I. Introdução
A presente recensão centra-se na obra da antropóloga Anna Lowenhaupt Tsing. A autora é professora no Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia em Santa Cruz e tem sido reconhecida, ao longo da sua carreira, pelas suas contribuições para o enriquecimento de várias áreas do saber, tais como, as humanidades, as ciências sociais, as artes e as ciências naturais. O seu conhecimento e investigação, atribuem um caráter holístico ao presente livro.
Através de uma escrita criativa e integrada, a autora tem a capacidade de relacionar diferentes campos de interação da relação Humano-Natureza, que contribuem para o entendimento da sociedade e das relações sociais que se desenvolvem, com enfâse na questão da precariedade que assombra o estilo de vida atual.
A escrita criativa da autora transporta-nos para o meio de florestas em busca do cogumelo Matsutake, passando pela China, Japão, América do Norte e Finlândia, com o objetivo de sensibilizar o leitor para o processo regressivo da sociedade como um todo. Sempre com uma conotação positiva em relação ao presente e ao futuro, acreditando que é possível prosperar num mundo capitalista, criando, ou reforçando, uma aliança com a Natureza e emendando os erros do passado, fá-lo através da perspetiva de um cogumelo, contando histórias dos seus intermediários, que se desenvolvem em florestas destruídas e com claros sinais de influência antrópica.
A obra encontra-se estruturada em quatro partes, nas quais se desenvolve uma coletânea de entrevistas, memórias pessoais e histórias relatadas segundo a perspetiva da autora durante os anos da investigação que desenvolveu entre 2004 e 2011. Os capítulos são curtos e sem um encadeamento lógico aparente, uma provocação da autora que remete muitas vezes para um ato de reflexão e sensibilização sobre questões éticas e sobre a sociedade.
Nesta recensão procura-se elaborar uma análise crítica do livro, ao mesmo tempo que se expõem as principais ideias desenvolvidas, dando a entender como pode a sociedade coabitar com o ambiente, mesmo em momentos de ruína e colapso ecológico provocados pela busca incessante do “mais e melhor” que o capitalismo tanto celebra. Após esta introdução, a secção II desenvolve-se sobre as relações entre espécies, enquanto a secção III nos remete para questões de precariedade e Liberdade. Por último, na secção IV, aborda-se a questão do capitalismo seguindo a perspetiva do cogumelo Matsutake, protagonista desta história reflexiva e inovadora.
II. Relações multiespécies
Os entrelaçamentos nas manchas de paisagem que observamos, hoje, são o resultado da influência contínua da presença humana no meio natural ao longo da História. Tsing elabora um entendimento da “globalidade das coisas” a partir do exemplo das regiões envolventes do Pacífico, do seu papel no cenário global e de como os processos económicos, sociais e culturais modelaram as relações em três regiões-chave: Japão, Estados Unidos da América e Ásia-Pacífico.
No caso das florestas, uma parte significativa destes ecossistemas encontra-se hoje fragmentada e destruída, como consequência do forte impacto dos humanos, deliberada ou indeliberadamente desde o começo da exploração Industrial. Nas florestas de Oregon, nos Estados Unidos, esta destruição massiva contribuiu, no entanto, para o aparecimento de uma relíquia, o cogumelo Matsutake.
Esta relação contraditória é denominada como “diversidade contaminada” que “implica sobreviventes em histórias de ganância, violência e destruição ambiental” (Tsing, 2015, p. 33). Por outras palavras, e decifrando a analogia, apesar das ações intrusivas das pessoas, surge uma oportunidade única de liberdade para os sobreviventes de guerras e devaneios de motivações imperiais de origem capitalista. Porém, as próprias vítimas acabam por entrar no sistema: “(…) liberdade é a negociação de fantasmas numa paisagem assombrada” (Tsing, 2015, p. 91).
No meio do caos moderno, Tsing fornece ao leitor, por meias palavras, a confirmação de que a Natureza poderá sobreviver sem o ser humano, mas não o contrário. Estamos condenados a esta relação de simbiose. Desta forma, recorre à História para perceber como a sociedade capitalista altera profundamente os processos naturais. Exemplificado por Tsing quando explora a questão da indústria da madeira nas florestas do Norte da América durante o período Industrial, que implicou a conversão da Natureza em algo com valor monetário e produtivo para o Sistema a partir da instalação da monocultura de rápido crescimento, instalando-se assim um ciclo de “processamento” da paisagem e toda a história nela escrita.
É importante destacar que a obra remete para a consciencialização da urgência de mudança de mentalidade da sociedade, que assenta numa conceção de sobrevivência muito enraizada na “conquista e expansão”, alertando que devemos optar por uma mentalidade de “sobrevivência colaborativa” (Pham, 2017) e cooperativa. Não só numa relação Humano-Humano mas, também e com maior importância, no que diz respeito a uma relação Humano-Natureza. Nesta linha de pensamento, a autora desenvolve a questão da precariedade, muito relacionada com a ideia capitalista da individualidade e egoísmo generalizado, que se irá explorar de seguida.
III. Precariedade e liberdade
O desenvolvimento do modelo capitalista num mundo cada vez mais industrializado e globalizado alterou profundamente a forma como os países se interrelacionam, com uma clara demarcação entre os pobres e ricos. Neste sentido, os países ricos procuraram aumentar o seu lucro e poderio alcançando auto-suficiência que, por sua vez, alimentou o individualismo não só entre nações, mas também no seio das suas sociedades. É exemplificativo o Período Colonial, em que grandes nações europeias alienavam os povos indígenas das suas terras em busca dos seus recursos, com vista à obtenção de mais-valias. Um exemplo que serviu para a criação da fórmula da modernidade, onde conceitos como escalabilidade, acumulação selvagem, comodidade, estandardização, alienação e precariedade se tornam omnipresentes no dia-a-dia dos indivíduos.
A precariedade é um estado de reconhecimento da nossa vulnerabilidade perante os outros, afirma Tsing, e é nesta condição que, aparentemente, cada vez mais pessoas vivem, ou sobrevivem, presas no loop do capitalismo. Podemos observar, no livro em análise, a menção subliminar da criação e reformulação do valor do cogumelo, em que este entra e sai do sistema capitalista, ao longo do seu ciclo, através da atribuição de significado e valor pelos diferentes agentes de intervenção e modelação, sendo estes igualmente modelados pelas culturas, ideias e modos de estar e sobreviver que o imperialismo reformulou.
Remetendo, novamente, para o cogumelo, este floresce em momentos de condições “precárias”. Também a sociedade tem espaço para se reinventar num panorama de precariedade e ruína. A autora refere que, “este livro fala das minhas viagens com cogumelos para explorar a indeterminação e as condições de precariedade, ou seja, a vida sem a promessa de estabilidade” (Tsing, 2015, p. 2). É nessa instabilidade que o Matsutake prospera.
A precariedade é, porém, segundo os relatos e entrevistas ao longo da obra, uma forma, ou a única forma, de alguns grupos alcançarem o que entendem por “liberdade”, cujo significado difere nos vários grupos, como é descrito pela autora. Como exemplo, Tsing relata a vinda de emigrantes para os Estados Unidos, enquanto coletores de cogumelos Matsutake nas florestas do Estado de Oregon, onde encontram a sua liberdade “percebida”. É aqui que o conceito de liberdade diverge, esta é descrita como “um eixo de comunalidade e um ponto a partir do qual agendas específicas se dividem” (Tsing, 2015, p. 86). A liberdade dos americanos não é a mesma liberdade destes imigrantes.
IV. O capitalismo do cogumelo
Capitalismo é sinónimo de acumulação, aproveitando todo o tipo de recursos, como referido por Tsing (2015, p. 133): “o capitalismo é uma máquina de tradução para produzir capital de todos os tipos de meios de subsistência, humanos e não humanos”. Porém, o capitalismo não produz o principal ator deste modelo, a vida humana, o pré-requisito do trabalho.
Perante esta analogia, que acompanha toda a obra, o cogumelo enquanto simulador do mundo capitalista atual e possibilidade de revitalização perante panoramas adversos, a autora debate questões atuais, relacionadas com a industrialização, o consequente crescimento do capitalismo e a instalação da mediocridade dos postos de trabalho, que se mantém até aos dias de hoje e inclusive se afincou e perpetua.
Tsing descreve, ainda, três tipos de Natureza, a Primeira Natureza, relativa às relações ecológicas, a Segunda Natureza que inclui transformações do ambiente por via da capitalização, e, por fim, a Terceira Natureza, introduzida na obra como novidade e que corresponde a tudo o que se mantém vivo, apesar do capitalismo, podendo denotar-se nesta última o sentimento de esperança e positividade de Tsing.
Nesta positividade, existe um realismo que não podemos deixar de mencionar. A autora faz um excelente trabalho ao dar a conhecer a realidade que o próprio sistema, criticado e dissecado na obra, escondeu e processou, expondo a resiliência e adaptação possível num cenário alienígena e de catástrofe, onde, mesmo na ruína, se encontram soluções e se restauram relações outrora perdidas.