INTRODUÇÃO
A alergia alimentar afeta mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo e a sua prevalência está a aumentar nos países industrializados, devido, sobretudo, a alterações ambientais e socioeconómicas, hábitos alimentares e padrões de exposição polínica1-3. A alergia ao pêssego é a alergia alimentar mais frequente na idade adulta no Sul da Europa, incluindo Portugal4.
As proteínas de transferência lipídica (LTP) são panalergénios presentes em frutos, vegetais, sementes, látex e pólenes de árvores e ervas, pelo que reações de hipersensibilidade associadas a LTP podem ir muito além da alergia a alimentos vegetais1-7.
De acordo com a sua afinidade para os fosfolípidos, as LTP podem ser classificadas como específicas ou não específicas, sendo as últimas subdivididas em LTP-1 e LTP-2 consoante o seu peso molecular de 9-kDa e 7-kDa, respetivamente. Fazem parte de uma superfamília de proteínas, as prolaminas, que contém mais de 3000 proteínas e a sensibilização a LTP na bacia do Mediterrâneo é muito prevalente, com uma taxa que ronda os 70%1,5,6, estando maioritariamente envolvidos os frutos frescos (rosáceas e kiwi), os frutos secos e o amendoim. As LTP-1 são consideradas as proteínas alergénicas8-10.
A sua sensibilização pode acontecer por via oral, inalatória ou cutânea, com possibilidade de reatividade cruzada entre os vários alimentos de origem vegetal e entre estes e os pólenes. A presença de sintomas com dois ou mais alimentos, por sensibilização a LTP, é designada de Síndrome LTP3-7. Estudos anteriores encontraram uma associação entre alergia ao pêssego e sensibilização a pólenes de várias espécies taxonomicamente não relacionadas, como por exemplo Betula, Artemisia, Chenopodium, Plantago, Parietaria, podendo estar associadas a manifestações mais graves2,3,4. Os principais alergénios do pólen de Parietaria (Par j 1 e 2) pertencem à família LTP, bem como de Artemisia (Art v 3) e Olea (Ole e 7), bastante comuns na área do Mediterrâneo, pelo que é lícito considerar a possibilidade de uma ligação entre a sensibilização inalatória ao pólen LTP e alergia alimentar a LTP, nomeadamente como via de sensibilização primária a LTP4,11,12.
Os sintomas de sensibilização podem ser mais ligeiros e restritos à orofaringe - síndrome de alergia oral (SAO) - ou sistémicos, desde cutâneos, respiratórios, gastrintestinais, a anafilaxia, uma vez que as LTP são resistentes à temperatura e à pepsina, aumentando a probabilidade de absorção sistémica2,3,8,13.
As LTP apresentam maior concentração na pele dos frutos, sendo que a sua polpa tem uma concentração bastante inferior, pelo que alguns doentes toleram a ingestão destes alimentos sem pele. No entanto, a concentração de LTP varia conforme a cultivação e maturação dos alimentos, bem como com as condições de armazenamento dos mesmos1,14.
A Pru p 3 (LTP do pêssego) é a LTP mais representativa deste grupo de alergénios, sendo a causa de alergia alimentar mais comum em Espanha, Itália e Portugal associada a esta proteína5,6.
O diagnóstico é baseado numa história clínica detalhada, confirmação de sensibilização através da realização de testes cutâneos por picada (TCP) com extrato comercial dos alimentos suspeitos e da LTP do pêssego (Pru p 3) e com o alimento em natureza (TC PP), culminando com a confirmação por prova de provocação oral. No entanto, é considerado relevante complementar o diagnóstico com a avaliação in vitro das respetivas moléculas purificadas, nomeadamente o doseamento de IgE específicas, quer para o extrato nativo quer para os componentes moleculares, permitindo uma melhor interpretação e correlação clínica dos resultados. Desta forma, poder-se-á distinguir entre verdadeira sensibilização ou reatividade cruzada, fator bastante importante na alergia alimentar para evitar dietas restritivas15,16.
O objetivo do estudo foi caracterizar, através do método ALEX® MacroArray, o perfil clínico e molecular de sensibilização numa amostra de doentes com história de reação prévia a alimentos que contêm LTP.
MATERIAL E MÉTODOS
População e desenho do estudo
Foi realizado um estudo observacional retrospetivo, num hospital central, em que foram selecionados aleatoriamente soros de doentes com história de reação sistémica prévia a alimentos contendo LTP, nomeadamente frutos frescos, frutos secos e amendoim, seguidos na consulta de Alergia Alimentar.
Caracterização clínica
Os doentes foram caracterizados quanto a dados demográficos, sintomas e alimentos contendo LTP envolvidos na reação associada à sua ingestão e sensibilização nos TCP com extrato comercial e com o alimento em natureza.
Na maioria dos doentes foram realizados TCP com extrato comercial (Roxall®, Bilbao, Espanha) de Pru p 3 e dos alimentos suspeitos, incluindo amendoim, avelã, kiwi, maçã, pêssego, tomate e uva, bem como TC PP com estes alimentos em natureza, se TCP negativo. Em alguns doentes foram realizados TC PP com o mesmo fruto, ainda que já apresentassem o TCP positivo, de forma a poder ser avaliada a sensibilização a pele e polpa, cuja distinção nem sempre existe no extrato comercial. Nos doentes que não mantiveram seguimento não foi possível concluir o estudo. Foram, também, realizados em todos os doentes TCP com bateria de aeroalergénios: ácaros domésticos e de armazenamento, gramíneas selvagens e cultivadas, oliveira, parietária, artemísia, plátano, plantago, epitélios de cão e gato e fungos (Alternaria e Aspergillus).
Foi utilizado cloreto de sódio a 0,9% como controlo negativo e histamina 10mg/mL como controlo positivo. Os resultados foram lidos após 15 minutos e considerados positivos se o maior diâmetro da pápula fosse igual ou superior a 3mm17,18.
IgE total e IgE específica
Foi efetuado um ensaio enzimático colorimétrico através do método MacroArray Allergy Explorer - ALEX® (MacroArrayDX, Viena, Áustria) para avaliação, nas mesmas unidades (kUA/L) de valores de IgE total e IgE específica para componentes moleculares e para extratos totais, de acordo com as indicações do fabricante. O ALEX® é um teste multiplex in vitro que quantifica simultaneamente a IgE total e a IgE específica para 126 alergénios moleculares e para 156 extratos totais de alergénios (Quadro 1).
ALEX® - MacroArray Allergy Explorer; CCD - Determinantes de reatividade cruzada de hidratos de carbono
Os extratos totais dos alimentos com LTP incluídos no ALEX® são de maçã, kiwi, pêssego, avelã, amendoim, tomate e aipo; os extratos totais de pólenes com LTP são de Artemisia vulgaris e de Parietaria judaica. Dos alergénios moleculares dos alimentos com LTP fazem parte Mal d 3 (maçã), Act d 10 (kiwi), Pru p 3 (pêssego), Cor a 8 (avelã), Ara h 9 (amendoim), Sola l 6 (tomate), Api g 2 (aipo), Api g 6 (aipo) e Vit v 1 (uva); os alergénios moleculares de pólenes com LTP são Art v 3 (Artemisia vulgaris) e Par j 2 (Parietaria judaica).
Os diferentes alergénios e componentes estão acoplados numa membrana de nitrocelulose e são incubados em agitação, com uma solução de diluente e respetivos soros, durante 2 horas, ao fim das quais são extensamente lavados, sendo posteriormente adicionado o anticorpo (IgE anti-humana marcada com fosfatase alcalina) que é incubado mais 30 minutos. De seguida, é feito um novo ciclo de lavagem e adicionado o substrato enzimático e, posteriormente, a solução de paragem, ficando a reação completa.
A imunofluorescência de cada alergénio é medida por um software informático que a transforma em dados numéricos, sendo os intervalos de leitura os seguintes: <0,3kUA/L; 0,3-1kUA/L; 1-5kUA/L; 5-15kUA/L; e >15kUA/L15,16.
Análise estatística
A análise estatística foi executada com o software IBM SPSS® v.20. A análise descritiva incluiu a frequência de resultados positivos (em percentagem) para variáveis qualitativas e a média±desvio-padrão para variáveis quantitativas.
Foi calculado o valor do coeficiente de concordância kappa de Cohen (k) ajustado aos intervalos de confiança de 95%, sendo que os valores foram considerados significativos para p<0,05.
RESULTADOS
Analisamos um total de 15 doentes: 11 mulheres (73,3%). A média de idades na primeira consulta foi de 30,7±13,7 anos. Catorze (93,3%) doentes tinham antecedentes de atopia: 14 (93,3%) rinite alérgica, 6 (40%) asma e 4 (26,7%) eczema atópico. Todos os doentes apresentavam sintomas com pêssego, embora nem todos no primeiro episódio de manifestação da síndrome LTP.
O primeiro episódio de sintomas foi em média aos 21,8±10,5 anos e manifestou-se como anafilaxia em 8 (53,3%) doentes com a ingestão de pêssego (n=3), maçã (n=3), avelã (n=1) e noz (n=1); urticária e/ou angioedema em 4 (26,7%) doentes com a ingestão de pêssego (n=2), maçã (n=1) e amendoim (n=1); e SAO em 3 (20%) doentes com a ingestão de pêssego (n=1), amendoim (n=1) e maçã (n=1).
Os três doentes que tiveram SAO como primeira manifestação da síndrome LTP desenvolveram posteriormente reação sistémica, nomeadamente anafilaxia, com os mesmos alimentos. Todos os doentes tiveram reação imediata após a ingestão do fruto fresco/seco/amendoim, sendo que 9 (60%) apresentaram sintomas durante a ingestão, 4 (26,7%) apresentaram sintomas com um intervalo inferior a 30 minutos após a ingestão e em 2 (13,3%) os sintomas surgiram num intervalo superior a 30 e inferior a 60 minutos após a ingestão.
Os resultados dos testes in vivo com o extrato comercial e com o alimento em natureza encontram-se representados no Quadro 2, bem como a identificação dos sintomas e frutos envolvidos na primeira reação.
Na população em estudo foi identificada, através do método ALEX®, sensibilização às seguintes LTP de alimentos (N; IgEcm média±desvio-padrão - kU/L): Pru p 3, Ara h 9, Mal d 3, Act d 10, Vit v 1, Cor a 8 e Sola l 6, sendo a LTP do pêssego (Pru p 3) identificada em 100% dos doentes (15; 15,7±21,5), seguida do amendoim (Ara h 9) em 66,7% (10; 2,9±4), da maçã (Mal d 3) em 60% (9; 1,5±1,7), do kiwi (Act d 10) em 40% (6; 0,6±1), da uva (Vit v 1) em 40% (6; 1,8±2,5), da avelã (Cor a 8) em 26,7% (4; 0,1±0,2) e do tomate (Sola l 6) em 6,7% (1; 0,88). Foram também identificadas as seguintes LTP de pólenes (N; IgEcm média±desvio-padrão - kU/L): Art v 3 em 46,7% dos doentes (7; 1,5±1,1) e Par j 2 em 6,7% (1; 5,41).
SAO - Síndrome de alergia oral; TCP - Testes cutâneos por picada com extrato comercial; TC PP - Testes cutâneos por picada com alimento em natureza. Código de cores: cinzento-escuro - positivo; cinzento-claro - negativo; branco - não realizado
Os resultados da quantificação da IgE específica para o extrato total, componentes moleculares das LTP e IgE total encontram-se representados no Quadro 3. A análise dos testes in vivo e in vitro permitiu verificar que todos os doentes apresentaram teste cutâneo positivo para o pêssego, tendo sido a IgE específica para o extrato total de pêssego e componente molecular (Pru p 3) a que apresentou valores mais elevados, seguindo-se o amendoim e a maçã.
IgE - Imunoglobulina E; IgEet - Extrato total; IgEcm - Componente molecular; LTP - Proteína de transferência lipídica. Código de cores: branco - <0,3kUA/L (negativo); cinzento-claro: - 0,3-1kUA/L (nível IgE baixo); cinzento - 1-5kUA/L (nível IgE moderado); cinzento-escuro - 5-15kUA/L (nível IgE alto); preto - >15kUA/L (nível IgE muito alto); IgE total - cinzento-claro <100kU/L; cinzento-escuro - >100kU/L
Os doentes que tinham valores de IgE específica para Pru p 3 mais elevada (>15kUA/L) correspondiam a doentes que apresentaram reações sistémicas (urticária/angioedema n=2 e anafilaxia n=2) como primeira manifestação da síndrome LTP, bem como valores de IgE total mais elevados (>500kU/L).
O valor médio de IgE total foi de 430,5±799,9kU/L, com um valor mínimo de 28kU/L e máximo de 3115kU/L (Quadro 3). Relativamente à concordância (k) com a clínica, para o pêssego todas as associações obtiveram concordância k=1. A seguir, a combinação dos testes cutâneos com extrato comercial e com o alimento em natureza foi superior para a maçã (k=0,44, p=0,03), a IgE para extrato
total foi superior para o amendoim (k=0,87, p<0,01), e a IgE para componentes moleculares foi superior para a avelã (k=0,70, p<0,01) e para a uva (k=0,55, p=0,02).
DISCUSSÃO
Os alergénios alimentares pertencentes ao grupo da superfamília das prolaminas, das quais as LTP fazem parte, são importantes alergénios em sementes de plantas. No entanto, estas moléculas representam uma exceção, uma vez que têm sido isoladas em frutas, folhas, raízes e pólenes e a sua abrangência ultrapassa a alergia a alimentos vegetais. Tal evidencia-se no presente estudo, onde além das LTP dos alimentos, foram também identificadas LTP de pólenes em 8 doentes (Artemisia vulgaris em 7 doentes e Parietaria judaica num doente), demonstrando a possibilidade de reatividade cruzada8,12.
Neste estudo verificámos que a manifestação de apresentação mais frequente foi a reação sistémica grave (anafilaxia) em mais de metade da amostra (53,3%), sendo que as reações foram na sua totalidade imediatas, com mais frequência durante a ingestão do alimento causador, e estando o pêssego envolvido em todos os tipos de reação (ainda que nem sempre como primeira manifestação e com as diferentes gravidades), o que está de acordo com outros estudos publicados3-8,10,12.
Das LTP identificadas nesta amostra populacional, a sensibilização a Pru p 3 foi a mais prevalente (100% dos doentes), o que está de acordo com os dados existentes na literatura, que referem ser o pêssego o principal alimento envolvido na síndrome LTP. No entanto, é de realçar que também outros alimentos que contêm LTP foram responsáveis por reações, locais e sistémicas, na nossa população, demonstrando a variabilidade dos alimentos envolvidos na síndrome LTP e a elevada possibilidade de reatividade cruzada nesta grande família de alimentos Rosaceae9,13,14.
A quase totalidade dos doentes (93,3%) apresentava antecedentes de atopia, sendo a patologia mais frequente a rinite alérgica, o que está de acordo com o referido na literatura5,6,9,13. A tal facto se acrescenta a cossensibilização a LTP de pólenes em 53,3% dos doentes, podendo ter sido esta a via de sensibilização primária nestes doentes.
Observou-se uma elevada correspondência entre os resultados dos testes cutâneos com os da IgE específica para extratos totais e componentes moleculares na sensibilização aos alimentos maçã, pêssego e amendoim. Estes resultados também se verificaram noutros estudos, o que pode dever-se, não só à escolha de componentes moleculares potencialmente relevantes, mas também à utilização do mesmo imunoabsorvente e de inibidores de determinantes de hidratos de carbono (CCD), reduzindo o reconhecimento de IgE não específicas15,16. A maioria dos testes com alergénios de plantas ou insetos contém CCD, glicoepitopos capazes de partilhar homologias estruturais significativas com outras famílias de proteínas responsáveis por reatividade cruzada. Neste contexto, anticorpos IgE contra CCD reagem contra as proteínas que contenham estes epitopos, não apresentando, no entanto, significado laboratorial nem clínico, mas levando à identificação de falsos positivos em até cerca de 25% dos doentes19-24. O ALEX® é atualmente o único teste no mercado que oferece o bloqueio automático dos anticorpos anti-CCD, facilitando a verdadeira interpretação e aumentando a especificidade deste teste16.
É importante uniformizar e estandardizar os métodos diagnósticos o mais possível, de forma a que possa ser oferecido aos doentes o mais personalizado e adequado tratamento. As orientações internacionais indicam a história clínica, o exame objetivo e os testes cutâneos como os primeiros passos na marcha diagnóstica de todas as patologias alérgicas (ensaio de primeiro nível)15,18,23. Com o aparecimento da medicina de precisão foi possível evoluir para a deteção das IgE dos extratos totais e dos componentes moleculares (ensaios de segundo e terceiro níveis, respetivamente), de forma a ser possível distinguir entre verdadeira sensibilização ou reatividade cruzada. O método ALEX® é capaz de fornecer resultados de extratos totais de alergénios (ensaio de segundo nível), bem como dos seus componentes moleculares (ensaio de terceiro nível) relevantes e ainda valores de IgE total, tudo no mesmo ensaio, com a vantagem de possuir um inibidor de CCD, permitindo um resultado positivo apenas quando o reconhecimento do alergénio é específico para a própria proteína, aumentando a especificidade do teste15,16,19-24.
A literatura disponível globalmente acerca deste inovador método de diagnóstico é ainda bastante escassa15,23,24, sendo este o primeiro estudo publicado a nível nacional, o que os autores consideram ser uma mais-valia para toda a comunidade científica.
CONCLUSÕES
Neste estudo, a análise da concordância com a clínica dos diferentes métodos de diagnóstico, individualmente ou em associação, para diferentes alimentos, foi variável, quer utilizando o método diagnóstico in vivo e/ou in vitro, quer em diferentes associações.
Das LTP identificadas nesta amostra populacional, a Pru p 3 foi a mais prevalente (100% dos doentes), tendo havido ainda concordância para o pêssego em todas as variáveis, entre a clínica e os testes cutâneos para a maçã, entre a clínica e a IgE total para o amendoim e entre a clínica e os componentes moleculares para a avelã e a uva.
O método ALEX® MacroArray permite, através da utilização de uma pequena amostra de soro, a identificação de IgE total, IgE específica para extrato total e respetivos componentes moleculares simultaneamente, permitindo uma melhor interpretação e correlação clínica dos resultados. A utilização de um inibidor de CCD permite a eliminação de falsos negativos e positivos. Contudo, será necessário um estudo prospetivo mais alargado para aferir a sensibilidade e especificidade deste teste.