Introdução
Os enfermeiros desempenham um papel central e crucial na saúde das pessoas e comunidades. De acordo com Spiegel, Gonene & Weber (2014) os profissionais de saúde durante as suas funções são responsáveis pela vida ou morte das pessoas e por isso eles próprios podem sofrer consequências na sua saúde derivadas desta exposição. Caso esses enfermeiros sejam portadores de problemas/preocupações com a sua saúde, dificilmente estarão prontos a cumprir de forma efetiva as exigentes tarefas inerentes à sua profissão (South African Department of Health, 2003). Por este motivo cuidar de quem cuida deve ser uma preocupação/obrigação das Instituições de saúde.
A saúde física e mental dos trabalhadores não depende apenas das suas tarefas, mas também do número de horas que trabalham e do tipo de horário que praticam (Totterdell, 2005). Nos últimos tempos tem-se verificado um aumento da sensibilidade e consciencialização da relação entre a saúde e o trabalho (Black, 2012). É possível que esta correlação se justifique também pelo aumento na complexidade da organização do tempo de trabalho. A Enfermagem foi classificada, pela Health Education Authority, como a quarta profissão mais stressante no setor público (Murofuse, Abranches & Napoleão, 2005). Além disso, alguns tipos de horários de trabalho têm uma maior probabilidade de causar problemas, como é o caso do trabalho por turnos e noturno (que caracterizam a maior parte dos horários desempenhados por enfermeiros). Por isso, é necessário refletir e perceber sobre quais são as suas consequências para a saúde. Assim, o objetivo desta revisão da literatura foi avaliar o impacto do trabalho por turnos na saúde dos enfermeiros.
Procedimentos metodológicos de revisão
De forma a responder à questão de investigação PICO “Qual o impacto do trabalho por turnos na saúde dos enfermeiros?”, os autores recorreram às bases de dados MedLine e CINAHL, no período entre 21 e 28 de fevereiro de 2020. Não foram incluídos estudos de outras pesquisas livres por não cumprirem os critérios de inclusão. Na primeira base utilizada (MedLine), foram introduzidos os termos de pesquisa em inglês e encontrados os seguintes Descritores: Nurs*, ShiftWork e Health. Posteriormente, foram utilizadas combinações de descritores através do operador booleano “AND”, resultando na seguinte frase de pesquisa:((shift[Title/Abstract] AND work[Title/Abstract]) AND nurs*[Title/Abstract]) AND health[Title/Abstract]. A pesquisa foi replicada na CINAHL, usando a mesma frase.
Os critérios de inclusão e exclusão dos estudos foram definidos com base na população, contexto, língua, data da publicação e características do artigo. Como critérios de inclusão, foram selecionados artigos publicados nos últimos 5 anos, por uma questão de atualidade atendendo à imensa bibliografia publicada anualmente, que retratassem o desempenho de enfermeiros num contexto de trabalho por turnos, avaliassem o impacto na sua saúde, com qualquer tipo de desenho para uma maior abrangência, em texto integral e de acesso gratuito, assim como em línguas Portuguesa, Castelhana ou Inglesa. Como critérios de exclusão, artigos duplicados, que não respondessem à questão de investigação ou que estivessem publicados em outras línguas que não as acima referidas. Da pesquisa resultou a identificação de 50 artigos, sendo removidos 11 que se encontravam duplicados. O processo de identificação e seleção dos artigos pode ser verificado na Figura 1. Primeiramente foi realizada uma leitura crítica e reflexiva dos títulos e resumos, com o objetivo de excluir os que não respondiam aos critérios de inclusão da qual resultaram 12 artigos que foram sujeitos a leitura integral pelos três revisores, tendo-se extraído quatro para análise e obtenção de informação final.
O processo de avaliação da qualidade metodológica dos artigos foi realizado de forma independente por três revisores utilizando o MINORS - Methodological Index for Non-Randomized Studies. Slim et al. (2003) referem que esta escala tem dois atributos importantes: primeiro, a sua simplicidade, pois compreende apenas oito ou doze itens facilmente utilizáveis, e em segundo, a sua confiabilidade. Na Tabela 1, reuniram-se dados
relativos aos artigos selecionados (Hall, Franche & Koehoorn, 2018; Giorgi, Mattei, Notarnicola, Petrucci & Lancia, 2018; Jaradat, Nielsen, Kristensen & Bast-Pettersen, 2017; Anbazhagan, Ramesh, Nisha & Joseph, 2016) e à metodologia utilizada: identificação do estudo, objetivos do estudo, método, número de participantes e principais conclusões. De forma a facilitar a interpretação os diferentes artigos foram codificados como Estudo (E) pela ordem que surgiram no momento da pesquisa nas bases de dados (E1 a E4).
Resultados e discussão
Segundo Costa (2003), o trabalho por turnos aumenta o risco de desenvolver problemas de saúde, principalmente do âmbito mental, derivado da maior irregularidade nos horários de trabalho. Neste tipo de organização do tempo de trabalho, grande parte dos problemas experienciados, deve-se à inversão do ciclo sono-vigília e ao desfasamento entre a organização do tempo social e certos horários de trabalho (Silva, Prata & Ferreira, 2014). Dentro dos problemas de saúde associados ao trabalho por turnos, especialmente no trabalho noturno, os principais indicadores de uma deterioração da saúde são os problemas de sono provocados pela interrupção dos ritmos circadianos (dificuldade em adormecer, sono curto e sonolência), a fadiga, os distúrbios digestivos, cardiovasculares (hipertensão arterial) e gastrointestinais e os problemas psicológicos, como o stress e depressão (Costa, 2003). Os enfermeiros são mais suscetíveis ao Burnout do que outros profissionais de saúde devido ao seu relacionamento interpessoal próximo com clientes (Trbojević-Stankovićet al., 2015).
Os resultados apresentados foram subdivididos por áreas temáticas (o trabalho por turnos relacionado com: alteração do sono, saúde mental, alterações metabólicas e satisfação profissional) de forma a expor os dados recolhidos, interligando-os entre os diferentes artigos, para melhor sistematização dos mesmos. Estas áreas temáticas eram transversais à maioria dos estudos pelo que se atende a estes indicadores individualmente:
Trabalho por turnos e alteração do sono
A Perturbação do Trabalho por Turnos (PTT) é um distúrbio de sono caracterizado por queixas de insónia ou sonolência excessiva, diretamente relacionado com o horário de trabalho da pessoa (International Classification of Sleep Disorders, 2005). Num estudo realizado na Índia (Anbazhagan, Ramesh, Nisha & Joseph, 2016), cujo principal objetivo era avaliar a prevalência de PTT nestes profissionais e identificar quais os problemas de saúde a ele associados, para posteriormente poderem ser planeadas medidas para melhorar a qualidade de vida, foi encontrada uma prevalência de PTT de 43%. Este valor foi consistente com resultados obtidos num estudo anterior realizado na Noruega por Flo et al. (2012). Neste, foi verificada uma associação estatisticamente significativa entre a presença de PTT e o aumento da idade assim como o maior número de noites realizadas. Estes dados vão ao encontro da revisão de Woo & Postolache (2008), onde esta perturbação tem sido observada durante e após o trabalho por turnos, mas também está diretamente associado à duração da exposição. Existem evidências que demonstram efeitos negativos na qualidade do sono (insónia e sonolência excessiva) e níveis elevados de fadiga, contribuindo para o aumento do absentismo por baixa médica (Anbazhagan, Ramesh, Nisha & Joseph, 2016). Um estudo realizado por Ruggiero (2003) mostrou maior prevalência de depressão e baixa qualidade do sono nos enfermeiros que realizam turnos noturnos, quando comparados com o horário diurno. Um estudo realizado em Itália (Giorgi, Mattei, Notarnicola, Petrucci &Lancia, 2018) teve por objetivo analisar a relação entre distúrbios do sono, Burnout e desempenho no trabalho, em enfermeiros que trabalhavam por turnos. Concluiu-se que, tanto a qualidade do sono e o Burnout se correlacionavam positivamente com o trabalho por turnos, ou seja, quantos mais turnos realizados, menor a qualidade do sono obtida, sendo essa correlação mais significativa no género feminino. Alguns estudos anteriores já evidenciavam a presença de sono prejudicado (Camerino et al.,2010), de Burnout (Weishan, Yue Leon, Yu-Ju, Chiu-Yueh & Judith, 2015) e absentismo laboral (Lamontet al., 2017). De acordo com Chin,Guo, Hung, Yang & Shiao (2015), quando comparados os enfermeiros que conseguiam manter diariamente horários de sono regulares (sete horas ou mais) com os que tinham horários de sono irregulares, estes últimos apresentavam risco mais elevado de Burnout. Segundo Rebelo (2013), o Burnout surge, principalmente, em profissões de serviços humanos, nomeadamente que exigem cuidados, como por exemplo na área da saúde. Santos citando Maslachet al. (2015), caracteriza Burnout como um estado de fadiga física, emocional e mental. Também para Vidotti et al. (2018), o Burnout é um fenómeno psicossocial emergente entre os enfermeiros, devido ao complexo ambiente de trabalho em que se encontram inseridos. Neste estudo, 52% da amostra apresentava baixa qualidade do sono. Num estudo realizado por Fadeyiet al. (2018), turnos rotativos estavam associados ao aumento do nível de índices fisiológicos de stress, bem como comprometimento do sono (sono pouco reparador, insónia e sonolência excessiva diurna) em cerca de metade dos participantes. Os dados foram obtidos através de um questionário que compreendia, entre outros, a aplicação da PSQI (Pittsburgh Sleep Quality Index) e do CBI (Copenhagen Burnout Inventory). Os autores referem, como principal limitação do estudo, o facto da amostra, apesar de representativa da população, poder não permitir a generalização dos dados obtidos.
Trabalho por turnos e saúde mental
Entre os artigos selecionados os autores verificaram que no âmbito da saúde mental, tanto a depressão como o Burnout são os problemas que se destacam no que diz respeito ao trabalho por turnos. A ansiedade e depressão foram encontradas em 18% e 23%, respetivamente, e 54% dos enfermeiros apresentavam problemas de sono (sono pouco reparador, insónia e sonolência excessiva diurna) (Anbazhagan, Ramesh, Nisha & Joseph, 2016). Segundo a Organização Mundial de Saúde (2017) a Depressão é uma perturbação mental caracterizada por tristeza, perda de interesse ou prazer, sentimentos de culpa ou baixa autoestima, perturbações do sono ou do apetite, sensação de cansaço e baixo nível de concentração. Para Woo & Postolache (2008), o trabalho por turnos contribui para desenvolver ou agravar os distúrbios do humor, principalmente em indivíduos vulneráveis. Um estudo no Canadá (2018), que tinha como principal objetivo investigar a relação entre o trabalho por turnos e a depressão, concluiu que os enfermeiros expostos a variações rápidas de turnos apresentavam mais sintomatologia depressiva quando comparados com enfermeiros a desempenhar funções em horário fixo (horário diurno e noturno exclusivo). Rossler (2012) identificou a carga de trabalho e o trabalho por turnos como as principais características laborais que podem desencadear problemas mentais nos enfermeiros, como a depressão. O estigma associado à doença mental pode ter originado uma menor descrição dos sintomas depressivos por parte dos participantes, constituindo um viés já identificado noutros projetos relacionados com a saúde da população geral (O’Donnell, 2016).
Foi publicado em 2017 um estudo realizado na Palestina para averiguar a relação do trabalho por turnos com o Burnout e a satisfação profissional.
Apesar do aumento do número de estudos sobre o trabalho por turnos, pouco é conhecido sofre os efeitos negativos na saúde mental (Jaradat, Nielsen, Kristensen & Bast-Pettersen, 2017). Tendo em conta o elevado número de enfermeiros do sexo masculino que participaram no estudo (40%), foram aferidas conclusões sobre o efeito do género.
Para avaliar a doença mental foi utilizado o Questionário Geral de Saúde (QHQ-30) e para avaliar a satisfação profissional foi usada a Escala Genérica de Satisfação Profissional. De acordo com o estudo, os enfermeiros que trabalham por turnos reportam níveis mais elevados de problemas mentais e menor satisfação profissional. Não há evidência sobre a relação entre diferentes géneros e o trabalho por turnos, contudo, as mulheres que trabalham por turnos apresentam níveis superiores de problemas mentais, quando comparadas com mulheres que trabalham em horários diurnos regulares. Num estudo realizado por Scott, Monk & Brink (1997), concluíram que o trabalho por turnos de forma prolongada no tempo (mais de 20 anos) é um fator de risco para depressão, particularmente entre as mulheres. Os dados foram obtidos através de depoimentos, o que pode tornar os resultados suscetíveis ao viés e influenciar as associações, sendo recomendadas mais pesquisas sobre os efeitos da frequência da rotação de turnos na depressão.
Trabalho por turnos e alterações metabólicas
Relativamente aos problemas de saúde associados ao trabalho por turnos, citam-se cefaleias, lombalgias, gastrite e distúrbios menstruais como queixas mais comuns (Anbazhagan, Ramesh, Nisha & Joseph, 2016). Costa (2003) refere que os principais indicadores de deterioração da saúde são os problemas de sono (dificuldade em adormecer, sono fragmentado), a fadiga, os problemas cardiovasculares (aumento do risco de enfarte do miocárdio e doença isquémica) e gastrointestinais (alterações do apetite), os sintomas psicológicos (ansiedade, depressão) e os distúrbios alimentares (ingestão alimentar excessiva). Neste estudo 45% dos enfermeiros também referiram um maior consumo de cafeína e bebidas energéticas. Estes resultados foram obtidos através de um questionário a enfermeiros que trabalham por turnos (incluindo noturno). Foram excluídos os que não faziam turnos noturnos o que impediu uma comparação entre os diferentes tipos.
Os enfermeiros prestam cuidados 24 horas por dia, todos os dias da semana. O trabalho por turnos tem sido associado a diversas alterações nas funções biológicas, que conduzem a problemas físicos e mentais (Vidotti, Ribeiro, Galdino & Martins, 2018). Segundo Knutsson (2003), estes sintomas podem desaparecer ou atenuar com uma melhor organização do horário de trabalho, atribuição de períodos de descanso que respeitem os ritmos biológicos dos trabalhadores, bem como a sua vida social, e um número de dias de férias que reflita a penosidade da profissão.
Trabalho por turnos e satisfação profissional
Identificou-se, também, uma relação entre a rápida rotação de turnos e a precariedade laboral. Estes achados são consistentes com os resultados de outros estudos, que estabelecem associação entre condições de precariedade e efeitos sociais negativos, contribuindo para o aumento de sintomas depressivos, stress e disrupção social (Quinlan, Mayhew & Bohle, 2001).Adicionalmente, homens que trabalham por turnos apresentam níveis inferiores de satisfação profissional, quando comparados com homens que trabalham em horários diurnos regulares; de acordo com Campos & Martino (2004), o trabalho por turnos é uma fonte de angústia e de insatisfação.
Conclusão
Os quatro artigos analisados revelam que os enfermeiros que trabalham por turnos têm mais probabilidade de ter problemas de sono, fadiga, depressão e Burnout, quando comparados com os que têm um horário regular diurno. Há uma relação diretamente proporcional entre o número de noites realizadas por ano, períodos curtos de descanso entre turnos e a presença de PTT. O trabalho por turnos é um fator de risco para a depressão, com maior prevalência nas mulheres. Os enfermeiros do género masculino que trabalham por turnos relatam menor satisfação profissional quando comparados com os que tem horários regulares. Os enfermeiros com padrão de sono irregular têm maior probabilidade de desenvolver Burnout. Esta revisão tem como limitações: os artigos disponibilizados exclusivamente nas bases de dados utilizadas e apenas aqueles com texto completo disponível; três dos estudos analisados utilizam a metodologia transversal, a qual não permite inferir causalidade dessa exposição no desfecho avaliado. Os resultados destacam alguns fatores importantes para serem considerados em futuros estudos e pesquisas.
Do ponto de vista da saúde ocupacional, e tendo em conta que os enfermeiros não podem deixar de trabalhar por turnos, é imperativo serem implementadas medidas para melhorar a qualidade de vida dos enfermeiros e ajudá-los a lidar com o trabalho por turnos, como por exemplo, mudanças comportamentais para uma boa higiene do sono, reorganizar o planeamento do trabalho por turnos tendo em consideração o horário a realizar e o perfil dos enfermeiros, disponibilizar monitorização periódica da saúde dos trabalhadores e atenuar a iluminância dos postos de trabalho durante a noite.
É fundamental uma maior compreensão sobre os fenómenos da depressão e Burnout nos enfermeiros para que, no futuro, seja possível implementar medidas que previnam a instalação destes problemas.