verificar os efeitos do uso de novas tecnologias no tratamento das perturbações do comportamento alimentar comparativamente com o tratamento tradicional.
Como critérios de exclusão, consideraram-se os artigos que não cumprem os critérios de inclusão definidos, artigos duplicados, artigos não relacionados, estudos em que a população não tem alteração do comportamento alimentar, tecnologias que visam promoção de hábitos e não tratamento das PCA e artigos publicados antes de 1 janeiro de 2010. Para classificação do nível de evidência (NE) dos artigos utilizou-se a Strength of Recommendation Taxonomy (SORT) da American Academy of Family Physicians.
RESULTADOS
Procura de Dados
Da pesquisa bibliográfica realizada resultou um total de 342 artigos. Destes 342 artigos, 65 foram selecionados da base de dados PubMed-MEDLINE, 236 da Cohrane Library e 41 foram recrutados da base de dados Scopus.
Após leitura do título e resumo foram excluídos artigos, dos quais eram artigos duplicados, títulos não relacionados, artigos que não cumpriram os critérios de inclusão e outras línguas que não o inglês, perfazendo 30 artigos.
Por impossibilidade de aceder a 3 meta-análises, não sendo possível a sua leitura integral, estas foram excluídas, tendo resultado um total de 27 artigos com leitura integral, dos quais 5 Casos Controlo; 10 Meta-Análise; 3 estudos observacionais descritivos; 8 Ensaios Clínicos e 1 estudo Cohort.
A esquematização desta pesquisa está resumida na fluxograma do Anexo 1.
Recrutamento de Doentes com Perturbações do Comportamento Alimentar
As tecnologias digitais podem ser utilizadas para identificar indivíduos com PCA. Um estudo realizado em 2021 por Kasson et al. (7) aproveitou as redes sociais para interagir com adolescentes com PCA e identificar características específicas desta população. Este estudo mostrou que é viável a utilização destas redes para haver conexão com grupos de pessoas que dificilmente se alcançariam por métodos tradicionais.
AN: Anorexia Nervosa
CBI: Intervenções Baseadas na Internet e no Computador
BITE: Teste de Edinburgh de Investigação da Bulimia
BN: Bulimia Nervosa
EDE: Exame de Perturbações Alimentares
EUA: Estados Unidos da America
NE: Nível Evidência
PCA: Perturbações do Comportamento Alimentar
TCAP: Transtorno da Compulsão Alimentar Periódico TCC: Terapia Cognitivo Comportamental
Perspetiva dos Utilizadores
Três estudos recentes avaliaram a opinião dos indivíduos com PCA acerca da utilização das tecnologias digitais no tratamento (Tabela 2). As vantagens mais apontadas pelos doentes numa revisão sistemática (8) foram a possibilidade de utilização destas ferramentas serem de fácil acesso e a todo o tempo e o facto de não terem que se deslocar para terem uma consulta (84%). Como limitação foram apontadas as preocupações inerentes à privacidade dos dados e à precisão de alguns conteúdos informativos disponibilizados (50%). A preferência quanto ao tipo de ferramentas recaiu sobre plataformas que possam estar disponíveis em todos os dispositivos digitais e sobre conteúdos apresentados por meio de gráficos e tutoriais em vídeo, em vez de áudio. Quando questionados acerca das funcionalidades desejadas a maioria dos participantes prefere ferramentas com suporte clínico e feedback personalizado, com estratégias para mudar pensamentos inúteis nas PCA e com escalas de triagem para avaliar a gravidade dos sintomas. Ressalvam também a utilidade na psicoeducação e a capacidade de resposta a solicitações de intervenção just-in-time. Existem disponíveis na internet aplicações e sites web para tratamento e suporte das PCA que estão ao alcance de todos. Wasil et al. tentou perceber quais as aplicações mais acessíveis e disponíveis quando um doente com PCA acede aos conteúdos digitais. Pretendeu ainda perceber destro dessas aplicações aquelas que vão encontro dos critérios de tratamento definidos tradicionalmente em livros. Assim, verificaram que existem quatro aplicações mais procuradas, usadas e indicadas e que devem tambem ser conhecidas por todos os clínicos que trabalham com PCA (9).
Monitorização
Uma das ferramentas que pode ser útil para o acompanhamento de doentes com PCA é a automonitorização. O tipo de registos pode ser muito variado desde número de sintomas purgativos a número de refeições efetuadas. Keshen et al. desejou perceber se o registo em smartphone®, uma vez que está mais acessível e prático, seria mais eficaz que o tradicional papel, porém no estudo efetuado não se registaram diferenças significativas, havendo vantagens em ambos os métodos (10).
Autoajuda
A Autoajuda é um dos aspetos mais trabalhados nas PCA. Cinco estudos (duas Revisões Sistemáticas e 3 Casos Controlo) investigaram a eficácia da utilização de tecnologias digitais como ferramentas de autoajuda nas PCA. Desde 2012 que se sabia que as terapias digitais não eram inferiores às terapias digitais de autoajuda terapeuta mediadas ou não (6). Contudo, estudos mais recentes mostraram que estas são efetivas na redução da psicopatologia nas PCA, na redução de comportamentos compensatórios (episódios bulímicos) e na depressão, e cujo impacto se verifica a longo prazo, pelo menos até 1 ano (11). Foi desenvolvido e testado um monitor Noom, trata-se de uma aplicação de smartphone projetado para facilitar a terapia cognitivo comportamental mediado por autoajuda na adesão e sintomas de transtorno alimentar em comparação com a terapia tradicional (12). Este mostrou uma redução de episódios bulímicos (β = -0,84, IC 95% = -1,49, -0,19), e uma maior adesão às refeições regulares comparativamente à terapia convencional, quanto às taxas de remissão na foram encontradas diferenças numa amostra de 66 participantes deste estudo.
Terapia Cognitivo Comportamental
A Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) é um instrumento basilar no tratamento das PCA. Existem sites Web, aplicações e até fóruns dedicados a esta temática. A maioria dos estudos revelou que a TCC por meio digital fornece um suporte terapêutico e tratamento online que foi avaliado positivamente (13,14), embora a taxa de abandono seja considerável (15).
Kendal et al. mostrou que fóruns de discussão online podem ser seguros e espaços aceitáveis para que os jovens tenham acesso à ajuda, ressalvando a importância destes terem um monitor que ajude a moderar os mesmos (16).
Bulimia Nervosa e Anorexia Nervosa
Ferrer-Garcia et al. acompanhou durante 6 meses 60 doentes oriundos de Espanha e Itália que já tinham sido expostos a uma terapia prévia de tratamento de PCA, sendo desta vez expostos a uma terapia de segundo nível baseada em realidade virtual. A frequência de episódios de compulsão e purgação e as características de PCA relacionadas à compulsão (bulimia, desejo de magreza e insatisfação corporal) foram avaliadas antes de iniciar o tratamento de segundo nível e no final e ao fim de 6 meses. Ambas as condições de tratamento apresentaram melhoria estatisticamente significativa ao final e após 6 meses de acompanhamento, as reduções obtidas foram maiores após intervenção com realidade virtual, em relação aos episódios de compulsão alimentar e purgação, bem como a diminuição da tendência autorrelatada de se envolver em episódios de compulsão alimentar (p = 0,001) (17) .
Os estudos apresentados em 2021 avaliaram a TCC e mostraram eficácia a curto e médio e longo prazo das tecnologias digitais no tratamento das PCA, nomeadamente na BN e AN (18, 19), com elevado nível de evidência.
Bauer et al. avaliaram um programa através do envio de mensagens curtas de texto para apoiar pacientes após a alta hospitalar. Os resultados obtidos mostraram que as taxas de remissão entre os grupos de intervenção e controlo não foram significativamente diferentes entre os pacientes que receberam tratamento ambulatório e digital, apesar de haver uma maior taxa de remissão no grupo intervenção, verificando-se que o mesmo foi eficaz para melhorar o resultado do tratamento (20).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O uso crescente e generalizado das tecnologias veio trazer às populações novas formas de socializar, de aprender, de trabalhar e também oportunidades de tratamento de algumas condições específicas, como é o caso das PCA. Existem ainda uma vasta gama de barreiras que dificultam o tratamento das PCA, como por exemplo o estigma, as dificuldades de acesso, o custo e a falta de profissionais treinados, principalmente se pensarmos nos indivíduos que vivem em meios rurais, dado o facto de estes serviços estarem mais centralizados. Esta realidade vai de encontro à literatura disponível, que refere que a maioria dos indivíduos com PCA em todo o mundo não consegue obter um acompanhamento e tratamento adequados (2). Desta forma, pensa- se que as ferramentas digitais podem ajudar a preencher essa lacuna. Esta revisão baseada na evidência apresenta diversos estudos que confirmam a existência da associação entre as tecnologias e os benefícios no tratamento das PCA. Importa referir que os vários estudos avaliados incidiram sobre diversas populações com diferentes tamanhos amostrais e faixas etárias. Não só a idade dos participantes pode traduzir diferenças na utilização das novas tecnologias, como o próprio contexto sociocultural deve ser tido em conta.
Na prática clínica podemos integrar as tecnologias de diferentes formas, estas podem ser usadas como monitorização de sintomas, suporte entre sessões, psicoeducação, aumento de literacia, impulsionadoras da prática de comportamentos saudáveis, exposição a realidade virtual e ainda determinar a acessibilidade às redes sociais. A automonitorização do paciente através de aplicações pode ser capaz de aumentar a sensação de autonomia do paciente, além disso, recursos adicionais de autoajuda digitais são de baixo custo e reduzem o número de tratamentos presenciais necessários, sendo que a eficácia destes é superior aos programas de autoajuda convencionais. Embora haja evidência de que a TCC seja o tratamento de primeira linha para o transtorno da compulsão alimentar periódico (TCAP), ela não está amplamente disponível. Como o TCAP ainda é uma categoria diagnóstica recente, muitos casos provavelmente permanecem sem diagnóstico e um grande número de pacientes recebe tratamento tardio ou nunca recebe tratamento adequado. Um estudo multicêntrico realizado na Alemanha forneceu informações sobre a eficácia de um novo programa de autoajuda guiado pela Internet e permitiu uma comparação direta com o tratamento padrão-ouro da TCC não mostrando inferioridade nas TCC digitais (6).
As aplicações para smartphones que visam o tratamento da compulsão alimentar parecem ter vantagens no que concerne à adesão e ao componente crítico da disseminação do tratamento (21).
Como descrito são vários os benefícios que a tecnologia oferece no acesso e tratamento de crianças e jovens com PCA, contudo não são isentas de potenciais malefícios. Os terapeutas que pretendam usar as tecnologias integradas no tratamento das PCA em menores devem ter a permissão parental, para que estes também possam desempenhar o seu papel de supervisão. Outro pré-requisito importante é a confidencialidade e privacidade, como limitações no uso das novas tecnologias. Não obstante, no que respeita aos jovens, dado a presença do sentimento de vergonha muitas vezes característico desta faixa etária, as novas tecnologias podem ser úteis principalmente numa fase inicial.
Há ainda autores que argumentam que o tratamento atual deveria passar por dissuadir os jovens e adultos da comunicação digital e impedir o uso adicional de redes sociais, uma vez que diminuiu o potencial da relação terapeuta-doente ao minimizar a interação cara-a- cara, podendo aumentar as taxas de abandono ao longo do tratamento e poder aumentar a vulnerabilidade dos jovens ao mundo digital e online (5). Levantam ainda questões se a existência de aplicações e programas de uso livre podem impedir o doente de procurar níveis mais elevados de ajuda, quando apropriado.
Não é garantido que todos os indivíduos beneficiem de novas tecnologias para o correto apoio psicológico (8). É unanime entre os autores a necessidade de criar programas mais inclusivos para as pessoas, abrangendo diferentes características demográficas e clínicas. Parece ser apropriado centrar a atenção também nestas novas oportunidades de intervenção, especialmente para evitar agravamentos súbitos e criar potenciais canais de intervenção que em circunstâncias particulares podem ser difíceis de aplicar.
Em suma, as conclusões dos diferentes estudos em análise indicam uma necessidade de maior investigação sobre esta temática, principalmente nos mais jovens, altamente relevante na sociedade atual.
CONCLUSÕES
Nesta revisão foram apresentados vários estudos que mostram as utilidades e eficácia das novas tecnologias. Assim, e à luz da evidência atual, podemos concluir que as ferramentas digitais são uma excelente arma terapêutica no tratamento dos doentes com PCA. No entanto, apesar dos benefícios comprovados, a ciência carece ainda de estudos que mostrem a eficácia do uso das novas tecnologias principalmente nas populações pediátricas. Além de que, grande parte dos estudos em adolescentes, recaem em adolescentes do sexo feminino, em amostras reduzidas e com intervalos de intervenção/acompanhamento reduzidos. Assim, são necessários mais estudos, nomeadamente estudos longitudinais de longo prazo, em amostras representativas, que envolvam ambos os sexos. Da mesma forma, é imprescindível perceber quais os doentes elegíveis para este tipo de tratamento e qual a melhor ferramenta digital tendo em conta a faixa etária e o estádio da doença. Importa referir que todos os profissionais envolvidos no tratamento das PCA devem conhecer estas opções e usá-las de forma personalizada e individualizada de acordo com o doente, fazendo-se valer da sua sensibilidade clínica e à luz da ciência atual.