I. Introdução
Em muitos países crivados pela pandemia, os discursos políticos e ações práticas de combate ao novo coronavírus SARS-CoV-2 não estão conseguindo equilibrar as respostas à emergência de saúde pública e às consequências econômicas. Mesmo nos epicentros da COVID-19, como Reino Unido, Espanha, EUA e Brasil, não foi possível gerir de forma conjunta e segura a crise sanitária e econômica. Este dilema, internalizado no pensamento político e em suas ações, tem uma dimensão geográfica a ser explorada, pois esta ciência nos ensinou que “economia é vida”, portanto, uma unidade que não deveria ser dicotomizada (Moreira, 2014). Além disso, com exceção das nações protagonistas no cenário internacional, a maioria dos países são invisibilizados pela grande mídia, e mesmo num mundo intensamente globalizado, marcado pelo desenvolvimento desigual do meio técnico-científico-informacional (Smith, 1988; Santos, 1996) é difícil acessar informações consistentes sobre a COVID-19 em muitos lugares.
Dada que esta crise é multiescalar e multidimensional (Haesbaert, 2020; Mello-Théry & Théry, 2020), territórios são afetados de diferentes maneiras, evidenciando injunções econômicas, políticas e territoriais, bem como combinações escalares bastante problemáticas. Neste sentido, é pertinente questionar: quais as particularidades de Timor-Leste, nação lusófona insular localizada no Sudeste Asiático/Ásia-Pacífico (Mendes, 2010), que contabilizava no início de junho um total de 24 casos recuperados e zero mortes? Sendo um país atravessado por inúmeras vulnerabilidades, quais as reais condições da economia e da vida lestetimorense no pós-pandemia? Buscaremos discutir os desafios da jovem nação a partir deste pressuposto geográfico articulado ao Hamutuk Ita Bele/Juntos todos podemos.
II. Injunções territoriais e as particularidades da COVID-19 na ilha
Ex-colônia portuguesa até 1975, quando foi invadido pela Indonésia numa ocupação genocida que durou 24 anos, Timor-Leste conquistou seu direito à autodeterminação e consequente independência no período conturbado conhecido como “Transição”, mediada pela ONU, entre 1999 e 2002 (Durand, 2010). Desde então, o país tornou-se dependente da ajuda financeira e técnica internacional e dos recursos advindos do petróleo, constituindo uma condição de dependência externa e baixa diversificação econômica, potencializadas por uma longa instabilidade política e inúmeras vulnera bilidades espaciais (Durand, 2010; Mendes; 2010; Cabasset-Semedo, 2015). É neste contexto que o novo coronavírus entra em Timor, com o primeiro caso confirmado no dia 21 de março de 2020, e a instauração do Estado de Emergência uma semana depois, demonstrando que a rápida medida de quarentena obrigatória e restrições espaciais foi uma atitude acertada considerando as limitadas condições hospitalares para o controle do vírus.
Dois meses depois, dados da Organização Mundial da Saúde para o período de 10 a 22/05/2020 mostraram uma expansão de 81,7% dos casos de COVID-19 no Sudeste Asiá tico, protagonizados pela Índia e Indonésia. No mesmo período, a crise em Timor já se encontrava estabilizada, com 24 casos confirmados e o mesmo número de curados, todos importados, 22 na capital Díli, sendo a curva da Covid-19 praticamente um pequeno e curto espasmo, dado o caráter pontual e concentrado da pandemia na ilha. Os casos foram isolados antes de chegarem às comunidades, evitando a denominada transmissão comunitária do vírus. Este cenário favoreceu discursos e pressões pró-flexibilização do Estado de Emergência, ainda que o atual Presidente Francisco Guterres Lu-olo e o Primeiro-Ministro Taur Matan Ruak tenham estendido o regime de exceção até 26 de junho de 2020. Abertura parcial da fronteira terrestre e maior circulação do transporte de mercadorias foram alguns pontos da pauta política.
A proximidade geográfica com a Indonésia - demarcada na fronteira terrestre e pelo enclave de Oécusse-Ambeno - justificou as preocupações, mas a questão central por trás da discussão política sobre a necessidade de prorrogar/flexibilizar o isolamento social rebatem nas limitações econômicas de Timor, dependente do petróleo, necessitando de turistas, e precisando fazer circular mercadorias e serviços (Cabasset-Semedo, 2015). O dilema lestetimorense é notável: tem a pandemia sob controle, mas não pode continuar a desenvolver-se por diversas razões: economia pouco diversificada; dinâmica financeira fortemente articulada às importações e exportações principalmente com a Indonésia, candidata a epicentro do coronavírus; dependente das receitas advindas do setor petrolífero, que passa atualmente por sequenciais crises de valor e de futuro. O turismo não pôde ser retomado porque não haviam turistas e as poucas companhias aéreas, AirNorth e Air Timor, tiveram que suspender todos os voos.
Do ponto de vista geográfico, seu território insular ainda marcado pelo isolamento contribuiu para o controle do vírus, já que Timor não integra os principais fluxos de mercados e capitais da Ásia. Internamente, com cerca de 25% da população total (1 183 643 habi tantes, de acordo com o Censo de 2015 (Diretório Geral de Estatísticas de Timor-Leste, 2020) concentrada na capital, somada as limitadas infraestruturas de transporte para os distritos do interior, o vírus também não conseguiu se propagar nas condições normais de densidade técnica. Cruzando os dados na data de referência 12/06/2020, Timor manteve-se com 17 casos por milhão de pessoas. Ressalvadas as proporções e a título de comparação, o Brasil alcançou 3812 casos por milhão (OMS, 2020). Segundo estatísticas da John Hopkins Coronavirus Resource Center para a mesma referência temporal, Timor se destaca inclusive entre os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (PEID’s), se comparado ao Haiti (3941 casos), Guiné-Bissau (1389 casos) e São Tomé e Príncipe (639 casos). Longe de reforçar qualquer tipo de determinismo, o isolamento geoeconômico, baixa densidade técnica e limitada dinâmica de mobilidade interna e regional colocaram Timor no ranking dos países com menos casos no mundo.
Tudo isso foi atravessado por uma prolongada crise política envolvendo flutuantes alianças partidárias para a construção de maioria no Parlamento Nacional, denúncias de atropelamentos de leis e violações constitucionais praticadas por algumas das lideranças políticas em meio a necessidade de aprovar o Orçamento Geral do Estado (OGE). Assim como o Brasil, Timor também vive em combustão política desde 2017, mas a crise política não tem contornos fascistas e a crise sanitária está sob controle. No entanto, o estrangulamento econômico impede as ações mais fundamentais, como o fortalecimento do sistema de saúde, proteção às famílias vulneráveis e apoio aos circuitos de fornecimento de produtos essenciais, como alimentos e medicamentos. Com uma economia fraca e alta dependência externa, suprir necessidades básicas demandam acordos econômicos costurados rapidamente, como o realizado junto a Austrália para obtenção de medicamentos e, recentemente com a China, para construção de um hospital.
III. Economia e vida no pós-pandemia: contribuições geográficas para o Hamutuk Ita Bele
Neste cenário desafiador, com a economia estagnada e o medo de novas contaminações, retomamos o Hamutuk Ita Bele/Juntos Todos Podemos, expressão popular que integra o imaginário cultural e político lestetimorense e pode ser compreendido como um senso coletivo de solidariedade para superar os obstáculos de ordem interna e externa. Apesar do histórico de colonialismos e invasões, o povo lestetimorense construiu o caminho da resiliência, inclusive no jogo geopolítico, e nesta pandemia vem praticando a solidariedade através da distribuição de alimentos e medicamentos para as famílias mais vulneráveis, demonstrando o protagonismo de mulheres e jovens na manutenção da estabilidade nacional. Ações de organizações não governamentais como a La’o Hamutuk, por exemplo, ajudaram a divulgar as recomendações sanitárias e números de emergência em diversos distritos. No entanto, a construção de redes de solidariedade deve superar atitudes espontâneas, envolvendo Estado, comunidades e economias locais. Articular saberes e territórios (Porto-Gonçalves, 2017; Sousa Santos, 2020) pode significar promover, no contexto lestetimorense: segurança alimentar, igualdade de gênero, acesso a educação e saúde, alternativas econômicas sustentáveis, acesso a energia, água e saneamento básico. No plano internacional, a solidariedade deve pressupor o compromisso contínuo das nações parceiras de Timor, como Indonésia, Austrália, China, Portugal e também o Brasil.
Com todos estes condicionantes de ordem política, econômica e geográfica, faz-se necessário apontar algumas alternativas para a vida e a economia no vir-a-ser do pós-pandemia. Priorizando a vida do povo timorense, a criação de um Fundo de Emergência Nacional sustentado a curto, médio e longo prazo, expansão qualificada do sistema de saúde e melhoria das condições de habitação são medidas urgentes para concretizar a imunidade coletiva, pois especialistas já indicam uma segunda e terceira onda de contaminação pelo novo coronavírus. A pandemia também vem demonstrando que Estados fortes, com instituições democráticas e alinhadas aos interesses e necessidades da população, são capazes de gerir uma crise de saúde evitando prejuízos econômicos astronômicos e minimizando a perda de vidas. Por isso que Timor precisa fortalecer e equilibrar sua governança política.
Com a previsão de retração do PIB em mais de 5% e as receitas petrolíferas em torno de 60%, promover a real diversificação econômica via desenvolvimento local é o grande desafio para um país que amarga taxa de desemprego em torno de 45%, e 41% da população abaixo da linha da pobreza (Cabasset-Semedo, 2015). Gás e petróleo produzem as maiores receitas, mas não geram empregos locais diretos. A produção de café, junto ao turismo e indústria, que permitem uma real articulação junto às comunidades de baixo rendimento, continuam secundarizados frente a hegemonia do petróleo, além de receber irrisórios investimentos (Cabasset-Semedo, 2015). Assim, o direito de exercer a autodeterminação, ou seja, de autogovernar-se defendendo a sua existência e a condição de independente, deve, como continuum, ser expandido e ressignificado para a tomada de decisões considerando todas as dimensões da sociedade lestetimorense, salvaguardando economia e vida de forma integrada, como aponta a geografia e suas contribuições para pensar o território em sua potência emancipatória (Porto-Gonçalves, 2017). Ainda que a globalização e as políticas neoliberais (Santos, 2000; Sousa Santos, 2020) suplantem o poder decisório e que integrar-se na Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) seja a solução, Timor precisa reforçar sua condição territorial com soberania e, ao manter o posicionamento democrático no plano geopolítico regional e resolver em definitivo as vulnerabilidades sociais internas, será capaz de combater não só novas pandemias como também novos colonialismos.