Introdução
O sono tem um papel crucial no desenvolvimento da criança e adolescente, com impacto no crescimento, desenvolvimento emocional e comportamental, mas também influencia as suas funções cognitivas, de atenção e aprendizagem, pelo que se assume que os distúrbios do sono podem ter repercussões em todas estas áreas.1) Torna-se assim importante o reconhecimento atempado destes distúrbios bem como o seu tratamento, permitindo que a criança seja mais saudável e adquira maior capacidade de aprendizagem.
Os distúrbios do sono constituem uma das perturbações comportamentais mais comuns em idade pediátrica e estima-se que afetem 20%-30% das crianças.2 Neles estão incluídas a insónia comportamental da infância e as parassónias tais como: terrores noturnos, pesadelos, entre outros.3 Nas crianças, os distúrbios relacionados com o início do sono e os despertares noturnos são dominantes, presentes em 20%-25%.2 Estima-se que 40%-80% das crianças com distúrbios do sono aos 15- 48 meses apresentam distúrbios do sono persistentes após 2-3 anos.2
Os distúrbios do sono são ainda uma patologia subvalorizada, mesmo por parte dos pais, levando por vezes a dificuldades no diagnóstico por parte dos profissionais de saúde.
Para avaliação das componentes comportamentais e fisiológicas do sono os questionários de preenchimento parental tornaram-se uma importante ferramenta, permitindo a avaliação retrospetiva dos hábitos, perturbações e comportamentos num determinado espaço de tempo. Nesse sentido, foi desenvolvido nos Estados Unidos da América o CSHQ, um questionário retrospetivo para avaliação do sono nas crianças em idade escolar, que tem vindo a ser utilizado em diversos estudos. A sua estrutura baseia-se nos sintomas comuns aos diagnósticos de perturbações do sono mais prevalentes na idade pediátrica de acordo com a Classificação Internacional dos Distúrbios do Sono (ICSD). É composto por 45 itens, agrupados em oito subescalas, cuja soma corresponde ao IPS. Permite avaliar a perceção dos pais do sono dos seus filhos numa semana típica, sugerindo um corte da pontuação total de 44 para identificar as crianças com possíveis distúrbios do sono. A adaptação e validação do CSHQ já estão publicadas em várias línguas, tendo a tradução e adaptação à língua portuguesa (CSHQ-PT) sido publicada em 2011 com aplicabilidade e validação para a população dos 2 aos 10 anos.4
Uma vez que as perturbações do sono têm um papel relevante na população pediátrica, e sendo a literatura relativa ao tema ainda limitada, o questionário CSHQ-PT tornou-se um importante instrumento de relevância epidemiológica.
Este estudo pretendeu caracterizar os hábitos e perturbações do sono numa população pediátrica saudável em seguimento numa Unidade de Saúde Familiar (USF) da cidade de Braga e verificar a utilidade e importância do CSHQ-PT na caracterização dos hábitos e perturbações do sono.
Material e métodos
Estudo descritivo correlacional e transversal numa amostra de cuidadores das crianças utentes da USF Gualtar com idades compreendidas entre os 2 e os 10 anos de idade, através da aplicação do CSHQ-PT validado.
A amostra foi selecionada por conveniência junto da população de utentes da USF com idades entre os 2 e os 10 anos, com um total de 1603 utentes. Para obtenção de uma amostra significativa foi utilizado o programa Survey System®, tendo-se obtido um n=310 para um nível de confiança de 95% e definido um p=0,05. A este valor acresce-se 10% de perdas estimadas, perfazendo um total de 341 utentes.
Foram definidos como critérios de exclusão a não-aceitação de participação no estudo, o não preenchimento do consentimento informado, crianças portadoras de doença respiratória com necessidade de ventilação não invasiva durante o sono, crianças com atraso do desenvolvimento psicomotor ou doença do foro psiquiátrico ou com medicação que tem influência no sono, e crianças não residentes em Portugal.
Os questionários foram aplicados no período entre outubro e dezembro de 2018, no momento que antecedeu a consulta de Saúde Infantil e Juvenil, com oportunidade para esclarecimento de dúvidas junto do Médico durante a consulta. O ponto de corte utilizado para identificação das crianças com perturbação do sono foi de 44.
Análise estatística dos dados através do software Statistical Package for the Social Science® (SPSS®). Foi analisada a normalidade das variáveis contínuas, sendo que em nenhum dos casos se verificou a normalidade dos dados, pelo que os resultados são apresentados como mediana [amplitude interquartil]. Na análise das subescalas também não se verificou a distribuição normal das variáveis, mantendo-se, contudo, a apresentação dos valores com média e desvio padrão para comparação com outros estudos.
Os valores qualitativos são apresentados como frequência absoluta e percentagem. A comparação entre grupos foi analisada através do T-test ou Mann-Whitney para variáveis contínuas entre grupos. Para a análise de correlação foram testadas as variáveis através do teste de Spearman ou do Pearson. Foi definido um valor de significância p<0,05.
Resultados
No período do estudo foram obtidos um total de 157 questionários. A distribuição por género foi relativamente homogénea, com 55,1% do sexo masculino e 44,9% sexo feminino. A mediana de idades foi de 5 anos [3;8], com idade mínima de 2 anos e máxima de 10 anos.
No sexo feminino a mediana de idades foi de 6 anos e no sexo masculino 5 anos, sem significado estatístico (Tabela 1).
Categoria | Total | Masculino n=86 (55,1%) | Feminino n=70 (44,9%) | p-value | |
Idade | 5 [3;8] [2;10] | 5 [3;8] [2;10] | 6 [3;8] [2;10] | 0,373 | |
Minutos dormidos (semana) | 610 [595;630] [450;705] | 615 [600;630] [450;690] | 600 [587.5;640] [510;705] | 0,580 | |
Minutos dormidos (fim-de-semana) | 630 [600;660] [450;780] | 630 [600;660] [450;780] | 660 [600;660] [540;750] | 0,166 | |
IPS | 48 [43;53] [35;75] | 49 [43;55] [35;75] | 46 [43;52] [35;69] | 0,073 | |
Tempo acordado de noite | <5 5-15 >15 | 26 (25,7%) 63 (62,4%) 12 (11,9%) | 16 (29,6%) 29 (53,7%) 9 (16,7%) | 10 (21,3%) 34 (72,3%) 3 (6,4%) | 0,115 |
Perceção parental | Sim Não | 25 (16%) 131 (84%) | 17 (19,8%) 69 (80,2%) | 8 (11,4%) 62 (88,6%) | 0,158 |
Valores apresentados em mediana [AIQ], [mínimo; máximo]
Considerando 44 como ponte de corte na escala IPS, verificamos que 70,9% do sexo masculino (n=61) e 63,8% do sexo feminino (n=44) se encontram acima deste valor (p=0,073), correspondendo a um total de 67,3% da amostra. Por grupo etário verificamos que 75,90% das crianças entre os 2-5 anos de idade e 58,3% das crianças com 6-10 anos de idade apresentam um IPS acima desse valor. Destaca-se que apenas em 25 casos houve perceção parental da existência de distúrbio do sono, restantes 131 com resposta negativa a esta questão, sem diferenças estatisticamente significativas entre sexos (p=0,115). A mediana do Índice de Perturbação do Sono (IPS), foi de 48 [43;53], sem diferença estatisticamente significativa entre sexos (p=0,07). Por grupo etário obtivemos uma mediana de IPS de 50 [45;55] para crianças com idades 2-5 anos e de 46 [41;52] para idades 6-10 anos, com significado estatístico (p=0,07) (Tabela 2).
Constatamos ainda que o IPS é diferente entre os pais que têm perceção dos filhos apresentarem ou não este problema, com valor do IPS superior quando a perceção parental é positiva (p<0,001).
Relativamente à duração do sono, constatou-se uma mediana de 610 minutos [595;630] durante a semana e de 630 minutos [600-660] ao fim-de-semana, sem diferença estatisticamente significativa entre géneros. Por grupo etário constatou-se uma duração mediana durante a semana de 615 minutos [600;637,5] para crianças entre os 2-5 anos e 600 minutos [570;63] dos 6-10 anos, diferença estatisticamente significativa (p=0,002).
Ao fim-se-semana constatou-se uma duração mediana de 660 minutos [600;690] e 630 minutos [600;660] para os mesmos grupos etários, sem significado estatístico (p=0,183). Maioria dos despertares noturnos com duração entre 5-15 minutos (62,4%), apenas 11,9% referiram despertar noturno superior a 15 minutos, sem diferença estatisticamente significativa entre sexos e entre grupo etário (Tabelas 1 e 2).
Categoria | Entre 2 e 5 anos | Superior a 5 anos | p-value | |
Minutos dormidos (semana) | 615 [600;637,5] [450;705] | 600 [570;630] [505;690] | 0,002 | |
Minutos dormidos (fim-de-semana) | 660 [600;690] [450;780] | 630 [600;660] [540;780] | 0,183 | |
IPS | 50 [45;55] [35;69] | 46 [41;52] [35;75] | 0,007 | |
Tempo acordada de noite | <5 5-15 >15 | 13 (25%) 32 (61,5%) 7 (13,5%) | 13 (26,5%) 31 (63,3%) 5 (10,2%) | 0,878 |
Perceção parental | Sim Não | 15 (18,3%) 67 (81,7%) | 10 (13,5%) 64 (86,5%) | 0,416 |
Valores apresentados em mediana [AIQ], [mínimo; máximo]
Total | Masculino | Feminino | p-value | |
Parassónias | 5,55±1,52 | 5,85±1,72 | 5,18±1,14 | 0,014 |
Resistência em ir para a cama | 9,69±3,1 | 10,03±3,16 | 9,26±3 | 0,120 |
Despertar noturno | 4,28±1,53 | 4,42±1,62 | 4,1±1,42 | 0,198 |
Sonolência diurna | 13,74±2,78 | 13,77±2,83 | 13,71±2,73 | 0,906 |
Distúrbios respiratórios | 3,43±1,05 | 3,42±1,11 | 3,44±0,97 | 0,886 |
Ansiedade no sono | 6,97±2,32 | 7,07±2,34 | 6,86±2,32 | 0,571 |
Valores apresentados em média ±DP
Total | ≤5 anos | >5 anos | p-value | |
Parassónias | 5,55±1,52 | 5,76±1,51 | 5,45±1,52 | 0,297 |
Resistência em ir para a cama | 9,69±3,1 | 10,39±3,04 | 8,91±3 | 0,003 |
Despertar noturno | 4,28±1,53 | 4,82±1,72 | 3,68±1,01 | <0,001 |
Sonolência diurna | 13,74±2,78 | 13,74±2,91 | 13,74±2,64 | 0,999 |
Distúrbios respiratórios | 3,43±1,05 | 3,49±1,12 | 3,36±0,96 | 0,466 |
Ansiedade no sono | 6,97±2,32 | 7,39±2,22 | 6,51±2,36 | 0,018 |
Valores apresentados em média ±DP
Minutos dormidos semana | Minutos dormidos fim-de-semana | |
Parassónias | 0,693 [0,038] | 0,273 [-0,105] |
Resistência em ir para a cama | 0,155 [0,115]] | 0,931 [-0,007] |
Despertares noturnos | 0,016 [0,195] | 0,924 [-0,008] |
Sonolência diurna | 0,193 [-0,105] | 0,644 [-0,038] |
Distúrbios respiratórios do sono | 0,466 [-0,059] | 0,369 [-0,073] |
Ansiedade relacionada com o sono | 0,077 [0,143] | 0,737 [-0,027] |
Os valores na tabela referem-se a p-value [Rhô]
Estudo atual (2018) | Estudo Ata Pediátrica (2014) | |
Parassónias | 5,55±1,52 | 8,82±1,84 |
Resistência em ir para a cama | 9,69±3,1 | 7,98±2,54 |
Despertares noturnos | 4,28±1,53 | 3,87±1,18 |
Sonolência diurna | 13,74±2,78 | 13,98±2,6 |
Distúrbios respiratórios relacionados com o sono | 3,43±1,05 | 3,51±1,0 |
Ansiedade relacionada com o sono | 6,97±2,32 | 5,56±1,88 |
Dados apresentados em média±DP
Na avaliação das subescalas, foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre sexos para as parassónias, com médias mais elevadas no sexo masculino (p=0,014), e entre grupos etários com maiores valores no grupo até aos 5 anos na resistência em ir para a cama (p=0,003), ansiedade no sono (p=0,018) e despertares noturnos (p<0,001). Nas Tabelas 3 e 4 estão representados os valores referentes às subescalas distribuídos por sexo e grupo etário, respetivamente.
Foram ainda relacionadas a quantidade e qualidade do sono, pela comparação do número de horas de sono dormidas à semana e ao fim-de-semana com as subescalas do questionário (Tabela 5). De realçar a correlação positiva do despertar noturno com os minutos dormidos à semana (p=0,016; rho=0,195).
Discussão
Neste estudo obtivemos diferenças significativas na duração do sono à semana entre os grupos etários, verificando-se uma diminuição dos minutos dormidos com o aumento da idade. Esta tendência verificou-se também na duração do sono ao fim-de-semana, contudo sem significado estatístico. Não se encontrou diferença significativa entre géneros, resultados que parecem ser concordantes com o publicado na literatura. Para todos os grupos obtivemos uma mediana de sono de pelo menos 10 horas, o tempo recomendado pela National Sleep Foundation (NSF) em idade escolar.
No que diz respeito à qualidade do sono, expressa no IPS, os valores obtidos na generalidade situaram-se acima do ponto de corte, com cerca de 2/3 da amostra a apresentar IPS acima de 44. A diferença do IPS não foi significativa entre sexos, mas sim entre faixas etárias, verificando-se valores superiores na idade pré-escolar (2-5 anos). Esta diferença pode dever-se ao tamanho da amostra com maior número de crianças abaixo de 5 anos (52,6%) comparativamente a outros estudos realizados.
Nas subescalas os valores obtidos foram, em algumas, semelhantes ao publicado no estudo de 2014,1 com disparidade mais evidente nas parassónias e resistência em ir para a cama (Tabela 6). As diferenças significativas por género observaram-se nas parassónias, com pontuação mais elevada no sexo masculino, também concordante com a literatura.1 A comparação dos grupos etários encontrou diferenças significativas na resistência em ir para a cama, ansiedade no sono e despertares noturnos, com o grupo com idade inferior a 5 anos com pontuação superior. Não obtivemos valores mais elevados em nenhuma subescala no grupo etário dos mais velhos, ao contrário do descrito na literatura. Salienta-se ainda a relação positiva entre o despertar noturno e os minutos dormidos à semana.