Introdução
Este artigo analisa os fatores que originaram a transformação institucional do regime penal português, com a abolição da pena de morte em 1867, bem como a conjuntura que potenciou esta mudança institucional. Considerando que é possível percecionar o direito enquanto instituição (La Torre, 2010) podemos analisar a abolição da pena de morte segundo uma abordagem centrada na mudança institucional (Garland, 2010), apresentando-se como pertinente o estudo do caso português, um dos primeiros países a abolir do seu ordenamento jurídico-penal, e de forma definitiva, a pena de morte para crimes civis. O caráter percussor português justifica uma compreensão detalhada dos determinantes da tomada de decisão, pois devemos ter presente que o movimento abolicionista global só se torna efetivo quase um século depois. No início da década de 1970, eram pouco mais de uma dezena os países que tinham abolido (sem restrições) a pena de morte dos seus ordenamentos jurídico-penais (Anckar, 2004).
A discussão em torno da aplicação da pena de morte como instrumento para punir determinados crimes mantém-se atual, sobretudo nos EUA (Garland, 2010; Lyon, 2014) e nos continentes africano e asiático (Sarat e Boulanger, 2005; Johnson e Zimring, 2009; Hood e Deva, 2013; Karimunda, 2014; Novak, 2014), onde vários estados mantêm esta penalidade. Contudo, considerando o novo contexto global, em alguns estados identificam-se novas ameaças e, consequentemente iniciam-se novos processos de securitização, por vezes pressionando o direito penal a estender-se a novas áreas ou a endurecer as penas previstas (Costa, 2010). No contexto europeu, a reintrodução da pena de morte apresenta dificuldades várias, desde logo um bloqueio institucional por parte da União Europeia (UE), na medida em que os países pertencentes a esta são signatários do Protocolo 13 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em vigor desde 2003, o qual evidencia a convicção de que o direito à vida é um valor fundamental das sociedades democráticas e a abolição da pena de morte acontece sem reservas. Este papel dissuasor esteve na génese da abolição da pena de morte na Turquia quando o país possuía pretensões de adesão à UE (Özbudun, 2007: 186). Com o afastamento entre Turquia e UE, o presidente turco Erdogan já tornou pública a possibilidade da reintrodução da pena de morte no ordenamento jurídico-penal turco. Também no seio da UE a questão não pode ser considerada como totalmente encerrada. Em 2015, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, aventou a possibilidade da reintrodução da pena de morte no país, entendendo que tal poderia constituir um mecanismo de proteção dos cidadãos húngaros face a novas ameaças à ordem e segurança internas que relacionava com os elevados níveis de imigração (Bozóki e Hegedus, 2018: 1179).
O interesse em analisar o movimento abolicionista português reside em três dimensões: (a) Portugal integrou um primeiro grupo de países que aboliram a pena de morte, do qual não faziam parte as principais potências europeias, num contexto onde as três principais condições comummente apresentadas para a sua abolição - desenvolvimento económico, democratização e expansão dos direitos humanos (Johnson, 2012) - não estavam verificadas; (b) o seu caráter irreversível e sem retrocessos formais, pese embora existissem, posteriormente, contextos que poderiam ter potenciado a reintrodução da pena de morte, como o Regicídio (1908), a forte conflitualidade política e social durante a I República ou o período de ditadura de Salazar; (c) a substituição da pena de morte pela prisão celular perpétua aconteceu num contexto em que a rede de infraestruturas penitenciárias era inexistente e em que o estado português não tinha os meios financeiros indispensáveis para proceder à construção dos estabelecimentos prisionais necessários (Vaz, 1998: 54; Marques, 2005: 106).
Considerando que as instituições do sistema penal, no qual se inclui o regime penal, são influenciadas pelo conjunto de ideias defendidas e pelos interesses de algumas elites (Lacey, 2014: 504-517), propõe-se aqui uma análise da mudança institucional assente em duas dimensões: (1) o impacto das ideias e, (2) o impacto dos interesses específicos provenientes do contexto. A circulação transnacional de ideias potenciou o contacto com diferentes modelos organizacionais e com novas formas de conceber os regimes penais, valorizando-se, nas práticas punitivas, determinados princípios e valores ao invés de outros. Todavia, estas ideias eram partilhadas internacionalmente, não sendo específicas da realidade portuguesa, podendo ter sido mais ou menos efetivadas em função dos interesses dos principais atores envolvidos e do contexto nacional e internacional existente à época. Uma última consideração metodológica para justificar a abordagem compreensiva realizada: o artigo assenta numa combinação de fontes secundárias, complementadas com fontes primárias, como a legislação, as atas dos debates parlamentares, os relatórios e reflexões concretizadas na época, procurando, assim, reconstruir e mapear o processo que culminou com a abolição da pena de morte.
Mudança institucional
As dinâmicas sociais, económicas e políticas das sociedades afetam os modelos institucionais existentes (Rueschemeyer, 2009: 210). Embora a origem histórica do conceito de instituição date do século XVIII, o desenvolvimento das análises institucionais é mais recente, surgindo associado à economia e expandindo-se nas últimas décadas para outras ciências sociais, como a sociologia e a ciência política, não existindo, contudo, uma definição e operacionalização unânime do conceito (Hodgson, 2006: 1). Aqui adota-se uma definição minimalista, assente na produção de um conjunto de normas, tanto formais como informais, que regulam e estruturam comportamentos numa determinada área (Steinmo, 2008: 123; Rueschemeyer, 2009: 210). A partir desta conceção é possível analisar as origens, as mudanças, as continuidades ou ruturas, bem como a influência das instituições em diferentes domínios societais (North, 1990; Thelen, 2003).
Nos últimos anos, têm-se desenvolvido duas áreas fundamentais no âmbito da análise institucional: o estudo dos mecanismos responsáveis pela mudança institucional e a avaliação do papel das ideias nas transformações políticas e históricas. A mudança institucional tem um papel crítico na (re)estruturação das relações de poder, embora apresente dificuldades várias, desde logo porque a produção de um novo quadro normativo pode promover mudanças institucionais paralelas, sendo necessário gerir expetativas e conceder um período de tempo para que os atores se adaptem a um novo enquadramento. As transformações institucionais podem ter origem em fatores endógenos ou exógenos (Steinmo, 2008).
É na interpretação da mudança que o papel das ideias pode ser fundamental, ao invés de se colocar a ênfase somente nos interesses associados aos diferentes atores envolvidos no processo de mudança institucional. A identificação de conjunturas críticas é fundamental para entender os avanços ou inovações institucionais que possam ter ocorrido (Moore, 2010 [1966]; Krasner, 1984; Collier e Collier, 1991; Thelen, 1999), tornando-se um elemento indispensável aos modelos de mapeamento de processos (Pierson, 2000; Mahoney, 2000), embora possam existir continuidades em supostas fases de rutura e mudanças em supostas fases de estabilidade das instituições (Thelen, 2003). Assim, a importância das conjunturas críticas parece ser a mais relevante para o estudo das transformações institucionais, por oposição a um estudo que se centre na origem das instituições (Rueschemeyer, 2009: 223-224).
Portugal foi um dos primeiros estados a romper com a instituição da pena de morte para crimes civis, tendo-o feito de forma definitiva pelo artigo 1.º da Carta de Lei de 1 de julho de 1867, pela qual D. Luís I sancionou o decreto das Cortes Gerais, de 26 de junho do mesmo ano. Este diploma legal determinava uma Reforma Penal e das Prisões que, além da abolição da pena de morte para crimes civis, colocava a prisão celular no centro do novo ordenamento penal, definindo as condições para o desenvolvimento do novo sistema penitenciário. Apenas um dia depois, a 2 de julho, foi promulgada a Carta de Lei que criava os corpos de Polícia Civil, em Lisboa e no Porto.
Estado, controlo social e sistema penal
As instituições do sistema penal tendem a refletir a cultura política e os valores sociais predominantes, estando as suas transformações igualmente associadas à evolução do próprio estado. Nesse sentido, o século XIX ficou marcado pela afirmação de novas conceções sobre o sistema penal (Foucault, 2013 [1975]; Emsley, 2007; Spierenburg, 2008).
As reformas no direito penal, sob influência dos filósofos iluministas, tenderam a refletir não só um novo direito de punir, mas também uma nova economia política da punição, com o poder de punir mais e melhor distribuído entre diferentes instituições, tornando-o mais regular, eficaz e rigoroso nos efeitos pretendidos. A afirmação da igualdade de todos perante a lei pressionou igualmente a redefinição das práticas punitivas (Spierenburg, 2011: 36). O direito de punir passou de um poder pessoal do soberano, sujeito às suas vontades, para uma prerrogativa da sociedade, no sentido de se poder defender, existindo uma limitação social do poder do castigo. Se, por um lado, a nova legislação criminal tendeu a ficar marcada por uma codificação mais clara e maior proporcionalidade das penas, menor crueldade e arbitrariedade na sua aplicação, por outro lado, também ficou marcada pelo desenvolvimento de mecanismos de coerção mais rigorosos, de modo a efetivar o necessário controlo social (Hespanha, 2012).
Não obstante as múltiplas variações do padrão weberiano de apropriação estatal do uso legítimo da violência, a concentração do direito de punir no estado subjugou a sua utilização ao interesse público, por oposição à dispersão entre diferentes atores públicos e privados que, anteriormente, poderiam executar o exercício do poder punitivo (Hespanha, 2012; Churchill, 2014). O desenvolvimento do direito penal contribuiu grandemente para esta transformação, apresentando-se, simultaneamente, como uma construção orientada para o combate ao crime e para a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, a condenação à morte depois de um ato processual mais não seria do que um homicídio levado a cabo pelo estado, que não deve utilizar recursos similares aos indivíduos, na medida em que detém o monopólio da violência legítima, esperando-se uma ação assente em premissas de racionalidade e responsabilidade em prol da defesa dos seus interesses enquanto estado, mas também da sua população (Bobbio, 2004 [1992]: 74).
Numa sociedade da ordem onde o estado passou a assumir a gestão da vida dos cidadãos, tornou-se mais difícil a aplicação da pena de morte, somente aceitável em casos com alguma excecionalidade, em que se assumisse a monstruosidade do ato criminal e a impossibilidade de regeneração do criminoso, transformando-o numa ameaça permanente para a sociedade. O contexto liberal potenciou, assim, um novo enquadramento para o estado, que vincava a separação entre as esferas económica e política, bem como entre público e privado, assistindo-se a um redesenhar do sistema de distribuição de poder, com uma entidade, designadamente o estado, a exercer o monopólio do poder sobre uma determinada comunidade, que habita um determinado território, existindo um poder único e exclusivo sobre uma sociedade civil (Hoffding, 1912). O constitucionalismo liberal viria reforçar a nova era da justiça penal e introduzir novos modelos de controlo social formal e disciplina informal (Cohen, 1985; Garland, 2001).
Por outro lado, a alteração dos instrumentos punitivos foi em parte influenciada pela transformação das práticas ilegais, motivada pelo desenvolvimento do capitalismo industrial e uma maior valorização jurídica e moral das relações de propriedade, bem como pelo crescimento demográfico e das cidades, o que implicou a criação de novos métodos de vigilância e controlo da população e a evolução nas técnicas de identificação e captura do criminoso (Foucault, 2013 [1975]: 90-98).
Poder-se-á percecionar o sistema penal como um conjunto de instituições judiciais, policiais e prisionais subordinadas à lei penal. Historicamente, a tradição jurídica evita ruturas substantivas nos regimes penais, o que não invalida que novas instituições e novas configurações institucionais tenham surgido ao longo do século XIX, onde o crime continuava a ser um tema central da sociedade e da vida política, na medida em que era percecionado como uma ameaça à estabilidade social, necessitando, assim, de ser regulado e controlado (Vaz, 1998; Garland, 2001). A sua eliminação era considerada como essencial de modo a garantir a segurança pública e demonstrar um sinal de progresso da sociedade, evidenciando a superioridade das sociedades que o conseguissem alcançar (Spierenburg, 2008), devendo o desenvolvimento do estado e das sociedades acontecer através de um processo civilizador (Elias, 1990 [1939]).
Na segunda metade do século XIX, num contexto de poucas ameaças externas ao estado português, os principais desafios à segurança aconteciam a nível interno, sendo o crime percecionado como um elemento central da ameaça à estabilidade nacional, surgindo a necessidade de garantir a manutenção da ordem e a segurança pública junto da população no interior do território (Vaz, 2014: 14-15). No caso português, a concentração de poder aconteceu no estado central, contudo este teve dificuldade em assegurar a sua presença na generalidade do território, o que trouxe novos desafios à aplicação dos mecanismos de coerção e controlo do território e das respetivas populações, justificando-se, assim, os relatos de falta de segurança em algumas zonas (Cerezales, 2011: 63-77). Por outro lado, a crescente afluência de pessoas às cidades e o seu consequente crescimento, proporcionou que, na época, o ambiente urbano fosse percecionado como potenciador da insegurança e do crime, suscitando exigências de uma maior vigilância sobre a população, de modo a garantir a ordem e a segurança de pessoas e bens (Vaz, 1998).
No início da segunda metade de Oitocentos, o sistema policial português assentava ainda na ação de autoridades tradicionais e de forças policiais militarizadas para os maiores espaços urbanos, e do exército para fazer o policiamento no resto do território, datando a criação da Polícia Civil do ano de 1867, data que materializa a criação de uma estrutura de policial não militarizada, à semelhança do modelo existente noutros países europeus (Gonçalves, 2014: 14). Os principais modelos de controlo social e ordenamentos jurídico-penais de referência em Portugal pareciam ter origem em Inglaterra e França, países que mantinham a pena capital (Marques, 2005: 97), ficando o século XIX marcado pela criação de várias estruturas policiais. A transformação do sistema policial português foi enquadrada pelas crescentes preocupações com a segurança pública, acontecendo a sua evolução à luz da realidade europeia, onde se desenvolveram estruturas similares: hierarquicamente estruturadas, burocraticamente controladas e com o objetivo de garantir a ordem e a segurança públicas (Perrot, 1980; Garland, 2001; Emsley, 2007).
As transformações no estado, no controlo social e no sistema penal contribuíram para o surgimento de novas ideias e narrativas dentro do movimento abolicionista, fruto de: (a) uma crescente diminuição das diferenças de poder entre grupos sociais, com um processo gradual de pluralização e periferização do poder a outras camadas sociais; (b) descoberta de novas formas de o estado exercer o seu poder punitivo sobre as populações de modo garantir o controlo social; (c) desenvolvimento de um poder judicial autónomo e em expansão, que se regia pelo princípio da legalidade.
Circulação transnacional de ideias
No século XIX, o desenvolvimento de uma rede de transportes e comunicações de alcance transnacional simplificou o acesso à informação sobre os instrumentos punitivos e os modelos de controlo social existentes em outros países. O processo de aproximação espacial permitiu intensificar a circulação de ideias e o contacto com pessoas e publicações com origem noutros contextos sociais, facilitando formas de correspondência e a participação em congressos internacionais, como os que se realizaram sobre questões do direito penal, das prisões e da criminalidade (Marques, 2013: 56), acontecendo esta circulação não só em movimentos centro-periferia, mas também periferia-periferia (Isabella e Zanou, 2015).
As ideias defendidas por Beccaria (1998 [1764]) na obra Dos Delitos e das Penas iriam décadas mais tarde modelar as reflexões sobre o crime e a justiça penal em toda a Europa, tal como as ideias de Jeremy Bentham, também ele partidário da não utilidade da aplicação da pena de morte. Em sentido contrário, John Stuart Mill manteve-se favorável à aplicação da pena morte para crimes de homicídio, em particular no caso britânico, que possuía, na sua opinião e ao contrário de alguns países da Europa continental, tribunais e um procedimento criminal capazes de garantir a necessária isenção e confiança, apontando o erro judiciário como o principal obstáculo à aplicação da pena de morte, na medida em que apresentava um caráter irreversível. A abolição da pena de morte, ou a sua aplicação a um número mais reduzido de crimes, colocou a pena de prisão celular no centro da punição. A prisão apresentou-se como um mecanismo do poder disciplinar normalizador característico do desenvolvimento capitalista (Foucault, 2013 [1975]: 357-358), mas também como o espaço de correção do criminoso, podendo ser, na opinião de muitos liberais, mais cruel do que a aplicação da pena de morte, tal como defendeu Mill, em abril de 1868, no discurso na Câmara dos Comuns britânica (Mill, 2001 [1861-1868]).
Com o liberalismo, a punição foi gradualmente perdendo a dimensão ritualística e ganhando um caráter processual e administrativo (Foucault, 2013 [1975]; Garland, 1990). Para esta mudança foi essencial a supressão do espetáculo público associado à punição e a diminuição do recurso ao castigo físico, com consequências no tipo de penas consagradas nos códigos penais nacionais, em particular um afastamento em relação à aplicação da pena de morte, substituída pelo encarceramento (Ignatieff, 1981: 159). Outra das principais ideias trazidas pelo liberalismo, incorporada na teoria da finalidade das penas, foi a dimensão preventiva associada às penas, deixando de se centrar somente na escola clássica retributiva, que se funda a partir de Kant (1998 [1785]) e Hegel (2005 [1821]), passando a considerar os efeitos de prevenção, como foi teorizado pelo utilitarismo penal, a antropologia criminal, o positivismo sociológico ou os estudos correcionalistas (Romão, 2015: 343).
Em Portugal, no período prévio à abolição da pena de morte, foram várias as referências, nos debates parlamentares, a Beaumont, Beccaria, Bentham, Filangieri, Mably, Mittermeier e Tocqueville (Marques, 2005: 97), confirmando-se que houve uma efetiva penetração das suas ideias sobre o sistema penal no parlamento português. Ainda antes, logo após a Revolução Liberal de 1820, Bentham ofereceu um modelo de código penal aos governantes portugueses, mantendo-se em contacto com as elites liberais portuguesas nesse período (Fuller, 2000). Também os escritos de diferentes pensadores sobre a pena de morte parecem ter chegado à elite portuguesa, fossem aqueles que em favor dela escreveram, como Montesquieu, Rousseau, Mably, Filangieri, Kant, Beck, Rotteck, Romagnosi, Portalis, entre outros, ou contra, como Heving, Thomasius, Michaelis, Beccaria, Pastoret, Bentham, Carmignani, Lamartine, Lucas, Sellon, Livingstone, Ellero, entre outros (Jordão, 1861: 58). Jordão (1853), ao analisar o Código Penal português de 1852, mencionava os nomes de Rousseau, Beccaria, Voltaire, Servan, Mably e Brissot para defender a necessidade de evitar abusos e fixar os necessários limites ao direito de punir. Também Victor Hugo, um acérrimo abolicionista por considerar a pena de morte uma prática que não se coadunava com uma civilização do século XIX, refletiu sobre a pena de morte na sua produção literária, em Os Últimos Dias de Um Condenado (1829), A Pena de Morte (1854) ou Os Miseráveis (1862), tal como o fizeram outros abolicionistas como Lucas (1831), Ducpétiaux (1827), Guizot (1838), Caicedo (1864) ou Mittermaier (1865), obras que influenciaram a elite abolicionista portuguesa, essencialmente composta por professores de direito, jurisconsultos e escritores (Fernandes, 1971: 12 e 19).
O contacto direto com realizações no estrangeiro permitiu igualmente a apropriação de ideias. Nesse sentido, Ayres Gouveia realizou visitas a penitenciárias em Inglaterra, Escócia, França, Suíça, Bélgica, Holanda, Prússia, Áustria e Espanha, para, em 1860, propor reformas nas prisões em Portugal. A incorporação da centralidade da prisão no sistema penal português, bem como a sua função de recuperação do indivíduo delinquente para a vida em sociedade evidenciam a influência das ideias transnacionais no funcionamento do sistema prisional português (Gouveia, 1860: 99), pese emboras as várias dificuldades no seu funcionamento, como a sobrelotação e a ausência de condições de segurança e higiene (Vaz, 2003: 14).
O debate sobre a pena de morte que ocorre em Portugal também foi comentado no estrageiro, como o fez Mittermaier (1865), ou como consta do relatório apresentado no parlamento britânico, The Capital Punishment Commission, em 1866, primeiro acerca da abolição de facto e, posteriormente, sobre a abolição formal da pena de morte em Portugal. Neste relatório foi apresentada uma ampla análise sobre a pena de morte nos vários países europeus, designadamente sobre os crimes que eram punidos com a pena capital e aqueles que tinham deixado de o ser, as possibilidades de comutação da pena e a frequência com que acontecia, a intervenção do poder real, as penas alternativas existentes nos ordenamentos jurídico-penais nacionais e o tipo de execução (pública ou privada), permitindo, assim, a comparação da realidade britânica com a dos restantes países europeus. A correspondência recebida de Portugal foi assinada por Gaspar Pereira da Silva, então ministro dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, que não só respondeu às questões supramencionadas como também enviou o projeto de lei número 6K, respeitante à abolição da pena de morte para crimes civis. Já após a abolição da pena de morte em Portugal, assinalaram-se ecos transnacionais, destacando-se a manifestação de Victor Hugo, em resposta à carta de Brito Aranha, datada de 15 de julho, e ainda antes, a 2 de julho, em carta enviada ao então redator do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, não só elogiando a posição portuguesa, como colocando Portugal como um exemplo a seguir por toda a Europa (Carneiro, 1984). O jornal francês Courrier de l’Europe, na edição de 10 de agosto de 1867, classificava a abolição da pena de morte como um acontecimento marcante para a história da civilização (Fernandes, 1971: 27). Lucas (1869) escreveria sobre o acontecimento no relatório que apresentou na Academie des Sciences Morales et Politiques, tal como o fariam Eyttel (1868), Crouzel (1884), Bujon (1886) ou Olivecrona (1893). Internamente, o debate sobre a pena de morte continuaria ativo nos anos seguintes na imprensa e na opinião pública (Pedroso, 1874: 7).
Assim, a circulação transnacional de ideias é fundamental para se compreenderem as reformas penais que foram sendo implementadas em Portugal. A um contacto direto proveniente das viagens ou do exílio de elementos da elite política portuguesa, e um contacto indireto através da leitura de obras e jornais, da correspondência com pensadores no estrangeiro, pode-se adicionar a participação de membros da elite portuguesa em encontros internacionais sobre matérias de interesse para o sistema penal, ou seja, em comunidades epistémicas. Percecionando o binómio crime-punição como uma construção social historicamente determinada, é possível compreender que a afirmação e inclusão de uma nova visão punitiva na praxis do estado foi uma manifestação decorrente do poder existente, devendo a abolição da pena de morte em Portugal ser entendida à luz deste novo ideário liberal, mas também do desenvolvimento do estado liberal, ambos fundamentais para a institucionalização do sistema penal e das práticas de controlo social.
Contexto político e socioeconómico
Em Portugal, houve uma acalmia do ambiente político e social a partir 1851, concretizando-se a extinção das principais instituições que ainda ligavam o país ao Antigo Regime, a reconciliação entre as grandes famílias políticas responsáveis por grande parte das tensões vividas na primeira metade do século e um distanciamento face às convulsões populares e guerras civis das décadas de 1830 e 1840. Atenuam-se as maiores dissidências políticas, não existindo substanciais problemas de unidade, identidade e estabilidade do estado português (Reis, 1993: 250-252). Contudo, desta acalmia não resultou uma substancial diminuição dos níveis médios de criminalidade em Portugal, na segunda metade do século XIX (Vaz, 1998: 131-160), que continuava a ser considerada como uma das principais ameaças à segurança e tranquilidade públicas. A segurança pública e o controlo social passaram a ser encarados como elementos fundamentais para a afirmação do estado liberal, tendo o aparelho de estado reforçado as suas instituições policiais e judiciais.
Renova-se o contexto político-partidário, que passa a funcionar segundo um sistema de bipartidarismo, com os dois principais partidos a assumirem, de forma alternada, o poder. A ideia de progresso seria central para designar a modernidade desejada (Justino, 2016: 454), sendo este período caracterizado pelo reforço da capacidade burocrática e administrativa do estado, bem como do seu poder disciplinar. De forma tardia e lenta, a estratégia passava por seguir o contexto europeu, assentando na construção de estradas e caminhos-de-ferro, no desenvolvimento do comércio internacional e dos níveis de industrialização, bem como na garantia de segurança e melhoramento das condições de vida da população. No entanto, o país não apresentava recursos internos para alimentar esta estratégia, sendo necessário recorrer a empréstimos externos, levando a uma grande acumulação de dívida pública (Fernandes, 2005: 410).
No relacionamento com o exterior, a história das relações internacionais portuguesas parece retratar a segunda metade do século XIX como um período de paz e relativa tranquilidade, estando as principais crises diplomáticas e com potencial de conflito associadas a uma dimensão colonial. A ausência de um conflito iminente com o exterior e a relativa estabilidade interna reforçaram as condições necessárias para que as elites políticas nacionais se centrassem maioritariamente em questões internas.
Portugal não conseguiu acompanhar a evolução económica que se fazia sentir na Europa, na segunda metade do século XIX, mesmo em relação aos países do sul da Europa, como Espanha e Grécia que, em 1870, apresentavam um PIB per capita próximo do português, mas cujas taxas de crescimento foram aproximadamente o dobro da portuguesa, até ao início da I Guerra Mundial (Broadberry e Klein, 2012: 99). Este atraso poderá, em parte, ser explicado com a desagregação do espaço imperial português do início do século XIX, implicando uma reorganização e reconversão do sistema comercial e do aparelho produtivo, num contexto de profunda transformação proveniente da divisão internacional do trabalho (Pedreira, 1998: 456). Com a perda do mercado colonial brasileiro aumentou a necessidade de diversificação de mercados externos, na medida em que o país vira desaparecer a sua posição de intermediário no comércio externo brasileiro, perdendo um mercado protegido para o escoamento dos produtos nacionais (Pereira, 2001: 66). Contudo, os progressos registados na economia portuguesa, na segunda metade do século XIX, não foram suficientes para que o país conseguisse superar o diferencial de crescimento económico acumulado durante décadas.
O perfil sociodemográfico da população portuguesa também parece ser relevante, na medida em que permite aferir o grau de desenvolvimento do país. Diferentes níveis de desenvolvimento dão origem a diferentes vias para promover o crescimento económico (Lains, 1995: 21), tendo Portugal apresentado, entre 1850 e 1910, uma das taxas de analfabetismo mais elevadas da Europa, sendo uma das que menos diminuiu nesse período, residindo a explicação nos reduzidos problemas de unidade, identidade e estabilidade do estado português, algo que teria constituído um incentivo ao desenvolvimento do sistema educativo, enquanto elemento aglutinador da identidade nacional (Reis, 1993: 250-252).
Movimento abolicionista em Portugal
A imagem da repressão extrema do Antigo Regime é, por vezes, exagerada, em particular quando se compara com a primeira metade do século XIX, desde logo porque não existe uma clara diminuição do número de execuções (Hespanha, 1989: 517). A arbitrariedade no estabelecimento das penas podia levar, em muitos casos, a uma cultura misericordiosa, com os juízes a fazerem uma interpretação mais benevolente de modo a aplicar uma pena menos severa, ou o rei a intervir no sentido da comutação da pena. Ainda assim, as penas pareciam ser marcadas por grande crueldade e as ordenações penais assentavam em critérios mais arbitrários, desiguais e casuísticos. O constitucionalismo liberal veio romper com este enquadramento penal, pese embora se assinalem algumas iniciativas anteriores. Em 1789, o projeto de Código Criminal de Pascoal José de Mello Freire visava uma reformulação do enquadramento das matérias de direito penal e uma maior humanização das penas, não eliminando, no entanto, a pena de morte (Freire, 1823). Mais tarde, em 1803, uma nova reflexão sobre crime e punição, da autoria de Joaquim José Caetano Pereira de Sousa, voltava a incorporar os novos valores liberais e, em 1815, António Ribeiro dos Santos publicava um ensaio criminalístico que advogava a abolição da pena de morte, exceto em situação de ameaça ao estado (Santos, 1815). Também Forjaz de Sampaio, nomeado em 1821, pelas Cortes Constituintes, para a comissão encarregada de projetar os códigos de processo criminal e de delitos e penas, publica, em 1823, um texto onde, seguindo as ideias de Beccaria, advogava a não necessidade da pena de morte.
Com a primeira experiência liberal, em 1820, inicia-se o processo de reestruturação do estado, materializando-se a rutura formal com as ordenações provenientes do Antigo Regime logo na Constituição de 1822. Aqui, o artigo 11.º elimina algumas penas consideradas como demasiado cruéis, atribuindo uma maior humanização jurídica ao entendimento das penas. Elimina-se a desigualdade das penas, no artigo 9.º, inserindo-se os princípios da necessidade e da proporcionalidade na sua aplicação nos artigos 10.º e 11.º, consagrando o último também o fim da transmissão da responsabilidade criminal, impossibilitando que esta vá para além do agente do crime. A consagração dos princípios da legalidade e personalidade das penas evidenciam a influência dos princípios que potenciaram a reforma das instituições penais em toda a Europa.
Na Câmara dos Deputados, o triénio vintista é marcado por um forte debate constitucional e a necessidade da criação de uma comissão para elaborar um primeiro código penal: “Todos nos queixamos do nosso código penal. Ele é com efeito imperfeitíssimo. Pune com as penas mais horrorosas, e sanguinárias os criminosos, a quem se imputavam crimes, que não existiam. […] Tem o nosso livro 5.º da ordenação pena de morte, para delitos, a que de forma alguma se devia aplicar…”.1 O ímpeto reformista inicial acabou por se esvanecer com os conflitos sociais e políticos da primeira metade de Oitocentos, embora a década de 1830 seja relevante em matérias de criminalidade e segurança, com o surgimento de novos corpos policiais, em particular as Guardas Municipais de Lisboa e do Porto, ainda que a instabilidade política não potenciasse as transformações necessárias, em particular ao nível da profissionalização dos corpos policiais (Gonçalves, 2014: 27).
A pena de morte constava, portanto, da lei, mas não fora aplicada entre a guerra civil e 1837, tendo, no entanto, voltado nesse mesmo ano. Segundo o Relatório da Comissão do Código Penal de 1861, entre 1837 e 1846 foram executados cerca de três dezenas de indivíduos (Cruz, 1981: 138-140). Nesta fase, existiu um movimento de escritores que se manifestou a favor da abolição da pena de morte. Uma das vozes mais críticas foi a de Alexandre Herculano que, em 1838, escrevia: “Felizmente o progresso intelectual e moral não para; a última preocupação das épocas de barbaridade passará; a palavra algoz chegará a ser um arcaísmo; e os cadafalsos apodrecidos e roídos de vermes, serão algum dia, um monumento dos delírios e erros do passado.” (Herculano, 1838: 11).
Após 1851 desejava-se a criação de um clima de paz e acalmia interna. Havia necessidade de reconciliação com o passado e uma consciência histórica da violência que existira na sociedade portuguesa. À semelhança do que se passou com a afirmação dos direitos humanos após a II Guerra Mundial, a memória coletiva da violência do passado recente pode ter contribuído para a abolição da pena de morte para crimes políticos. Foi a 23 de janeiro de 1852, que o governo apresentou a proposta que abolia a pena de morte para crimes políticos sem, todavia, nada acrescentar em relação à pena de morte para crimes civis. Durante a discussão, o deputado Mendes Leite submeteu à apreciação um aditamento à proposta do governo, que foi uma medida de alargado consenso. Nos debates de 10 e 29 de março, houve apenas duas vozes que emergiram contra a proposta, pois apesar de concordantes com a abolição da pena de morte para crimes políticos, discordavam da oportunidade naquele momento. O ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, António Luís de Seabra, defendeu que a abolição deveria estender-se aos crimes civis, mas tal não era ainda oportuno tratar. Assim, o Código Penal de 1852 manteve a pena de morte para crimes civis e militares, no seu artigo 29.º, definindo-a como a simples privação da vida, no artigo 32.º.
A 6 de junho de 1853, o governo nomeou uma comissão para proceder à revisão do Código Penal recentemente aprovado. O projeto, da autoria de Levy Maria Jordão (1861), foi apresentado às Cortes, enquanto proposta de lei do governo, a 17 de janeiro de 1862. Todavia, o novo código penal, no qual constaria a abolição da pena de morte para crimes civis demorava a ser convertido em lei. Ayres de Gouveia reintroduziu o debate sobre a pena de morte aquando da discussão do orçamento do Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, a 3 de julho de 1863. Na sua intervenção defendia a abolição da pena de morte para todos os crimes, incluindo os militares, poupando o estado as verbas despendidas com o carrasco. O então ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Gaspar Pereira, concordou com as propostas e remeteu para as comissões o parecer. Mas a aprovação tardaria em acontecer (Cruz, 1981: 143-167): “Vou mandar para a mesa uma proposta singela […], é de utilidade geral, porque é relativa a cadeias. No ano passado, quando se discutiu o orçamento, apresentei a propósito de um funcionário público, o carrasco, um projeto para a abolição da pena de morte. A câmara comum alvoroço e impulso de humanidade, digno de melhor resultado, apoiou imediatamente este projeto; foi à comissão que elaborou o seu parecer de pronto, mas quando veio para se discutir responderam por parte do governo - é tarde.”2
No discurso da Coroa, a 2 de janeiro de 1864, o rei anunciou que seriam submetidas à apreciação do poder legislativo as propostas para a abolição e substituição da pena de morte. Gaspar Pereira apresentou à Câmara a proposta em que, pela inviolabilidade da vida humana e pelo caráter irreparável da pena de morte, se deveria abolir totalmente a pena capital em Portugal. Porém, o mandato do governo terminaria em 1864, caducando todos os projetos em proposta de lei pendente, existindo ainda discórdia sobre a abolição da pena para crimes militares3 (Cruz, 1981: 200-202). O projeto de Reforma das Prisões acabaria por determinar a abolição da pena de morte para crimes civis, substituída pela prisão celular perpétua, estabelecendo o modelo de Filadélfia para o sistema penitenciário. O projeto foi aprovado por larga maioria. Na opinião pública portuguesa parecia certo o triunfo do movimento abolicionista e inevitável a abolição da pena de morte: “Acabemos por uma vez com esta pena odiosa, levantemos o estandarte da civilização, em guerra declarada à pena de morte […]. Derrube-se o throno do carrasco, fulmine-se com desprezo a idéa de forca […]” (Costa Jr., 1866: 16).
A data de 1 de julho de 1867 é um marco para o movimento abolicionista português, quando passavam mais de vinte anos desde a última execução em Portugal, realizada por enforcamento, em Lagos, a 22 de abril de 1846 (Cruz, 1981: 136).4 A síntese do debate parlamentar sobre a abolição da pena de morte para crimes civis poderá ser efetuada considerando dois tipos de posições, a favor e contra, havendo, ainda, a necessidade de diferenciar dois tipos de argumentos a favor. Um argumento de natureza filosófico-moral associado à ilegitimidade absoluta da aplicação da pena de morte e na proteção absoluta da vida de qualquer indivíduo, defendido por Ayres de Gouveia ou Francisco Gavicho, e um outro tipo de argumentação, assente em premissas utilitaristas, que validava a legitimidade da pena, mas em função da inexistência de suficiente evidência empírica que comprovasse a sua importância na prevenção do crime, assumir-se-ia que a mesma não seria necessária para o bom funcionamento do sistema penal, fazendo parte desta linha de pensamento o ministro Barjona de Freitas ou os membros da Comissão de Legislação Penal. Aqueles que se posicionaram contra a abolição da pena de morte para crimes civis não poderão ser classificados como apoiantes da pena de morte, defendendo somente a sua existência formal na lei como forma de intimidação social e prevenção do crime. Terá sido esta a linha de pensamento dos cinco deputados que se abstiveram ou que votaram contra o projeto. Não obstante, a elite parlamentar portuguesa parece ter reunido consensos alargados para a criação de uma opinião pública favorável à abolição, não existindo nesse debate uma substancial diferenciação político-partidária (Marques, 2005: 107).
A abolição da pena de morte permitiu a renovação das instituições penais e constituiu-se como um marco do progresso jurídico da sociedade portuguesa da segunda metade de Oitocentos. Apesar de existir alguma prevalência de juristas no parlamento português, os níveis médios de deputados com formação jurídica não eram substancialmente maiores em Portugal do que noutros países europeus (Best e Cotta, 2000), não se constituindo a formação da elite parlamentar como um fator distintivo. Ainda assim, é inegável o contributo da Faculdade de Direito de Coimbra e da Academia das Ciências de Lisboa no movimento abolicionista português. A primeira por se encontrar associada a uma corrente criminalista regida por valores humanitaristas, de onde se desatacam Ayres de Gouveia ou o ministro Barjona de Freitas. À segunda pertenceram Pascoal José de Mello, António Ribeiro dos Santos, Francisco Freire de Mello, Silva Ferrão e Levy Maria Jordão, entre outros, todos eles produtores de doutrina que alimentou o movimento abolicionista português até 1867 (Cruz, 1967: 147).
Conclusão
A abolição formal da pena de morte para crimes civis em Portugal inseriu-se, assim, numa primeira vaga do movimento abolicionista, iniciada a partir do final da década de 1840, com vários estados a deixarem de aplicar a pena de morte e, em alguns casos, a retirarem-na dos seus ordenamentos penais. A abolição portuguesa aconteceu num contexto distinto da maioria dos países europeus, onde a democracia e a afirmação dos direitos humanos determinaram a abolição da pena de morte no contexto após a II Guerra Mundial. A mudança institucional deveu-se à permeabilidade da opinião pública portuguesa pelas ideias transnacionais liberais e humanistas. O alargado consenso conseguido na opinião pública não poderá ser dissociado da existência de um período de acalmia interna e externa. Em simultâneo, assistia-se à consolidação do liberalismo em Portugal, sendo evidentes o desejo de progresso e de reconciliação com um passado turbulento e violento. Num contexto em que o progresso socioeconómico era reduzido, em função da crescente periferização socioeconómica do país, o progresso possível era o civilizacional ou moral. A abolição da pena de morte foi um exercício de projeção de poder e uma manifestação da vitalidade do estado português para o exterior, num período de perda de poder militar e económico na esfera internacional.
A abolição de facto da pena de morte para crimes civis desde 1846 e formal para crimes políticos desde 1852 foram precedentes relevantes para o desfecho de 1867. Assim, esta transformação institucional parece resultar de uma articulação entre a influência das novas ideias liberais com os interesses nacionais próprios provenientes da afirmação do estado liberal. A aplicação deste modelo de análise integrado possibilitou relevar não só a importância do ideário liberal humanista, mas também dos interesses dos atores e do contexto socioeconómico do país. O mapeamento de processo do movimento abolicionista através da narrativa histórica permite concluir que a Revolução Liberal de 1820 é o marco histórico que origina a intensificação do movimento abolicionista, sendo a Regeneração a conjuntura crítica que viabilizaria a abolição da pena de morte.