Introdução
O artigo tem como ponto de partida os projetos que desenvolvi entre 2014 e 2019: a observação no terreno da implementação dos cinco projetos apoiados pelo Programa Europeu da Pegada Cultural, em Portugal (Borges, 2017a, 2017b); a observação localizada dos teatros e dos seus públicos (Borges, 2018). Apesar das variações, nestes trabalhos analisaram-se as dimensões do quotidiano das organizações culturais e as trajetórias de vida dos seus profissionais; confrontou-se a diversidade dos contextos em termos de missões, objetivos, expectativas, aspirações, territórios e resultados. Com estes projetos em mente, discutem-se agora as condições, ambiguidades, forças e desafios das políticas públicas para a cultura, através do trabalho de um profissional do teatro e das novas missões e geografias do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), em Lisboa.
Enquadram-se as coocorrências das políticas públicas na estruturação das trajetórias individuais de carreiras, na gestão das organizações, nos seus valores e formas de relação com os públicos. Por fim, aponta-se em que medida as trajetórias organizacionais e as práticas que os profissionais da cultura promovem se alimentam, impulsionam e influenciam umas às outras e estão em linha com a evolução e as temporalidades das políticas públicas para a cultura, nas últimas décadas.
Parte-se de um snapshot de trabalho sociológico recente, a “imagem momentânea de uma cena ou fragmento da realidade” (Pais, 1993: 107), que se concilia com o trabalho no terreno “andante”, como descrito por J. T. Lopes (2007), uma viagem um destino. O seu uso teórico e metodológico corresponde à validação de abordagens empíricas assentes nas teorias de “médio alcance” (Merton, 1957). Esta estratégia permite analisar, a diferentes escalas e intensidades, os esquemas de interação social dos atores, as micro-histórias de indivíduos e organizações, os paradigmas das políticas públicas para a cultura, e os seus significados globais (Silva, 2017).
Seguem-se duas aproximações heurísticas. Primeiro, apresentam-se os paradigmas das políticas públicas para a cultura, no contexto europeu. Segundo, parte-se da trajetória individual de carreira de um diretor artístico e da missão de um equipamento cultural nacional, nos dias de hoje. Examina-se, brevemente, o TNDM II e algumas experiências que desenvolve do ponto de vista cultural, programático, comunicacional e de gestão, com características chave no panorama nacional. Termina-se com uma discussão intermédia e um conjunto de perspetivas a aprofundar na investigação futura.
Paradigmas das políticas públicas para a cultura
As políticas públicas não são apenas um programa para dar sentido a atos, discursos, alocação de financiamentos e práticas administrativas; as políticas públicas são também uma visão do mundo (Hall, 1993; Araújo e Rodrigues, 2017). A evolução das políticas públicas para a cultura, os seus paradigmas, a sua internacionalização e a expansão da diplomacia cultural no mundo dão sinais da abrangência das ações da cultura e dos instrumentos que, ao longo dos tempos, se foram adotando (Dubois, 2015).
De forma sucinta, destacam-se marcos internacionais, como o ano de 1966 com a Declaração de Princípios da Cooperação Cultural Internacional, aprovada pela UNESCO, que estabelecia entre os seus objetivos a difusão do conhecimento, o desenvolvimento de relações de cooperação entre os povos e o maior acesso de todos ao saber, às artes e às letras (UNESCO, 1966). Em 1987, “Our commom future” apela ao desenvolvimento sustentável do planeta, recorrendo à mudança de comportamentos no que respeita a ambiente, crescimento económico e inclusão social. Entre 1988 e 1997, a UNESCO aprovou a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais. O relatório global desta Convenção, de 2005, foi atualizado e publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em França (UNESCO, 2005), e pela representação da UNESCO no Brasil, para “repensar verdadeiramente as políticas culturais em todo o mundo” (UNESCO, 2018: 5), contribuindo para o maior reconhecimento da cultura no desenvolvimento sustentável, na Agenda 2030.1
Nos anos 50 e 60, a primeira geração das políticas públicas para a cultura dispõe públicos e decision-makers no mesmo grupo e exclui aqueles que não partilham os valores culturais dominantes; já as políticas públicas da segunda geração, designada democratização cultural, preveem o acesso generalizado dos públicos aos bens culturais. Por seu turno, as políticas públicas da terceira geração, designada democracia cultural, nos anos 70, deram lugar a novas interpretações, fazendo um debate progressivo em torno das formas de participação dos públicos e admitindo que cada grupo obtém reconhecimento pelas suas próprias práticas culturais (Lopes, 2003, 2004, 2008). Este último paradigma representa um ponto de viragem pelo tipo de participação dos cidadãos na cultura (Bonet e Négrier, 2018). Os autores citados e o relatório da UNESCO (2018: 9, 15) esclarecem que esta viragem à participação dos cidadãos não é generalizada e há muitas fragilidades por resolver. No entanto, esta representa um dos instrumentos mais importantes dos atuais modelos de governança e do paradigma da nova democracia cultural, pela variedade e estilos de participação dos públicos como audiências críticas, consultores, cocuradores, cocriadores (Markusen e Brown, 2014; Lopes e Dias, 2014); consumidores de atividades culturais informais, de carácter quotidiano (Miles e Gibson, 2016; Raquel e Borges, 2020), ao mesmo tempo que consomem atividades mais reconhecidas, esbatendo fronteiras (DiMaggio e Muktar, 2004; Taylor, 2016); e ainda pelo valor atribuído às decisões tomadas pelos coletivos de cidadãos (Lopes, 2010; Bonet e Négrier, 2011a; Bonet e Sastre, 2016; Juncker e Balling, 2016).
No contexto português, de forma sucinta, as contribuições chave de M. Pinto (1994), F. da Costa (1997), A. S. Silva (2003, 2007), J. T. Lopes (2003, 2004, 2008), C. Fortuna e Silva (2002), E. Dionísio (1993), I. Conde (2010), e os estudos do OAC (de que a publicação coordenada por M. L. L. dos Santos, em 1998, é apenas uma das muitas referências) analisaram a importância e os efeitos destes paradigmas. Assim como os relatórios de avaliação e monitorização da aplicação e impacto dos quadros de ação das políticas públicas europeias nas políticas nacionais, inter-regionais e locais: a análise da “Rede 5 Sentidos” (Ferreira et al., 2016), que juntou cinco e chegou a 11 equipamentos culturais, no âmbito do Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN), na linha de financiamento à programação em rede; ou a avaliação do plano estratégico para a cultura, em Lisboa (Costa et al., 2017); ou a análise de estruturas culturais, contextos e comunidades territoriais, apoiadas pela linha do Fundo Monetário Europeu, EE Grants 2014-2021, financiado pela Islândia, Liechtenstein e Noruega, em 15 estados-membros da União Europeia, na Europa Central e do Sul e nos países bálticos (Borges com Lima, 2014b; Borges, 2017a). Recentemente, a pesquisa que mapeou os instrumentos e as políticas culturais nacionais no início do século XXI (Garcia et al., 2014, 2016), entretanto comparadas com as políticas públicas no espaço ibero-americano, através do conceito de “famílias de nações”, de Castles (ver Morató e Zamorano, 2018: 565-576). Por fim, a investigação junto dos profissionais da cultura para definir os critérios a utilizar na atribuição dos apoios públicos, promovendo linhas de atuação concertadas com as necessidades e aspirações destes profissionais (Neves et al., 2018). Outras pesquisas escrutinaram as potencialidades das políticas públicas diretamente como instrumentos de empoderamento e inclusão social das populações locais (Lopes e Dias, 2014; Lopes et al., 2018).
Em conjunto, as pesquisas e relatórios citados dão-nos a ver, em diferentes contextos, os instrumentos, objetivos e finalidades dos paradigmas das políticas públicas, da excelência cultural à democratização cultural, democracia cultural e economia criativa. Nestes paradigmas, a cultura e os seus intervenientes interagem de formas diferentes, entre si e com as suas audiências. Promovem a aproximação, a interação e a hibridação de estratégias por parte da oferta e da procura, respondendo às mudanças tecnológicas, sociais e políticas das sociedades contemporâneas. Os estudos citados mostram também como os paradigmas não se substituem, mas se intersetam e são cumulativos. Pode dar-se a predominância de um paradigma em relação aos outros, em função dos territórios, das estratégias e posicionamentos dos atores e stakeholders,2 tipo de trabalho e formas de participação efetiva dos públicos.
Que missões para os equipamentos culturais hoje?
Nos anos 60, as políticas públicas para a cultura chamavam a atenção para o património comum da União Europeia, e tinham a preocupação do acesso generalizado dos cidadãos aos bens culturais. Daqui decorre o forte impulso à presença territorial dos equipamentos culturais como infraestruturas da vida coletiva e forças socializadoras, capazes de garantir o mínimo de condições, recursos e oportunidades para todos, em territórios desigualmente servidos, com a preocupação de promover a coesão social e a profissionalização do tecido cultural local (Silva, 2003; Lopes, 2003, 2004; Garcia et al., 2016). Nos anos 90, desenvolveu-se uma noção de cultura mais ampla, que apostava na relevância das indústrias culturais, no crescimento dos mercados da cultura, turismo e atividades de lazer, e no seu valor simbólico, social e económico (Sacco, 2011; Sacco, Ferilli e Blessi, 2012). A esta noção mais ampla está associada a gradual descentralização da ação pública, que levou a uma crescente disparidade nos seus objetivos e funções, e desafiou o modelo igualitário universalista, construído de cima para baixo (Menger, 2014). No caso português tem-se assistido, em alguns casos, a um esvaziamento da missão pública de alguns equipamentos culturais, como teatros e cine-teatros municipais (Borges, 2019). É neste sentido que é importante discutir as missões públicas destes equipamentos culturais e procurar compreender como poderão afirmar-se, hoje, como espaços agregadores de diversidade cultural, capazes de gerar novas estratégias de intervenção e de interação com os públicos: que perfis artísticos, organizativos, de gestão e comunicação? Como desenvolver a participação dos indivíduos e fortalecer os seus laços com os territórios?
Por um lado, destaca-se a performance das organizações internacionais na ativação e condução dos diversos paradigmas culturais e na forma como se entendem as missões dos equipamentos culturais. Tem sido estimulada a participação colaborativa dos habitantes locais, organizações não governamentais sem fins lucrativos, profissionais do setor cultural, grupos sindicais, movimentos sociais, universidades, escolas: “[...] a watchdog role, serves as value-guardian and innovator, as well as contributes to the achievement of greater transparency and accountability in governance” (UNESCO, 2017: 55).
Por outro lado, sublinham-se as novas visões do mundo referenciadas às políticas públicas, profundamente ligadas às mudanças nas dimensões tecnológica e social. As ferramentas digitais permitem alterar a forma como os equipamentos culturais interagem com os seus públicos, e (deveria) aumentar a preocupação dos gestores, programadores culturais, diretores, e dos municípios em geral, com a comunicação e divulgação da missão pública dos seus equipamentos e programas através das plataformas digitais (web marketing). É possível saber mais sobre as expectativas reais e potenciais dos públicos (Bathurst e Stein, 2008; Walmsley, 2016). Além das inúmeras experiências (inovadoras e ainda pouco estudadas) que proporcionam a escolha de espetáculos online, a partilha imediata de opiniões, no domínio de grupos restritos, ou pelo desenvolvimento de trajetórias com perfil de “prosumer”.3 Já em relação à dimensão social, destaca-se a maior autonomia dos públicos nas suas escolhas, o ecletismo das formas e linguagens artísticas que procuram e das suas modalidades de participação, ora como vizinhos interessados, ora como audiências passivas, críticas, como amadores, voluntários, estagiários. Daqui resultam múltiplas sociabilidades e muitas perguntas.4 De entre as quais se destacam as seguintes para aprofundar nos próximos anos:
Como é que os teatros se posicionam em relação aos paradigmas das políticas públicas para a cultura? Como é que se posicionam em relação às práticas artísticas e institucionais no meio cultural português? Até que ponto promovem dinâmicas institucionais diferentes? Como é que se relacionam as suas praxis artísticas, de produção, comunicação e até espetacularização da cultura? E como podemos pensar o novo uso social, cultural, programático e de gestão dos nossos teatros e cine-teatros? Qual deverá ser hoje a missão de cada um dos teatros e cine-teatros que operam a diferentes escalas de valor e territórios? A que regras obedecem? A que redes inter-regionais, nacionais ou internacionais estão ligados? Qual é o impacto de um equipamento que se fecha à sua comunidade vs. outro que se abre ao tecido associativo local, empresas, estruturas sem fins lucrativos, terceiro setor? Que expectativas podem ter os artistas e profissionais da cultura nos diferentes territórios portugueses? Que impacto tem o trabalho que se realiza nesses equipamentos?
Snapshot
Teatro 1: missão de abertura à rua e ao mundo
Um olhar pela Baixa de Lisboa e surge imponente o edifício do TNDM II. Inaugurado em 1846, o teatro nacional abre-se para a praça do Rossio, para a cidade, para rua e daí para os mundos das artes mais globais. Pensar que tinha no seu início “o propósito político de civilizar o teatro, educar o povo, e converter-se em símbolo da identidade nacional […] permite perceber o que mudou, o que se mantém e onde situamos hoje o primeiro teatro da Nação” (Brilhante, 2014: 11). É longo o caminho histórico que esta expressão “teatro nacional” percorreu na Europa, desde a sua vocação inicial para a afirmação de uma identidade nacional alicerçada na língua, passando pela monumentalidade arquitetónica, exemplaridade, e a ideia de “missão cultural”, até às mais recentes práticas continuadas referidas à globalização, em que artistas, produtores e programadores procuram sinergias na internacionalização e novas “pulsões culturais” (Serôdio, 2014: 279) mais colaborativas, até ao aprofundamento das relações com a cidade e o território envolvente mais próximo.5
A passagem de uma história de geografia mais circunscrita a uma abertura a diferentes artistas de outras nacionalidades, à participação em festivais internacionais e até às direções de teatros nacionais por parte de profissionais de outras nacionalidades, a definição de um teatro (seja nacional ou municipal) implica hoje um olhar mais amplo (nas suas dimensões social, cultural, territorial, artística): um olhar para o mundo.6 Esse olhar inclui uma análise das diferentes formas de se relacionar com a sociedade global (Kester, 2011). Este olhar é compatível com as atuais orientações das políticas públicas para a cultura.
Teatro 2: uma vocação pessoal para trabalhar com os outros
T. Rodrigues (n. 1977) é o diretor artístico do TNDM II, desde 2014, a convite da Secretaria de Estado da Cultura. O nosso encontro no ISCTE-IUL, em Lisboa, no âmbito dos encontros mensais sobre experiências culturais, mostrou como este apoia as dinâmicas universitárias e os seus públicos, e mobiliza os seus recursos pessoais, técnicos, a voz e a presença, quando se dirige a alunos, colegas de profissão e investigadores presentes (notas do diário de bordo, 22 de fevereiro de 2018). Filho do jornalista Rogério Rodrigues (que integrou as redações do Diário de Lisboa, O Jornal, Visão e Público), Tiago Rodrigues trabalha como ator, dramaturgo, produtor teatral, encenador, e é reconhecido nacional e internacionalmente, se tivermos em atenção os prémios e as nomeações no teatro e em televisão, os convites e participações internacionais. O início da sua carreira ficou marcado pelo “aprender fazendo” na escola: “Comecei a fazer teatro no Mundo Perfeito, na Amadora, procurava motivos para querer estar na escola, desde os 14 que comecei a fazer teatro na escola…” [notas do diário de bordo, 22 de fevereiro de 2018]. Como quase sempre acontece aos atores da sua geração, Rodrigues frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema, em 1998. Não finalizou o curso, mas começou a trabalhar com a companhia belga STAN. Cocriou e interpretou espetáculos de teatro em inglês e francês, apresentados em mais de 15 países.
No início da sua trajetória profissional, T. Rodrigues trabalhou ainda como ator em estruturas portuguesas, como os Artistas Unidos. Participou em programas de televisão (como o Zapping), e foi argumentista para televisão nas Produções Fictícias. Desde 2003, foi o diretor artístico do Mundo Perfeito, estrutura cultural que partilhava com a produtora Magda Bizarro. Nesta estrutura criou inúmeros espetáculos, produzidos por prestigiados festivais como o Alkantara Festival e o Festival d’Automne (Paris); e o seu percurso fica muito marcado pelas digressões e cocriações internacionais, em países como França, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Noruega, Eslovénia, Espanha, Itália, Suíça, Líbano Brasil. Levou à cena textos inéditos de autores internacionais e autores portugueses, entre os quais J. Luís Peixoto, J. Lucas Pires, J. M. Vieira Mendes, M. Castro Caldas.7
Rodrigues desenvolveu ainda projetos artísticos de caráter comunitário, a oficina de escrita criativa com menores detidos em centros educativos; escreveu e dirigiu o espetáculo Bela Adormecida com atores e bailarinos maiores de 60 anos, dando origem à Companhia Maior; escreveu o texto “A mulher que parou” para o projeto de teatro desenvolvido pela associação Alkantara no bairro da Cova da Moura; escreveu o texto “Coro dos maus alunos” para o projeto PANOS, na Culturgest, em Lisboa, coordenando a criação de uma peça coletiva, feita por estudantes do ensino secundário, em colaboração com o Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa. Este projeto, inspirado num modelo inglês, foi iniciado por Francisco Frazão, na Culturgest. Com a sua saída para o Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, o projeto ia terminar. No TNDM II, este projeto tornou-se uma das apostas da temporada. Os principais objetivos do projeto passam pela representação de textos inéditos, de autores nacionais e estrangeiros, pelos jovens dos 12 aos 17 anos de idade (como referido pelo escritor Sandro W. Junqueira, responsável pela condução do projeto no TNDM II [notas do diário de bordo, 14 de fevereiro de 2019]).8
Teatro 3: junto dos artistas e dos cidadãos
A primeira pergunta que lhe fiz, no átrio do ISCTE-IUL, foi como viveu estes últimos anos, em que ampliou o seu reconhecimento nacional e internacional, desde a última entrevista que fizéramos na Direção Regional de Cultura, em Lisboa, em 2010. Uma parte desta nossa conversa pode ser consultada no Youtube:9
O reconhecimento do trabalho de um artista - que é uma fortuna que me tem bafejado - é muito importante no caso de um artista de teatro, porque o teatro é feito absolutamente no presente e, portanto, precisa dessa reação presente para se confirmar e para acontecer […]. Eu tenho tido a sorte, apesar de muito esforço e de muito trabalho, também muita sorte, de ver o meu trabalho progressivamente reconhecido e de ganhar confiança com esse reconhecimento. Mas, apesar, deve dizer-se, e como no caso de muitos artistas portugueses que têm essa mesma sorte e esse patamar de reconhecimento nacional e internacional, apesar de um cenário de subfinanciamento e muita falta de dignidade na forma como a criação artística é vista, não apenas pelo estado, mas pela sociedade portuguesa. Essa é uma das batalhas também do TNDM II. Estar junto dos artistas e junto dos cidadãos, dizendo-lhes que é possível e é normal viver numa sociedade democrática onde a cultura e as artes estão no centro do nosso quotidiano.
A partir das suas palavras, compreende-se não só a discussão das condições de trabalho dos artistas, a forma como são vistos pelos outros, como ainda as implicações da sua ação no teatro, em linha com os paradigmas intersetados da democratização e da democracia cultural.
Já num discurso mais reflexivo, Rodrigues aponta “a des-sincronia”, “a surpresa”, “a ruptura” com o seu percurso profissional anterior, onde já se encontrava a forte tendência para a integração do artista em redes internacionais, mas era visível a precariedade da estrutura que liderava, e a acumulação das funções de ator e produtor.
“É muito surpreendente ao passar para a direção artística do TNDM II ou qualquer teatro, compreender que a noção do tempo se transforma completamente […]” [notas do diário de bordo, 22 de fevereiro de 2018]. Reflete depois sobre o TNDM II e o paradigma da “criação própria” com elenco permanente, que se foi “esboroando” para dar lugar, hoje, à programação não de espetáculos, mas de projetos e artistas que se apresentam como promessas e que podem ali trabalhar com meios mais robustos, do ponto de vista financeiro, técnico, de gestão, produção e comunicação:
Enquanto diretor artístico de uma casa como o Teatro Nacional que é um teatro de criação, embora já não se possa dizer que seja só de criação própria, esse modelo, esse paradigma foi-se ao longo das décadas esboroado, e o Nacional foi-se reinventando, continua a ser um teatro de produção e de criação, não sendo um teatro de reportório…, reinventando-se constantemente é um teatro que muito mais do que programar espetáculos, artistas e companhias, muito mais do que um teatro de programação, porque muito mais do que programar espetáculos, programa promessas, daquilo que é plausível, mas que ainda não é possível […]. Tem sido uma experiência transformadora também a título pessoal [notas do diário de bordo, 22 de fevereiro de 2018].
No seu discurso entrelaça a dimensão pessoal e a dimensão institucional, dá-nos a ver como estes dois mundos se intersetam e influenciam. As suas palavras refletem como entende na sua nova dimensão de trabalho, onde se ocupa (menos) das questões técnicas e logísticas - de excelência - no TNDM II, mas procura mais a criação, a programação, através da qual não quer apenas alargar os segmentos de público do TNDM II, o que é visível pela programação destinada, por exemplo, aos jovens, como pretende ainda fazer uma aproximação entre criação artística, trabalho e profissões teatrais e receção:
Eu tinha uma companhia onde passava o tempo a procurar os meios de produção. […] O que faço [agora] é gerir a partilha dos meios de produção e a forma como são utilizados em vez de saber se a renda está paga, só tenho de falar com muitos inquilinos […]. É como gerir uma casa, é também para mim uma alteração que transformou a minha vida, transformou a minha perceção do edifício, do interagir com o público, com os artistas, os trabalhadores do teatro" [notas do diário de bordo, 22 de fevereiro de 2018].
Teatro 4: “Há lugar para todos”
É o slogan colocado em letras gigantes na parte da frente do TNDM II. A sua missão de elo com a população local faz-se (literalmente) pela abertura das portas da fachada principal e das laterais [notas do diário de bordo, 14 de fevereiro de 2019].10
Nas palavras de T. Rodrigues:
O Teatro Nacional D. Maria II é um teatro que tem uma missão consagrada na lei. Em primeiro lugar tornar acessível, ao máximo de portugueses, o grande reportório da biblioteca da dramaturgia universal. Nós tentamos fazê-lo com linguagens contemporâneas, com artistas e companhias que interpelam esse património e que o presentificam, que o tornam acessível, a quem com os olhos, os sentidos, de hoje pode beneficiar dele e pode fruir dele. O trabalho com a infância e a juventude, com a educação, e a promoção da dramaturgia portuguesa, e também o trabalho de estar o mais próximo possível do máximo de portugueses, o que implica que o Teatro Nacional D. Maria II, embora tenha sede no Rossio, não é um edifício, é mais do que isso, é uma ideia de cultura e de serviço público, e de teatro para todos".11
Discussão
O teatro que aqui se apresentou, de uma forma breve, desafia a representação dominante das experiências individuais e organizacionais dos profissionais da cultura pela visão dos projetos desenvolvidos no TNDM II. Tiago Rodrigues é ator, e era produtor de uma estrutura de teatro independente, reconhecida pela intensa atividade nacional e internacional. Hoje, é um dos mais jovens na história da direção artística do TNDM II, e entrelaça a sua vocação de artista local e internacional com a missão do Teatro Nacional nos dias de hoje. Configura uma posição dinâmica e mobilizadora das equipas [notas do diário de bordo, depois de conversa com uma colaboradora permanente e um responsável de projeto, 19 de fevereiro de 2019], promove o desenvolvimento integrado de um programa artístico, de produção, gestão, comunicação e marketing (ver Bonet e Schargorodsky, 2018).
O funcionamento interno deste teatro - com um edifício marcante (como quase todos os teatros e cine-teatros portugueses), com profissionais e equipas de trabalho permanentes, importantes padrões de excelência artística e técnica - envolve um contexto de produção importante. Sabemos que a maior parte dos diretores dos teatros e cine-teatros faz uma gestão com orçamentos mais restritivos e sem equipas de especialistas. Também por isso, este snapshot é uma exceção dentro do quadro geral no país (ver Silva, Guerra e Santos, 2018; Borges e Veloso, 2020). Adicionalmente, este teatro tem promovido uma política de trabalho artístico, de gestão e circulação dos espetáculos pela Europa. Tanto colabora em redes internacionais, como nacionais, aciona mecanismos, faz “compromissos”, com impacto muito positivo.
Verificou-se neste caso, como noutros casos (o Teatro Viriato, ver Borges, 2017b; e o Teatro Municipal Maria Matos, ver Borges, 2017b), a importância atribuída à colaboração entre entidades parceiras e artistas, trabalhos de caráter multidisciplinar, a internacionalização de algumas produções, a promoção de redes de trabalho nacionais e internacionais, a atenção ao público mais jovem e às metodologias participativas, quer na construção de espetáculos, nos seminários, ou na produção de filmes de divulgação.
Recorrendo, agora, às principais conclusões dos estudos exploratórios, apresentados recentemente (Borges, 2018, 2019), elencam-se algumas regularidades das micronarrativas dos responsáveis de um conjunto de teatros que ajudam a repensar a evolução das políticas públicas locais para a cultura (Centeno, 2012).12 Destaca-se a amplitude e a multiatividade do trabalho da estrutura Leirena Teatro, em Leiria, e o caso de sucesso do Teatro Viriato, em Viseu. As imagens das cidades e das vilas ficam associadas aos projetos “da terra” que contribuem para a vibrancy cultural local. Um caso contrário foi relatado no estudo sobre o Teatro Sá da Bandeira (Santarém).
O recurso deste município a uma estrutura cultural mediadora com atuação inter-regional diversificada (ArtemRede, Juntos mais Fortes) facilita a animação do equipamento e evita o vazio programático, mas parece estar longe dos princípios de enriquecimento do profissionalismo e criação local, como concluíram os entrevistados. Depois, o equipamento cultural antigo e o mais recente promovem, entre si, dinâmicas que se ofuscam em vez de ampliarem o seu capital reputacional (Bourdieu, 1989). E deixam-nos assim ver a (ainda) modesta utilização de todas as potencialidades dos equipamentos culturais de proximidade. Outra ambiguidade: a ideia de que um equipamento cultural que está geograficamente próximo do centro da cidade de Lisboa tem aqui um obstáculo à concretização de um programa cultural mais forte e diversificado: “tão longe e tão perto do centro de Lisboa”, foram as palavras dos responsáveis pela cultura, em Setúbal, numa alusão às tensões que resultam de procuras diversificadas que não estão contempladas pelo Teatro Municipal Luísa Todi (Borges, 2019 ).
Os municípios entendem a gestão de equipamentos como uma oportunidade de repensar os espaços municipais e intervir na comunidade, mas é visível para todos nós até que ponto os equipamentos podem ser muito mais do que um complemento ao aparelho educacional, e como os municípios e os teatros e cine-teatros podem ser produtores de políticas públicas, apostando em valores como a diversidade, a performance social, o reforço da integração dos indivíduos nos territórios. Os equipamentos parecem continuar a ser mais recetores de projetos, abdicando da vocação transformativa, feita in vivo com os habitantes locais. Essa vocação e missão de elo que é possível concretizar. Como nos mostra este “instantâneo” do Teatro Nacional D. Maria II.
Conclusão e perspetivas
As atuais políticas públicas para a cultura mostram-nos a importância de repensarmos em conjunto os perfis dos equipamentos culturais, e de traçarmos os novos retratos dos profissionais da cultura que estão a atuar localmente, cujas missões públicas são pouco conhecidas. Uma nova abordagem aos bens infraestruturais e valores comuns exige a (re)definição da visão, missões, objetivos, estratégias, posicionamentos e linhas programáticas dos teatros e cine-teatros. Isto faz-nos pensar na necessidade de articular estratégias e definir outros posicionamentos para estes equipamentos, os seus diretores e equipas, quer do ponto de vista artístico, quer do ponto de vista da programação, produção, comunicação (Walmsley, 2016), como forma de ampliar o vai-e-vem do capital simbólico, transferível dos indivíduos para os equipamentos e destes para os territórios, sem prejuízos e interrupções, mesmo quando muda a direção do teatro. Mas acima de tudo, como forma de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos que procuram e sentem a vibrancy cultural das suas cidades.
Os equipamentos culturais estão na base de um tecido cultural qualificado que, quando agilizado, dá provas de dinamismo. Mas permanece longe de funcionar em pleno e, por vezes, está sujeito a flutuações.13 O teatro aqui examinado tem uma missão de caráter nacional, inscrita na lei, mas, muito por força do percurso profissional de T. Rodrigues, tem ainda subjacente uma visão de abertura ao mundo, que se esforça por desenvolver parâmetros de excelência artística, mas também preenche as dimensões inerentes à diplomacia cultural do teatro nacional.
R. Vieira Nery (cit. em Serôdio, 2014: 294) falou assim sobre a importância dos teatros: “Cabe-lhes serem os elos portugueses por excelência - mesmo que não os únicos - de uma cadeia internacional de circulação de produção teatral […]”. Como se vê, essa missão cultural de elo existe no TNDM II. Sabemos que este equipamento cultural não representa o quadro mainstream do mundo da cultura em Portugal. Mas o objetivo foi aqui mostrar o lado visível do sucesso da direção, gestão, trabalho em rede de um equipamento cultural, como o TNDM II e de como se ampliam os seus créditos reputacionais (Menger, 2012). A ideia de focar a atenção no sucesso de uma trajetória individual e organizacional abre perspetivas para as reais potencialidades dos outros teatros e cine-teatros que - apoiados e enquadradas as suas missões públicas - farão operar em pleno a rede de equipamentos de que dispomos.14
O snapshot mostra-nos um teatro que se assume como produtor de políticas culturais, procurando abrir o seu trabalho à sociedade civil, e às organizações do terceiro setor (Borges, 2020). De um ponto de vista mais abrangente, podemos dizer tratar-se de uma organização cultural com um dinamismo que segue as principais orientações das políticas públicas europeias. É, por isso, fundamental que os teatros e cine-teatros e o seu trabalho sejam pensados como um todo orgânico. Importante também será a ligação efetiva e “afetiva” dos equipamentos ao seu contexto local, à preocupação em fomentar novos profissionalismos, à procura de mediadores culturais que promovam o “teatro da terra”, a maior qualificação dos sistemas de governança cultural e gestão de organizações culturais, o diálogo com as universidades e as empresas locais e a preocupação com a inclusão social dos habitantes.
Para isso, convém chamar a atenção para a necessidade de uma gestão mais eficaz de toda esta rede, cuja centralidade, territórios, meios e populações são tão diversos. Uma reflexão em torno das políticas públicas para a cultura deverá hoje abordar as missões dos equipamentos culturais e a sua necessária evolução, no sentido de aumentar e melhorar qualitativamente as interações com os cidadãos. As implicações conjuntas que daí resultam são cada vez mais relevantes para recentrar a análise da mudança social no contexto de um entendimento, que se procura seja universal, daquilo que significa o real empoderamento dos cidadãos e das sociedades (UNESCO, 2018).