Introdução
No contexto nacional e internacional, a realização de cirurgias eletivas tem tido um aumento exponencial e com uma complexidade cada vez maior, envolvendo procedimentos de grande abordagem, multiorgânicos, de longa duração e em clientes com morbilidades múltiplas. A pessoa intervencionada durante a sua cirurgia desencadeia uma série de respostas orgânicas, devido ao traumatismo provocado, com o intuito de reparar os tecidos lesados e repor a homeostase corporal, e que se agrava com o jejum pré-operatório prolongado (Francisco, Batista, & Pena, 2015). A conjugação destes dois elementos, traumatismo cirúrgico e o jejum prolongado, gera uma diminuição dos níveis de insulina, um aumento do cortisol e do glucagon, da resposta inflamatória e da produção de catecolaminas que, por sua vez, produzirão um aumento na resistência à insulina que começa na fase intraoperatória e se estende no pós-operatório. Ao mesmo tempo surge a ativação do processo de neoglicogénese, aumentando a glicemia sanguínea o que intensifica o stresse metabólico cirúrgico (Yildiz, Gunal, Yilmaz, & Yucel, 2013).
Sendo o jejum pré-operatório a abstinência de alimentos e líquidos num período de tempo que antecede a indução anestésica e a cirurgia, Powers (2017) reporta ainda que atualmente são dadas indicações para o cliente adotar o modelo “nada pela boca” (NPO), que consiste numa interrupção da ingestão destes alimentos desde as zero horas anteriores à cirurgia programada. É ainda aludido que com esta prática a prevenção de possíveis complicações na fase intraoperatória como o vómito e a aspiração de conteúdo gástrico durante a indução anestésica e o procedimento cirúrgico (Çakar, Yilmaz, Çakar, & Baydur, 2017). No entanto, já em 1999, com reformulações em 2011, a American Society of Anaesthesiologists (ASA) desaconselhava um jejum pré-operatório tão prolongado, assegurando que este comportava mais prejuízos do que ganhos para o cliente, uma vez que aumentava o stresse cirúrgico e respostas fisiológicas indesejáveis, como a desidratação, a ansiedade, a fome, a sede, a xerostomia, a fadiga, a inquietação, as cefaleias, o desconforto pré e pós-operatório, implicando um défice na reserva de fluídos para o período pós- operatório (Macqbali, 2016). Contudo, em 2014, Aguilar-Nascimento, Dias, Dock-Nascimento, Correia, Campos, Portari-Filho & Oliveira ainda referiam que o jejum prolongado era uma prática continuada nos cuidados pré-operatórios, apesar de já existirem algumas orientações contrárias a esse procedimento. Outros autores acrescentavam que a supressão do tempo de jejum prolongado poderia influenciar positivamente a redução do tempo de internamento pós-operatório e as complicações e intercorrências derivadas da intervenção cirúrgica (Pinto, Grigoletti & Marcadenti, 2015). Neste contexto, no ano de 2019, o protocolo Enhanced Recovery After Surgery (ERAS) definiu intervenções multidisciplinares para os vários momentos operatórios, contemplando a prevenção do jejum prolongado, tendo em vista uma diminuição do stresse cirúrgico e uma aceleração da recuperação pós-operatória num contexto de segurança para o cliente. Atendendo ao exercício profissional do enfermeiro, que também se centra neste domínio, é-lhe exigido uma conceção e implementação de cuidados, baseados na melhor evidência científica, e adequados às caraterísticas clínicas do cliente a intervencionar, com o intuito de minimizar o impacto da cirurgia e promover a obtenção de resultados anestésico- cirúrgicos positivos. Todavia, nos vários contextos da prática clínica, nem sempre a implementação do jejum pré-operatório é orientada nos pressupostos apresentados. Imbuídos nesta convicção, este estudo tem como objetivo conhecer a evidência científica sobre as orientações atuais acerca da aplicação do jejum pré-operatório em clientes submetidos a cirurgia eletiva, publicada nos últimos cinco anos.
Procedimentos metodológicos de revisão
Trata-se de um estudo de revisão integrativa da literatura, que potencia a síntese de todos os achados disponíveis sobre a temática, permitindo nortear o exercício profissional do enfermeiro e sustentá-lo em conhecimento científico (Souza, Silva, & Carvalho, 2010).
A revisão integrativa da literatura possibilita a combinação da investigação primária e secundária, após a avaliação da sua qualidade metodológica (Sousa, Firmino, Marques-Vieira, Severino, & Pestana, 2018) estando direcionada para a prática baseada na evidência, permitindo a inclusão das evidências nos contextos práticos com segurança (Vilelas, 2017). Na sua elaboração teve-se por referência as seis etapas preconizadas por Botelho, Cunha & Macedo (2011) correspondentes à determinação do tema de estudo, formulação da questão de investigação, determinação dos critérios de inclusão e exclusão, identificação dos estudos selecionados, categorização dos mesmos, análise e interpretação dos achados a incluir na revisão e apresentação da revisão/síntese do conhecimento produzido e publicado.
Delineou-se como questão norteadora do estudo:
“Quais as orientações atuais sobre o jejum pré-operatório em clientes submetidos a cirurgia eletiva, publicadas nos últimos cinco anos?”, com recurso à estratégia PICO. Neste estudo os participantes (P) são os clientes submetidos a cirurgia eletiva (pacientes), a intervenção (I) que diz respeito ao jejum pré-operatório; a comparação (C), não é aplicável no estudo, e os resultados (outcomes) relativos às orientações (cuidados pré-operatórios). A colheita de dados ocorreu durante o mês de fevereiro de 2020 nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), PubMed e plataforma EBSCOhost WEB onde se englobaram a Academic Search Complete, CINAHL Complete, CINAHL Plus with Full Text, MedicLatina, MEDLINE e MEDLINE with Full Text, com recurso aos descritores “fasting”, “preoperative care”, “patients” e “nursing” também em Língua portuguesa e espanhola. A frase booleana do estudo foi “fasting” AND “preoperative care” AND “patients” AND “nursing”. Os critérios de inclusão definidos na pesquisa foram publicações nos idiomas de português, inglês e espanhol, no período de janeiro de 2015 a janeiro de 2020 e disponíveis em texto integral. Como critérios de exclusão, delinearam-se os estudos referentes à população pediátrica.
Da pesquisa elaborada resultaram 38 artigos. Numa primeira fase, procedeu-se a uma leitura crítico- reflexiva dos títulos por dois investigadores, seguindo- se a leitura dos resumos e estudos encontrados, por três investigadores de forma independente.
Atendendo aos critérios de inclusão e exclusão e à avaliação da qualidade metodológica estabeleceu-se uma amostra de 10 artigos. A figura 1 apresenta o procedimento de seleção dos artigos a analisar, segundo a metodologia PRISMA (Galvão, Pansani, & Harrad, 2015).
Processo redutivo da revisão integrativa
Com o intuito de facilitar a análise de cada artigo, optou-se pela identificação, tradução e transcrição de todos os aspetos relacionados com o jejum pré-operatório. De forma a organizar a informação extraída dos artigos, elaborou-se uma tabela que permitiu a identificação e revisão das categorias relacionadas com a temática em estudo. A tabela 1 apresenta os estudos selecionados para análise.
Resultados
A amostra foi constituída por dez artigos: dois artigos foram desenvolvidos na Turquia, dois nos Estados Unidos da América, dois no Reino Unido e um no Quénia, Chile e Omã. Todos os artigos foram publicados no idioma inglês com exceção de um que se encontrava em língua espanhola. Relativamente ao ano das publicações, observamos maior incidência no ano de 2017 com quatro artigos, seguido de 2016 com três publicações e 2015, 2018 e 2019 identificámos apenas, em cada ano, uma publicação.
No seguimento dos resultados encontrados, com a análise realizada aos artigos selecionados, organizamos os dados em três macrocategorias: orientações sobre o jejum pré-operatório; ganhos inerentes à implementação das orientações sobre o jejum pré-operatório e por fim, fatores dificultadores da implementação das orientações sobre o jejum pré-operatório.
Orientações sobre o jejum pré-operatório
Em oposição aos pressupostos do paradigma do NPO que alegavam contribuir para a minimização do risco de broncoaspiração, surgiram estudos que revelam que o esvaziamento gástrico de alimentos sólidos ocorre por volta de uma hora após a refeição (Maqbali, 2016) tornando-se desnecessário tempos prolongados de jejum. Por outro lado, Çakar, Yilmaz, Çakar, & Baydur (2017) revelam que a ingestão de líquidos até duas horas antes da intervenção cirúrgica não aumentou o volume gástrico e a acidez do suco gástrico, pelo que não implicou um aumento do risco de aspiração pulmonar.
Por outro lado, o recurso a bebidas ricas em carboidratos a anteceder o momento cirúrgico tem constituído uma recomendação a introduzir nos protocolos sobre o jejum pré-operatório contemplando a ingestão destes suplementos até duas horas antes da cirurgia (Noba & Wakefield, 2019; Tosun, Yara & Açikel, 2015).
Vários autores defendem que o tempo de esvaziamento destas bebidas é cerca de noventa minutos, não trazendo aumento do risco de broncoaspiração, além de diminuir a resistência à insulina (Noba, & Wakefield, 2019; Çakar, Yilmaz, Çakar, & Baydur, 2017).
Neste contexto, os achados encontrados vêm sustentar o proposto pelo protocolo ERAS (2005) que indicava a ingestão de alimentos sólidos integrados numa dieta leve até às seis horas prévias à cirurgia e de líquidos como chã, café, sumos de fruta sem polpa nas duas horas que antecedem a intervenção. Importa ainda referir a possibilidade de se optar pela ingestão oral de 400ml de água com maltodextrina a 12,5% até duas horas antes de um procedimento cirúrgico eletivo, mesmo em clientes diabéticos tipo 2 com valores glicémicos controlados.
No que concerne à pessoa com aporte de nutrição entérica, Powers (2017) afirma que o período de suspensão da mesma deve ser limitado ao mínimo possível, não havendo um aumento nos eventos adversos entre os clientes que suspenderam a nutrição entérica no momento anterior à anestesia e os que tinham efetuado suspensão oito horas antes.
Ganhos inerentes à implementação das orientações sobre o jejum pré-operatório
Esta revisão da literatura permitiu perceber que existe unanimidade nos estudos sobre os ganhos inerentes à aplicação das orientações sobre o jejum pré- operatório, tanto para a pessoa intervencionada como para a instituição de saúde onde se realiza a cirurgia, pois, cumprindo as guidelines inerentes a esta temática, concorremos para a redução de complicações pós-operatórias e a manutenção do tempo de internamento do doente, dentro daquilo que é o expectável. Por outro lado, no que concerne ao exercício profissional do enfermeiro a existência deste tipo de orientações permitir-lhe-á a conceção e execução de cuidados centrados no cliente, respondendo assim às suas reais necessidades.
Neste contexto, os clientes submetidos a jejum prolongado estão predispostos a alterações no seu bem-estar físico e psicológico. A existência de eventos como o stresse, a desidratação, a hipotensão, as cefaleias, a irritabilidade, a ansiedade, a fome, a sede, a xerostomia, a fadiga, a perda de fluídos durante a cirurgia potenciará o agravamento da desidratação na fase pós-operatória. Por outro lado, o jejum pré-operatório prolongado potência situações de desequilíbrio hidroeletrolítico, contribuindo para a ocorrência de náuseas e vómitos no pós-operatório (Çakar, Yilmaz, Çakar, & Baydur, 2017).
Constatou-se assim que a diminuição do jejum pré-operatório para o intervalo de tempo recomendado produz uma diminuição da fome, sede, cefaleias, desidratação, hipovolémia e náusea em comparação com o paradigma anterior. Concorre também para a diminuição da resistência à insulina, das náuseas e vómitos e do desconforto após a intervenção cirúrgica (Tosun, Yara & Açikel, 2015). Por outro lado, reduz
risco de desidratação, náuseas e vómitos pós-operatórios, fome, sede e o desconforto físico e psíquico da pessoa (Noba, & Wakefield, 2019; Çakar, Yilmaz, Çakar, & Baydur, 2017).
Noba, & Wakefield (2019) e Çakar, Yilmaz, Çakar, & Baydur (2017) corroboram os achados anteriores, acrescentam ainda que tem benefícios moderados na redução do tempo de internamento hospitalar e no consumo de terapêuticas farmacológicas em clientes que cumpriram as recomendações atuais com impacto nos custos associados para a instituição de saúde.
Fatores dificultadores da implementação das orientações sobre o jejum pré-operatório
O processo relativo à implementação das orientações associadas ao jejum pré-operatório têm sido alvo de diversos obstáculos. A informação veiculada ao cliente e como é interpretada tem sido descrita como uma barreira ao correto cumprimento destas orientações, na medida em que a mesma pode não ser transmitida na totalidade pelos profissionais de saúde, ou não é suficientemente clara para permitir ao cliente a sua perceção e aplicação rigorosa na fase de preparação cirúrgica (Short et al., 2016).
A inexistência de protocolos nas instituições de saúde com referência às orientações atuais sobre este tema tem gerado um desalinhamento na forma de atuação dos diversos profissionais de saúde. Por outro lado, de acordo com Munsterman & Strauss (2018) e Maqbali (2016) foi notória uma incompreensão e renitência na aplicação das orientações mais atuais sobre o jejum pré-operatório por parte de todos os envolvidos. Outras razões são apontadas por Njoroge, Kivuti-Bitok, & Kimani (2017) como limitadores à implementação destas orientações: a sobrecarga de trabalho dos profissionais, a escassez de tempo para a capacitação do cliente sobre as especificidades deste cuidado e a resistência à mudança de orientações.
Discussão
É conhecido que a pessoa que vai ser submetida a cirurgia, em particular do foro digestivo, se encontra frequentemente desnutrida e desidratada, além de possuir patologias respiratórias, circulatórias e metabólicas variadas que constituem um risco acrescido de má cicatrização, alteração nas anastomoses, infeções pós-operatórias com aumento da morbilidade e mortalidade pós-operatória (Lucchesi, & Gadelha, 2019). Assim sendo, justifica-se fortemente a necessidade de otimizar a condição da pessoa na fase pré-operatória para reduzir estes riscos. A necessidade de se eliminar barreiras instaladas, no que respeita ao jejum prolongado nos clientes submetidos a cirurgia e praticados sem sustentação científica na prática diária é premente. Vários autores defendem como imperioso a alteração de intervenções de forma a que o consumo de alimentos sólidos seja realizado até seis horas antes do procedimento, e de líquidos até duas horas antes, introduzindo-se ainda o fornecimento de suplementos carboidratados (Diógenes, Costa, & Rivanor, 2019; Campos, Barros-Neto, Guedes, & Moura, 2018), contemplando o ajuste do seu início, mediante a hora da cirurgia (Diógenes, Costa, & Rivanor, 2019) e de acordo com patologias de cada cliente. Desta forma, os cuidados direcionam-se para as necessidades individuais de cada cliente, contribuindo para minimizar possíveis sentimentos de stresse e angústia, vivenciados pelo cliente, associados ao evento pelo qual irá passar. Na verdade, estas mudanças nos contextos da prática permitem a obtenção de ganhos para a pessoa intervencionada ao nível físico e psicológico, de que é exemplo a diminuição das complicações pós-operatórias e a recuperação mais precoce, assim como para a instituição de saúde, nomeadamente a redução do tempo de internamento. O empoderamento dos profissionais de saúde sobre estas temáticas torna-se uma ferramenta indispensável para a adoção correta das orientações emanadas (Santo et al., 2020), permitindo também o envolvimento dos clientes, neste processo, e levando ao sucesso na implementação de tais orientações. Efetivamente, os enfermeiros têm um papel diferenciador em todo este processo, dada a sua proximidade com o cliente (Chaves, & Campos, 2019), permitindo um maior nível de eficiência na prática de cuidados (Silva et al., 2019). Cabe ao enfermeiro desmistificar a ideia presente no contexto social, e fortemente enraizada, de que o jejum deverá ser a partir das zero horas do dia da cirurgia (Diógenes, Costa, & Rivanor, 2019), através da consciencialização do cliente sobre este procedimento pré-operatório.
Por outro lado, o facto de terem um papel de destaque no processo de cuidados dos clientes, permite-lhe a criação de normas que aliem a melhor evidência com as especificidades logísticas e organizacionais de cada serviço/instituição (Santo, et al., 2020).
Assumimos que a baixa flexibilidade e motivação dos profissionais para a mudança de práticas é um fator contributivo para, ainda hoje, em se manter desatualizadas as orientações, além do envolvimento insuficiente dos serviços no desenvolvimento da prática baseada na evidência.
Corroborando Miguez, Silva, & Oliveira (2019), apelamos à existência de normas sobre este tema para direcionar uniformemente a prática dos profissionais de saúde, dado que em grande parte dos serviços hospitalares encontram-se desajustados do conhecimento atual, perpetuando o conceito NPO após as zero horas do dia da cirurgia.
No nosso estudo, uma das limitações prendeu-se com a ausência de investigações da realidade portuguesa, não a permitindo conhecer, no que concerne às recomendações associadas ao jejum pré-operatório. A atuação do enfermeiro ficará dificultada na eliminação de lacunas da prática diária que geram prejuízos ao cliente e instituição. Sugere-se a realização de estudos no contexto nacional que relacionem a aplicação das orientações descritas nesta revisão com a redução de complicações cirúrgicas e de que modo podem ser traduzidos em ganhos associados aos cuidados de saúde.
Conclusão
O jejum pré-operatório adequado à condição clínica do cliente deverá ser uma estratégia positiva capaz de minimizar o impacto das comorbilidades. Contribui também para a diminuição de complicações operatórias, do período de hospitalização, a redução dos custos em saúde e o aumento da sua satisfação em relação aos cuidados de saúde. As orientações para a implementação do jejum pré-operatório preconizam uma redução do período de abstinência para alimentos sólidos e líquidos, respetivamente, até seis horas e duas horas antes da cirurgia, além do recurso a bebidas carboidratadas.
No desempenho profissional do enfermeiro deverá ser tido em conta as contribuições deste estudo, na medida em que constitui uma base na sistematização dos cuidados de enfermagem direcionados ao cliente, enaltecendo o papel dos enfermeiros, através da melhoria contínua dos cuidados de enfermagem, com ganhos para o cliente e para a instituição.