O surgimento da pandemia de COVID-19, no início de 2020, está a ditar mudanças significativas na sociedade, a antecipar tendências, a alterar prioridades e a criar novos desafios que já se manifestam nos territórios, na reestruturação económica, cultural e social, nas medidas implementadas ao nível da administração pública ou na definição de novas estratégias para os destinos turísticos.
A disseminação global do novo coronavírus colocou Portugal num estado de emergência que se prolongou durante 45 dias e que provocou o bloqueio da maior parte das atividades. No momento em que é escrito este artigo (junho de 2020), Portugal encontra-se em fase de desconfinamento, tendo presente que os riscos da pandemia não estão resolvidos e são globais.
Em termos económicos, as estimativas da Comissão Europeia para 2020 apontam para uma quebra do Produto Interno Bruto (PIB) da zona Euro e de Portugal de 7,7% e 6,8%, respetivamente (CE, 2020). Por sua vez, a Organização Mundial do Turismo anunciou uma estimativa do impacto da pandemia, em que o turismo internacional deverá recuar entre 58 e 78% no ano de 2020 (OMT, 2020).
Embora o turismo seja um sector de grande resiliência, a atual crise afeta a generalidade dos países europeus, que são os principais mercados emissores de turistas para Portugal e bastam alguns dados para se perceber a dimensão deste sector a nível nacional. O turismo foi a maior atividade económica exportadora do país em 2019, responsável por 52,3% das exportações de serviços e 19,7% das exportações totais, tendo as receitas turísticas registado um contributo de 8,7% no PIB português (Turismo de Portugal, 2020).
Importa também recordar que o turismo foi decisivo para o país superar a crise da dívida soberana de 2008/09 e que desde essa data mantinha um crescimento contínuo, caracterizado por “uma maior diversidade de segmentos e modalidades, algumas destinadas a verdadeiros nichos de mercado. City breaks, turismo cultural, de negócios, de congressos, de saúde, de compras, entre muitos outros” (Barata-Salgueiro, 2017, p. 4). Neste contexto, as cidades reforçaram a sua atratividade e o turismo transformou-se num dos seus principais fatores de renovação.
A afirmação do turismo urbano no início da 2ª década do século XXI enquadra-se num contexto de híper-mobilidade turística associada à globalização. O produto city-break tornou-se mais acessível, estimulado pelo aparecimento das companhias aéreas low cost na Europa e por plataformas on-line de reservas de alojamento, como a Airbnb. Por outro lado, é também resultado da sua afirmação nas políticas de gestão urbana que se refletiu nos incentivos à reabilitação urbana, nas ações de requalificação do património e do espaço público, no marketing urbano e no crescimento da oferta cultural, conforme sintetizado por Barata-Salgueiro (2017).
Uma das principais consequências foi a revalorização das áreas centrais das cidades, tidas como mais genuínas e densas em termos culturais e patrimoniais, e que desde os anos 80 do séc. XX, no contexto de um “novo ciclo de urbanização, marcado pela utilização extensiva e alargada do território” (Pereira, 2004, p. 132) apresentavam uma perda sistemática de população que se traduziu numa desqualificação urbanística e num aumento de alojamentos e edifícios devolutos. No caso de Lisboa, de 1981 para 2011, Lisboa-cidade perdeu praticamente um terço da população e o número de alojamentos sem ocupante (exclui residências secundárias) aumentou 208% (Brito-Henriques, 2017). Os reinvestimentos nas áreas centrais têm sido seletivos, conforme evidenciado por Brito-Henriques (2017) e resultaram numa nova paisagem urbana, parcialmente requalificada, onde se destaca a alteração funcional de alojamentos e edifícios para alojamento local e o aumento da oferta comercial vocacionada para os visitantes.
À data do início da pandemia de COVID-19, os níveis de turismo urbano, embora economicamente benéficos e facilitadores da renovação das áreas centrais, estavam a criar questões sociais e ambientais relevantes. O debate estava nas formas das cidades lidarem com o excesso de turismo, considerando a contestação de moradores, os processos de gentrificação ou a necessidade de uma maior equidade territorial na distribuição dos benefícios. Por outro lado, ao crescimento do turismo urbano e das viagens internacionais baseadas em estadias curtas, estava associado um aumento da pegada carbónica deste sector.
Neste contexto e considerando os desafios impostos pela pandemia pretende-se, em seguida, refletir sobre um conjunto de princípios e medidas de dinamização do turismo urbano ao nível local.
Do ponto de vista organizacional, surge como prioridade, a configuração de um destino seguro na proteção e segurança contra infeções como a COVID-19, através da implementação e monitorização das medidas decretadas e recomendadas pelas entidades competentes nos diversos elementos que constituem o destino urbano. Podem ser desenvolvidas estratégias adicionais, como a uniformização da informação e os avisos em vários idiomas, a disponibilização de material e equipamentos de proteção e higiene ou a criação de equipas de apoio ao turista visando a manutenção das regras de higiene e segurança.
Ao nível da gestão de fluxos turísticos, destaca-se a utilização das infraestruturas digitais para monitorização de movimentos e comportamentos em áreas urbanas, uma tendência que se intensificou no combate e prevenção à pandemia. Com a devida salvaguarda da privacidade dos cidadãos, estas ferramentas podem ser utilizadas, na forma de apps, para informar em tempo real sobre o estado de ocupação dos principais atrativos turísticos, nomeadamente, monumentos, museus ou galerias, de forma a evitar uma afluência excessiva, acautelar distâncias de segurança e proporcionar aos visitantes a possibilidade de gerir o seu tempo de visita.
Também ao nível da gestão de fluxos turísticos, é oportuno desenvolver medidas de dispersão turística. Estas medidas constam do relatório “Overtourism? Understanding and managing urban tourism growth beyond perceptions” (UNWTO, 2018) que a Organização Mundial de Turismo lançou em 2018, com o principal objetivo de reduzir os constrangimentos da sobrecarga turística e que podem agora ser aplicadas como medidas de distanciamento social e de descongestionamento dos fluxos. São apresentadas diversas propostas, das quais se destacam, como exemplos, a expansão das experiências culturais pela cidade (arte, cinema, teatro, dança, música, performance) ou a dinamização de itinerários temáticos e novos atrativos em bairros periféricos. Para a implementação destas propostas, assume particular importância o tema da mobilidade, seja a rede de ciclovias, os percursos pedonais ou os transportes públicos.
Ao nível das atividades económicas, a diminuição acentuada da ocupação no alojamento local está a gerar um aumento de edifícios vazios. Em resultado, estão a surgir medidas de apoio à reconversão destas habitações para arrendamento de longa duração por parte dos municípios que assumem a recolocação destes ativos no mercado, a custos controlados. Note-se que o alojamento local continua a apresentar vantagens relativamente ao alojamento clássico, não só pelos motivos pré COVID-19, mas também por implicar menos contatos sociais durante a experiência turística, sobretudo no caso dos apartamentos e moradias. Ao nível do comércio e serviços, é decisivo apoiar a reformulação e criação de novos projetos empresariais, no sentido de uma maior diversificação da oferta, capaz de integrar a experiência turística, mas também mais vocacionada para a procura local, para os consumos digitais e para a economia circular.
Uma das tendências para a fase pós COVID-19 é o turismo criativo. Este é um tipo de turismo mais lento e no qual o turista é envolvido em experiências que proporcionam aprendizagens e interações com os saberes das comunidades que está a visitar. Estas experiências podem ser uma forma de reconexão social, de expressão e perceção sensorial desejável pelos indivíduos, devido ao isolamento continuado e à ausência de novos estímulos (Baptista, 2020). A par desta mais-valia, o turismo criativo pode potenciar permanências mais demoradas e é um fator de participação dos residentes, de salvaguarda das artes e ofícios e de dinamização das indústrias criativas.
Ao nível dos equipamentos culturais, uma tendência que fica é a maior utilização dos recursos digitais na difusão dos conteúdos culturais, permitindo que, nesta fase de transição, as instituições/equipamentos culturais possam propor uma estratégia mista de fruição (presencial e on-line) e uma resposta mais inclusiva e abrangente enquanto serviço público (Pires, 2020). Em termos turísticos, a disponibilização de conteúdos on-line, seja de arquivo, transmissões streaming ou aplicativos de realidade virtual, é um fator de promoção do destino e um complemento da visita in loco. Outra questão, ao nível dos equipamentos culturais, é a redução da lotação dos espaços com lugares marcados (teatros e cinemas, por exemplo) o que torna pertinente a adaptação de espaços públicos para a realização de espetáculos e outras atividades ao ar livre.
Destaca-se ainda a relevância da dimensão ecológica e dos espaços verdes e as suas funções essenciais, entre as quais é de sublinhar a preservação da biodiversidade, a aproximação da população à natureza e a promoção da saúde e do bem-estar (Sá, 2013). A fase de desconfinamento está a gerar maior utilização destes espaços o que pode resultar numa motivação acrescida, nas escolhas e na satisfação dos visitantes. Sugere-se o reforço e requalificação de jardins e parques e uma inclusão mais afirmativa dos mesmos nos itinerários turísticos, desempenhando, desta forma, a função de educação ambiental e de interpretação desses locais. Outra proposta é o desenvolvimento de políticas de incentivo às coberturas ajardinadas, não só pelas mais-valias funcionais de proteção da estrutura do edifício e reforço da biodiversidade urbana, mas também para criar novos atrativos e perspetivas da cidade.
Por último, destaca-se o papel que o urbanismo tático pode desempenhar, para um rápido ajustamento às novas necessidades. Também conhecido por urbanismo pop-up, ou urbanismo temporário, foi uma das principais tendências de revitalização urbana que surgiu na crise de 2008/09 atuando em situações de declínio e na configuração de novos atrativos, tanto comunitários como turísticos. O urbanismo tático centra-se na exploração e transformação de espaços expectantes, devolutos ou simplesmente subaproveitados, através de ações colaborativas e criativas que visam dotar a cidade de novas experiências, partilhas e estéticas. Inclui-se, por exemplo, a criação de lojas ou galerias temporárias, a transformação de espaços expectantes em locais de espetáculos ao ar livre, o alargamento ordenado das esplanadas em espaços públicos, a delimitação temporária de novas zonas exclusivas para pedestres ou a criação de novos atrativos de arte pública.
Num momento de enormes exigências, mas também de reflexão, este conjunto de princípios e medidas pode integrar programas de ação mais vastos que beneficiem o setor turístico e contribuir para uma transição dinâmica das cidades, na atual conjuntura.