Introdução
Este artigo1 é fruto de minha pesquisa de doutorado, cuja etapa de trabalho de campo, de caráter etnográfico, transcorreu na cidade da Praia, capital de Cabo Verde, entre os meses de fevereiro e agosto de 2019, e fevereiro e março de 2020. Grande parte do trabalho foi realizada com crianças entre zero e seis anos de um jardim infantil em um bairro periférico da capital, aqui denominado zona.2 No entanto, também acompanhei crianças maiores (entre sete e 12 anos) em seu cotidiano pelo bairro e nos seus trajetos pela cidade.3 Neste caso, os dados foram construídos enquanto eu atuava como professor em uma das associações locais de moradores.4
O objetivo aqui é analisar uma dinâmica muito particular da relação entre pessoas adultas e crianças 5 neste contexto etnográfico, a saber: a dinâmica dos castigos físicos. Neste trabalho, os castigos são entendidos como mecanismos de disciplina dos corpos e do comportamento de que os adultos lançam mão quando julgam necessário, a despeito das narrativas que as crianças constroem para justificar algum ato, ou alegar injustiça. À primeira vista a opção pelo castigo e sua aplicação é uma decisão arbitrária do adulto e que denota uma relação desigual de poder e um jogo de dominação que se desenvolve no binômio adulto-criança. No entanto, o que argumento neste trabalho é que o castigo é uma face do cuidado, uma prática para construir a pessoa (no sentido apontado por Mauss (2003b) em seu texto sobre a noção de pessoa).
A importância desse binômio é potencializada por uma característica específica do arquipélago cabo-verdiano: o fazer família. Carsten (2000, 2014) analisa diversas possibilidades de construir parentesco para além da consanguinidade e suas contribuições teóricas inspiram profícuas reflexões sobre o contexto cabo-verdiano. Nesta linha, diversos autores (Dias 2000; Lobo 2010, 2011, 2012, 2014; Drotbohm 2015) elaboram como a sociedade cabo-verdiana, marcada pelo movimento, constitui formas muito específicas de estender suas redes familiares transnacionalmente (mas também internamente), permitindo que a emigração seja um projeto de ascensão e reprodução social. Neste processo, as relações de parentesco se constroem baseadas em redes de solidariedade e reciprocidade, estendendo-se para fora da casa e envolvendo a vizinhança. Na zona não é diferente: as pessoas constroem redes de solidariedade atualizando constantemente as relações e mantendo um fluxo contínuo de cuidados, alimentos, presentes, favores e fofocas.
Neste contexto, parte da gerência da infância por parte dos adultos se constitui acoplando a ideia de castigos físicos às noções de cuidado e de educação. Assim, analisando o contexto da zona, trago dados que permitem pensar de que modo o ser criança está amarrado à possibilidade de ser castigado, demonstrando também que o ato de castigar não é exclusivo da relação entre mães e filhas e filhos, mas entre adultos e crianças, podendo esta pessoa adulta ser uma vizinha, professora, cuidadora, etc. Há uma concatenação entre a dimensão do cuidado, a dos castigos e a de ser criança. Destarte, ser criança em qualquer espaço da zona é ser submetido à lógica do castigo.
Buscando atingir os objetivos apontados, divido o artigo em três secções: na primeira, reflito sobre a definição do castigo e algumas intersecções com a noção de violência e maus-tratos; na segunda secção, trago casos etnográficos, buscando caracterizar quem era castigado, quem podia castigar e em que contexto os castigos eram aceites; na terceira, analiso os percursos que a prática de castigar realiza nas redes de relações que as crianças compõem. Concluo o trabalho com um caso limite que permite pensar de que forma a prática dos castigos enquanto componente do cuidado pode ser assimilada pelas crianças.
Apontamentos sobre castigos, maus-tratos e violência
É preciso definir o castigo enquanto categoria para este trabalho. Em campo, a categoria existe tanto no crioulo cabo-verdiano quanto no português, mas dificilmente é acionada para se referir aos atos disciplinares. Como forma de “corrigir” comportamentos inadequados, as pessoas adultas não ameaçam colocar a criança de castigo, mas sim de bater. Por exemplo, “n ta sotau” e “n ta dau na cu” são expressões usadas e que podem ser traduzidas como “vou te bater”. Tanto adultos quanto crianças (estas entre si, somente) usam essas expressões em diferentes situações; é a análise do contexto e da intencionalidade do que é dito que vai indicar se se trata de uma prática disciplinar ou não. Assim, correndo o risco de transpor algumas categorias, pego o termo “castigo”, entendido aqui como uma forma genérica de se referir às diversas práticas disciplinares de que os adultos lançam mão, para elaborar sobre essa dinâmica específica da relação entre adultos e crianças na zona. Portanto, o sentido da categoria castigo está orientado e em consonância com o sentido da palavra “punição”.6
No contexto da zona, uma criança pode ser castigada de diversas formas: apanhando, ficando sem comer, perdendo privilégios de circulação na rua, etc.; em diversos momentos e lugares, como na igreja, na escola, em festas, no trajeto do transporte público; e por motivos variados. É a parcela de poder que emana do ser adulto que atribui força e legitimidade às decisões de castigar ou não, isto é, cabe aos adultos, e sempre a eles, a palavra final sobre um castigo, de modo que réplicas ou tréplicas infantis dificilmente são levadas em consideração.
A associação do castigo enquanto uma expressão da violência é um achado comum na literatura sobre o tema. Janille Ribeiro (2014), por exemplo, dialoga com diversos autores para concluir que o castigo é associado à dimensão da violência, representando riscos morais e práticos para o desenvolvimento do ser humano no processo de socialização da criança. Do ponto de vista da filosofia e psicologia do desenvolvimento, a autora mostra como a punição não tem valor pedagógico, trazendo, pelo contrário, riscos à formação do indivíduo.
Por sua vez, Gabatz et al. (2010), partindo da perspectiva de crianças brasileiras que foram abrigadas institucionalmente devido a casos de violência intrafamiliar, busca compreender as noções de cuidado que estão em jogo. Usando de dinâmicas e brincadeiras, as pesquisadoras concluíram que o cuidado é entendido como a ausência de violência. Assim, a soma de carinho, alimentação, higiene, etc., é entendida como cuidado. Os castigos, entendidos como palmadas, beliscões ou outras formas de infligir dor são alocados pelas crianças e pelas pesquisadoras no campo da violência, da ausência de cuidados. As autoras não abordam a visão das adultas outrora responsáveis por essas crianças, de modo que o entendimento delas acerca dessas práticas não é conhecido.
Em oposição, Ciuffo (2013), falando também a partir do contexto brasileiro, associa os castigos à violência intrafamiliar da qual as crianças são vítimas, mas busca entender a perspectiva dos adultos responsáveis. Aqui, a autora está em concordância com as legislações brasileiras que estabelecem como violência a manifestação de força nessa relação adulto-criança. No entanto, ela também demonstra como os adultos da família diferenciam em seu discurso a noção de maus-tratos e castigos, isto é, estabelecendo um limite claro entre o que pode ser lido como uma “palmada pedagógica” e a agressão motivada por crueldade da pessoa adulta.7 Duas noções operam simultaneamente nas contribuições da autora: a noção da violência enquanto uma categoria filosófica e científica atribuída à realidade, e as noções dos sujeitos da pesquisa (adultos) que se diferenciam desta categoria, propondo outros entendimentos acerca dos castigos no contexto intrafamiliar. Nestes discursos, os castigos são dissociados da violência e alocados junto às práticas de cuidado, afeto e responsabilidade pela educação da criança.
Por fim, Fernanda Ribeiro (2011, 2013), analisando o contexto brasileiro e o processo de tramitação da chamada “lei da palmada”, demonstra como a questão dos castigos é complexa. No campo dos discursos, diversas definições entram em jogo, com agentes de distintas origens argumentando limites. Assim, o campo semântico da violência, dos maus-tratos e do cuidado se alarga e intersecta. Enquanto ativistas políticos argumentam pelo fim de qualquer castigo físico, deputados defendiam que não é factível (ou até justo) retirar dos pais o direito de “educar” as suas crianças.
Autores como Arthur Kleinman (2000) e Veena Das (2000) refletem sobre a presença da violência no cotidiano de modo que o que seria originalmente um evento limítrofe, passa a ser uma condição material e simbólica do dia a dia. A análise do primeiro dá conta de como as condições socioeconômicas influenciam diretamente o cotidiano das pessoas que estão ocupando posições de vulnerabilidade social de tal modo que o Estado torna-se um perpetrador da violência ao não fornecer as condições mínimas de subsistência. Essa violência, por sua vez, se reproduz nas relações diádicas, torna o próprio viver como uma violência. Já a análise de Das dá conta de como eventos de grande magnitude, no caso a Partição da Índia, geram traumas que condicionam a subjetividade dos sujeitos a tal ponto que a violência é revivida cotidianamente, ela molda a realidade a partir da memória. Essa infiltração de elementos macroestruturais nas microestruturas do cotidiano torna a violência um fenômeno palpável e corriqueiro.
Outros autores como Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2008) e Daniel Simião (2006) optam por distinguir a agressão da violência. Colocada desta forma, em campos distintos, a ideia de violência se complexifica: a intencionalidade e o aspecto moral da ação passam a ser essenciais para compreender o fenômeno. Trazendo para o caso que abordei aqui, é possível pensar como os castigos, embora possam ser caracterizados enquanto agressões, não são entendidos, de forma alguma, como atos de violência por meus interlocutores (adultos ou crianças). A responsabilidade de cuidar das crianças é grande e o caráter compartilhado e coletivo dessa tarefa estabelece uma pressão para que sejam adotadas todas as medidas para que a criança se torne a melhor pessoa possível. A intencionalidade de um castigo é, no fim, a construção da pessoa. Ora, Oliveira (2008) demonstra como a violência é, por si, um ato de desconsideração da pessoa, o que não está implicado na ideia de cuidado enquanto cultivo do ser.
Por fim, pensar a questão da violência no contexto cabo-verdiano não é tarefa simples. Carmelita Silva (2018), em sua tese de doutorado, defende o caráter altamente relacional da violência, pensando principalmente a partir da violência baseada no gênero (VBG). Para a autora, as posições na hierarquia social não estão estanques, de modo que a violência não flui apenas de um determinado polo dominante (geralmente o masculino) para um polo dominado (geralmente feminino). A violência enquanto fenômeno flui entre os polos e aciona outras pessoas na rede de relações, envolve alianças e parentesco, não é um acontecimento isolado. Essa natureza relacional do fenômeno indica que há mais para ver e analisar do que a agressão pura e simplesmente.
Como os dados etnográficos que analiso adiante mostram, pensar os castigos como atos de violência e maus-tratos significa reduzir o fenômeno a um campo altamente moralizante e condenável, por um lado, e, por outro, abrir mão da riqueza que é pensar o campo do cuidado como abarcando aspectos positivos e negativos da relação entre adultos e crianças. Portanto, falar de castigo a partir do contexto cabo-verdiano dificilmente será falar de violência.
Na zona é possível observar uma complexidade semelhante. Enquanto categoria de pensamento, a violência é associada com o contexto urbano, dos kassubodi (assaltos e furtos), ou com a violência baseada no gênero (VBG), ou ainda para se referir ao Brasil que é retratado nos programas policiais da rede Record de televisão. Assim, violência não é um termo acionado para descrever as relações atravessadas por castigos entre crianças e adultos. No entanto, a categoria “maus-tratos” surge no corpus da lei e pode ser acionada em campo como uma acusação de violação.
Os documentos internacionais dos quais Cabo Verde é signatário, entre eles a Convenção sobre os Direitos da Criança (UNICEF 1989) e a Carta Africana dos Direitos e do Bem-Estar das Crianças (OUA 1990), além do Estatuto da Criança e do Adolescente cabo-verdiano (2013), preveem que as crianças devem ser poupadas e protegidas de “maus-tratos”, e que a responsabilidade por esta proteção deve ser compartilhada entre Estado, família e sociedade. A noção de “maus-tratos”, no entanto, não é definida ou explorada. Portanto, existem brechas na legislação que são preenchidas por concepções cotidianas sobre o que são “maus-tratos” nas relações entre adultos e crianças. Caroline Archambault (2009) encontra situação semelhante entre os maasai, no Quênia. A pesquisa da autora mostra como o país, que também é signatário dos mesmos protocolos internacionais que Cabo Verde, joga com determinados elementos para realizar certas práticas de castigo físico no seio da família e da escola. A ausência de uma definição detalhada que capture diversas práticas na letra da lei abre espaço para a subjetividade e a interpretação dos indivíduos. Entre os maasai, os castigos físicos são uma forma de assegurar o caráter e inscrever a disciplina no corpo das crianças e a prática é muito bem estruturada, de modo que determinadas características (como gênero, idade e laço social, por exemplo) são levadas em consideração para exercer o direito de castigar. Ignorar essas características estruturais é cruzar um limite, inaugurar outras relações entre os indivíduos, entre elas a de abuso infantil. A observação do cotidiano cabo-verdiano permite vislumbrar alguns limites entre a noção local de “maus-tratos” e a de castigos, como é possível perceber no exemplo a seguir.
Em fevereiro de 2020, algumas obras de urbanização estavam em andamento na zona e uma delas incluía a construção de uma estrada, o que demandava da Câmara Municipal a remoção de algumas moradias que haviam sido construídas sem autorização do governo. Uma das casas a serem removidas pertencia a Roberval e sua pikena.8 Para evitar a derrubada da casa, o homem buscou duas filhas suas com sua esposa e as colocou dentro da casa que deveria ser derrubada, intentando evitar a ação governamental.
A comoção foi grande quando a ação da Câmara foi interrompida por conta da presença inadvertida das crianças, que foram retiradas, e a casa derrubada. O caso se desdobrou em muitas brigas e intervenção das vizinhas. Roberval sempre castigava as filhas e filhos, dava tapas, beliscões e batia com o cinto quando queria “corrigir” as crianças, mas a comunidade não intervinha. No caso relatado acima, no entanto, ele havia cruzado um limite que a vizinhança não poderia tolerar: havia colocado em risco a vida das crianças. O assunto permaneceu por alguns dias nas conversas cotidianas e os órgãos governamentais e não governamentais responsáveis foram chamados para verificar a situação lida pela comunidade como sendo de “maus-tratos”.9 Diversas visitas institucionais foram feitas à casa de Roberval e sua família para averiguar a necessidade de retirar as crianças do lar e levá-las para um abrigo. Por fim, nenhuma medida adicional foi tomada e as crianças permaneceram com a família.
Neste exemplo, alguns limites podem ser estabelecidos: bater ou gritar com as crianças é socialmente aceitável, desde que haja uma razão para tal, ou seja, desde que seja para “consertar” o comportamento de uma criança. Entretanto, submeter as crianças a algum risco para outros fins, neste caso evitar a derrubada de uma moradia, torna-se inaceitável e condenável socialmente. A denúncia de “maus-tratos” feita pela vizinhança aos órgãos responsáveis indica, entre outros fatores, que o castigo físico para fins pedagógicos não é entendido como uma forma de colocar a criança em risco.
Acompanhar este caso foi fundamental para estabelecer a diferença que é posta na zona entre os castigos como forma de educar, e as ações de negligência e “maus-tratos” que devem ser apontadas, repreendidas e denunciadas. No entanto, não há consenso em relação às sanções que devem ser aplicadas aos adultos que cruzam os limites. Dentre as muitas conversas que tive com os adultos sobre o caso relatado, destaco a interação entre Maria, a dona do jardim infantil, e Eliane, funcionária da instituição. As duas mulheres concordavam que os limites haviam sido ignorados pelo pai das crianças, e que é inaceitável impor riscos à integridade das crianças. Todavia, enquanto Eliane era a favor da remoção imediata das crianças para um abrigo, Maria dizia que não era esse o caminho, que “lugar de criança é com pai e mãe”, outro tipo de intervenção era necessária para resolver o caso. Eliane dizia que o importante era a saúde das crianças e que no abrigo elas teriam roupa, educação e comida.
A discordância das duas mulheres, tendo em vista que nenhuma delas se opunha a Roberval quando este castigava as filhas, indica dois elementos interessantes para a análise: (1) os castigos são práticas legítimas, não questionadas pela vizinhança, e não são interpretados como maus-tratos; (2) os limites, quando cruzados, demandam sanções; no entanto, tais sanções não estão postas de princípio, isto é, são negociadas quando se chega a tal ponto. De um lado, temos uma opinião favorável à intervenção estatal na relação familiar, do outro, temos uma defesa de que estes problemas devem ser resolvidos no seio da família, que é, em última instância, o lugar ao qual pertence a criança.
Fora e dentro de casa: alguns relatos de castigos
Para abrir essa secção, gostaria de trazer um trecho de meu diário de campo, um relato de um dia comum no jardim infantil onde grande parte desta pesquisa transcorreu:
“No Jardim, tivemos um momento dramático. Nilton bateu em Carlos di Tita, e Dwayne foi ‘fazer justiça’, revidando a agressão sofrida pelo amigo. O choro da primeira e da segunda agressão provocaram comoção e agitação entre as crianças finalistas, as mais velhas do lugar. Maria, a responsável, logo chamou os envolvidos, que não se apresentaram em um primeiro momento, pois ela estava com o pó [pau] na mão e já era sabido o resultado da chamada. As outras crianças se envolveram e arrastaram os três meninos até onde estava a responsável. Ao fim, uma roda se formou em torno dos três meninos e da mulher com o pó. Esta perguntava repetidamente a Nilton ‘abô e pai? Abô e tio di jardim?’ [você é pai? Você é tio do jardim?], ao que o menino sacudia a cabeça, negando. As outras crianças observavam, a maioria em silêncio, mas uma ou outra sorria com maldade. A responsável deu três golpes com o pó na palma da mão do menino. Nilton começou a chorar alto, de uma forma que eu não havia presenciado ainda, era possível dizer que o golpe havia sido forte pelo barulho que fez. Dwayne, que sabia que era o próximo, tentou se afastar, roendo as unhas como fazia quando estava com medo. As outras crianças tentavam empurrá-lo de volta, até que a mulher lhe pegou pela mão e perguntou se era certo ‘fazer justiça’, ao que o menino não respondeu, ele apenas chorava, olhava assustado para o pó, e pedia para não apanhar. A responsável lhe deu duas pancadas fortes e o choro do menino se transformou em gritos de dor enquanto ele sacudia as mãos e a multidão se dispersava.” [Diário de campo, trecho editado, 10 de junho de 2019]
Deste trecho gostaria de ressaltar alguns elementos que se repetiam cotidianamente no jardim infantil, a saber: a forma de castigar as crianças que consistia majoritariamente no uso de um pedaço de pau (pó, em crioulo) para dar pankada (golpes) nas mãos, pernas e polpa (nádegas); o motivo do castigo, que geralmente gravitava em torno de agressões entre as crianças; a comoção, onde algumas crianças buscavam contribuir de alguma forma para que o castigo fosse realizado; e a reação das crianças ao serem castigadas.
Além do pó, as crianças podiam ser castigadas com chineladas, tapas (beliscões) ou o que estivesse à mão da responsável na hora, caso as emoções estivessem agitadas. O mais temido era o pó, já que era usado para castigos mais severos e causava mais dor. A simples menção do objeto, ou a pergunta por ele (“undi nha pó?”, onde está o pau?) fazia com que algumas crianças parecessem aterrorizadas, mesmo que não estivessem fazendo algo de errado. As partes do corpo em que se bate, é importante ressaltar, são as partes que se cobrem com roupas, onde há “carne” para receber a pankada e onde não é visível caso deixe marcas. É preciso “saber bater”, como dizia a dona do jardim, não se pode arriscar machucar a criança de forma duradoura, pois o objetivo é ensinar uma lição.
Se o castigo era com beliscões, estes se davam no braço, na barriga, ou na polpa e consistiam em agarrar uma parcela de carne ou pele com os dedos em pinça e torcer até que a criança fizesse careta, o que dava a entender que a mensagem havia sido transmitida. A cabeça é o único lugar interdito a receber golpes de qualquer natureza, pois se entende que pode trazer riscos ao desenvolvimento da criança. O castigo é visto como um ato disciplinador que não pode causar sequelas para o desenvolvimento.10
Dentre os motivos que levavam a este tipo de castigo,11 dois chamam especial atenção: “perturbação da ordem” ou descuido com o espaço, e a agressão entre pares. A “perturbação” diz respeito aos pequenos acidentes causados pelas crianças, como derramar iogurte ou leite no chão, demandando serviço de limpeza por parte das responsáveis; ou ainda quando a criança fazia barulho na hora da soneca ou causava agitação nos momentos de silêncio e atividades orientadas. O jardim contava com apenas duas mulheres responsáveis, que se desdobravam para cuidar das aproximadamente 30 crianças de diversas idades e, neste contexto, a “perturbação da ordem” significava mais trabalho para elas.
No que toca a agressão entre pares, esta consistia na criança que batia em um companheiro ou companheira e era logo delatada pelo choro alto de quem tivesse apanhado, ou por outra criança buscando reparação. Isso atraía os olhares e a atenção dos adultos responsáveis e precipitava as medidas entendidas como cabíveis, neste caso os castigos. No entanto, a agressão entre pares é também uma característica muito comum neste contexto, pois as crianças estão o tempo todo se batendo para revidar alguma provocação verbal, ou para vencer uma disputa por brinquedos, logo os castigos são igualmente frequentes. Existe também a possibilidade de uma agressão não propositada, como acontecia na hora das brincadeiras, onde as crianças ficavam muito agitadas e acabavam se esbarrando no pequeno pátio do jardim. As narrativas de que elas lançavam mão para se defender, alegando que não havia sido intencional, não eram ouvidas.
Sempre que algum evento maior acontecia, como no relato acima envolvendo Dwayne, a comoção envolvia todas as crianças maiores de três anos. Algumas corriam na direção oposta, com medo de serem pegas nos castigos (de fato, era comum outras crianças serem acertadas sem querer por chinelos arremessados, por exemplo). Outras faziam questão de testemunhar, tendo em vista que elas é quem tinham levado o assunto ao conhecimento das responsáveis. Outras estavam ali para rir e zombar das castigadas. Estas que riam também eram castigadas com frequência e pareciam felizes em não serem elas as que apanhavam naquele momento. A comoção ia se dispersando na medida em que o castigo era executado e não havia mais nada a ser visto que não a criança castigada chorando. A rotina retomava a calmaria até ao próximo evento.
Por fim, a reação das crianças é chave para entender o fenômeno, proporcionando uma perspectiva diferenciada. As crianças entendem o castigo, conseguem prevê-lo, lembram-se da dor que sentiram outras vezes e evitam, tentam correr, afligem-se.12 E todo esse processo de racionalização das pankada que recebem não parece surtir o efeito desejado pelas responsáveis, isto é, o de ensinar que o mau comportamento não pode ser reproduzido. O que é facilmente observado no campo é que a criança que apanha provavelmente apanhará de novo e de novo, pelos mesmos motivos, e não é que ela goste do castigo, pelo contrário, ela o teme e busca fugir. Ao observar as crianças e ouvindo-as justificar seus atos era possível perceber que a relação causal que operava para os adultos não operava para as crianças, isto é, a ideia dos adultos de que o castigo provocaria como resposta o “bom comportamento” não vigora. Em consonância com Ribeiro (2014), é possível afirmar que é mais provável que a criança aprenda a dissimular seus atos a performar o comportamento desejado pelos adultos.
No trecho destacado acima, temos a reação de Dwayne, por exemplo, que roía as unhas em apreensão e tentava se afastar, vendo que o castigo do colega em breve seria o seu. Não era a primeira vez que o menino apanhava, inclusive pelo mesmo motivo, isto é, o de “fazer justiça”. Ele antevia o castigo pela observação do evento que se desdobrava, mas não necessariamente associando com o ato de bater em outra criança. O choro começa antes da pankada, transformando-se, ou seja, comunicando outras coisas à medida que o rito de castigo avançava. Se antes o choro era de medo e apreensão, talvez até de solidariedade com o colega, ou de súplica para que não fosse o próximo, depois passa a ser de muita dor, de mágoa. Neste mesmo dia, após parar de chorar, o menino ficou quieto em um canto por um tempo e, aproximando-se de mim, disse em voz muito baixa: “tio, ami kre bai nha kaza, n ka kre bem jardim mas” (“tio, quero ir para casa, não quero mais vir ao jardim”). No outro dia ele estava lá de novo, pois não cabia a ele a decisão de ir ou ficar em casa.
O caso, embora dramático, era recorrente demais, repetindo-se três ou quatro vezes na semana. Às vezes, chegando ao jardim, eu ouvia algum choro e Maria me contava que por alguns motivos tinha castigado as que agora choravam. O que não impedia estas crianças de “aprontarem” de novo e o castigo ser repetido. É preciso ressaltar que a prática de castigar não acontecia escondida e a presença de mães ou outros parentes não constrangia as responsáveis do jardim. O entendimento entre as mulheres era o de que o castigo só acontece quando necessário. O que poderia acontecer era a mãe perguntar o motivo e, ao ouvir a justificativa da responsável, concordar que a atitude de castigar fora correta.
Maria me explicava que o castigo é o que endireita a criança, que é preciso castigar para que a criança se comporte bem, porque a criança cabo-verdiana “ka ta obi” (não ouve, não obedece), “ta faze so kabesa rixu” (teima, é cabeça dura) e “ta da so di dodu” (se faz de doida, dissimula). Além do pó, que ela usava no jardim, ela possuía alguns instrumentos que utilizava para castigar os filhos diariamente e sempre acionava o ensinamento de uma irmã mais velha para justificar os métodos de criação dos filhos. A irmã lhe dizia “tem que bater todo dia para o menino aprender quem é que manda”, pois o exercício da surra seria também um exercício da autoridade materna que deve ser constantemente relembrada (Archambault 2009).
No entendimento das pessoas adultas da zona, a criança não é digna de confiança e seu comportamento “natural” é ruim ou insatisfatório, isto é, a criança se comporta mal como padrão e é preciso lhe impor o bom comportamento.13 Neste processo, a imposição quase sempre é um sinônimo de castigo físico. No caso a seguir é possível vislumbrar como as mães participam e autorizam o processo de castigar no espaço educacional.
No jardim, havia uma chapa metálica que separava o pátio e a cozinha. Por meio de uma pequena porta, conseguíamos transitar entre um espaço e outro, embora as crianças não fossem autorizadas a tal trânsito, exceto quando chamadas, ou na hora do cochilo, quando um penico era colocado na escada do outro lado da porta e elas podiam acessar o lugar, desde que pedissem permissão. Certo dia, na hora da soneca, uma pequena confusão se formou e dois meninos começaram a brigar, caindo sobre a porta que, já frágil, quebrou na dobradiça, caindo com estrondo. Maria, que não estava no pátio na hora, veio correndo ver o que havia acontecido e se alguma criança estava machucada. Ao encontrar a porta no chão e os dois meninos a chorar, pegou o pó e bateu nos meninos repetidamente, enquanto gritava que eles precisavam aprender a se comportar e entender que hora de dormir era para dormir, e não para ficar brincando ou “na ranja guéra” (“arranjando briga”). Os meninos choravam alto, as outras crianças não levantaram do colchão, apenas olhavam assustadas.
Na hora de ir embora, Maria contou para a mãe de um dos meninos o que havia acontecido e o menino começou a chorar, dizendo que não tinha feito nada. A mãe ameaçou dizendo “oras ki nu txiga kaza bu ta odja negão” (“na hora que chegarmos em casa, você vai ver com o negão”). Naquele momento estranhei o uso dessa palavra, que não era do crioulo e perguntei o que era, pois a reação imediata do menino foi a de implorar para que a mãe não fizesse uso do objeto. A mulher me respondeu que se tratava de uma tira grossa de borracha, tirada de um pneu ou câmara de ar, que ela usava para bater nos filhos e filhas quando eles não se comportavam. Ela dizia rindo, enquanto o menino aparentava pânico, chorando copiosamente.
O outro menino foi embora com a irmã mais velha. Maria também contou o que tinha acontecido e mandou que o pai do garoto viesse no dia seguinte para arrumar, já que ele era conhecido por trabalhos com serralheria. No dia seguinte, o menino chegou com a mãe, que quis saber o que acontecera e porque o filho chegara chorando em casa. Maria contou-lhe a história e mostrou a porta. A mãe disse que isso não podia acontecer, que se o filho estava se comportando mal, era preciso que lhe batessem, que ela podia bater, porque “tia di jardim e sima mae ku pai” (“tia de jardim é como mãe e pai”). Ela se virou para mim e disse a mesma coisa “tio, pode sota-el” (“tio, pode bater”), insistindo que autorizava a prática. Perguntei se ela batia no menino em casa, e ela confirmou, alegando que ele era teimoso e “ka ta obi” (não ouve, não obedece). O menino chorava e contava para a mãe que era mentira e que ele não tinha derrubado a porta, mas as mulheres não lhe deram ouvidos.14
Esse evento ocorreu em abril de 2019 e foi a primeira vez que uma mãe verbalizou para mim a autorização que até então parecia tácita, isto é, a de bater nas crianças caso elas se comportassem mal.15 Até este momento, eu pensava nos castigos como uma expressão das responsáveis do jardim e do que elas entendiam como solução para os desvios de comportamento das crianças. No entanto, a fala desta mãe ampliou a perspectiva, dando a entender que existe certo pacto coletivo entre as pessoas adultas de que não só há um direito de bater nas crianças para discipliná-las, mas que esse direito é passível de ser transmitido em determinadas situações e contextos. A partir desta hipótese, atentei-me às situações que poderiam elucidar esta questão.
Assim, quando as crianças mais velhas, aquelas que já iam à escola, me contaram que seus professores lhes batiam ou infligiam castigos diversos, fui percebendo que também com elas este pacto parecia ter efeito. A trajetória delas era marcada por castigos físicos tanto em casa quanto nas escolas.
Mariana (11 anos), por exemplo, me contava que seu professor distribuía taponas (tapas na cabeça) 16 e puxões de orelha quando os meninos 17 não entregavam a tarefa de casa ou estavam se comportando mal, podendo ainda lançar mão de palmatória. Miguel (nove anos) contava que o castigo comum era ficar de joelhos na frente da sala com os braços abertos (às vezes tinha milho no chão, em outras ocasiões livros eram equilibrados na mão). Walter e Everson (ambos com nove anos) me contaram a história da vez em que o professor retirou o cinto para bater em dois meninos que começaram a brigar dentro da sala de aula.18 Hyasmine (oito anos) me contava que a professora deixava sem lanche as meninas que não entregavam o TPC (trabalho para casa), mas colocava os meninos sentados na frente da sala ou às vezes de joelhos. Por fim, um aluno do ensino secundário, Armando (14 anos), quando perguntado se em sua escola os professores batiam nos estudantes para castigar, respondeu incrédulo que “não! Isso é só com esses daí [referindo-se às crianças pequenas que estavam à nossa volta]”. Cada uma dessas crianças frequentava escolas diferentes, em diferentes bairros da cidade, já que a zona não conta com uma escola em seu território.
Era evidente para mim que, independentemente da escola que as crianças da zona frequentavam, os castigos eram constantes até certa idade, isto é, durante todo o ensino pré-primário (o jardim) e primário. Os primeiros anos escolares das crianças eram permeados de punições de diversos tipos, embora houvesse professoras que não aderissem à prática, como a professora de Djasmine (12 anos).
Djasmine contava que sua professora achava errado bater e que outras profissionais não deviam fazer isto. Segundo ela, a professora punia as estudantes lhes tirando o recreio ou não deixando tomar água ou ir ao banheiro. Neste caso, cabe ressaltar dois pontos: o primeiro é o de que, embora não fosse físico, isto é, não se expressasse diretamente sobre o corpo, o castigo aplicado pela professora podia ter consequências perigosas, tendo em vista que o recreio era também a hora da refeição e, sem poder sair da sala, as crianças perdiam o que poderia ser a primeira refeição do dia. O segundo ponto diz respeito ao risco de deixar as crianças sem água ou sem ir ao banheiro e o efeito que isto pode acarretar no corpo, considerando as longas horas que elas ficam dentro de sala de aula. Mesmo que não haja expressão física, o castigo materializa-se no corpo. É pelo corpo que a disciplina acontece (ou tenta acontecer). O corpo é o eixo de experiência do indivíduo (Le Breton 2010) e é, portanto, o campo ideal de ação de mecanismos disciplinares (Foucault 1987).
As mães das crianças que estão no jardim autorizam e atualizam constantemente a permissão de castigar fisicamente as crianças quando as deixam no jardim. A maioria das crianças era pequena demais para andar sozinha, sendo acompanhada por responsáveis que aproveitavam o momento para deixar alguma recomendação, como a de bater na criança caso ela se comportasse mal. Restava então saber se o mesmo acontecia com as crianças maiores que já iam à escola e que também eram castigadas e em que momento se daria essa autorização. Explico-me.
Em Cabo Verde, parte do desenvolvimento da criança inclui sua circulação quase indiscriminada pelos espaços, pela cidade e, algumas vezes, pela ilha.19 A rede de parentela e solidariedade que se estende pelo arquipélago traça caminhos possíveis para que as crianças estabeleçam verdadeiros circuitos, indo e vindo tanto no nível mais cotidiano, isto é, caminhando pela rua, realizando favores, levando e trazendo bens e recados, etc., quanto em níveis mais amplos, regionais e até transnacionais (Lobo 2012, 2014).
Das crianças que iam à escola era esperado que fossem sozinhas, ou com amigas e companheiras de idade aproximada. O acompanhamento de uma pessoa adulta já não se fazia necessário, então o contato entre a mãe ou responsável com a professora era reduzido em relação ao jardim. Mesmo sem este contato e essa constante atualização da permissão para castigar, as crianças ainda eram castigadas na escola. Na próxima secção, exploro algumas possibilidades que permitem compreender como a noção de cuidado com as crianças é compartilhada.
“Profesora e sima mãe ku pai”: continuidades entre casa e escola
Foi Margarida, minha vizinha, quem um dia me apontou um caminho para compreender como se transmitia a autorização para que professores castigassem as crianças. Ela é mãe de sete crianças: duas meninas e cinco meninos. As duas meninas frequentavam a isplikason (aula de reforço) comigo nas tardes de segunda e quarta-feira em uma associação local. Certo dia, em um apagão elétrico, saí à rua para ver se algo podia ser feito e Margarida estava sentada na esquina esperando o filho mais velho voltar da igreja. Ela se mostrava preocupada, pois, em sua fala, o “mundu sta mariadu” (uma expressão que dá a entender que o mundo está perigoso, errado), e passou a falar sobre a criação de filhos e filhas e como é difícil criar no caminho de Deus quando o mundo propunha outros caminhos que pareciam mais fáceis. Ela me disse que tem fé na escola e na educação, porque é uma segurança para a mãe saber que as crianças estão seguras lá enquanto ela pode trabalhar vendendo produtos diversos pela cidade. Margarida ainda afirmou que mandar as crianças para a escola significa confiar que as professoras vão ser “como mães”, vão cuidar como tal e vão bater se preciso for. Perguntei se ela não achava ruim que batessem nas filhas ou filhos e ela disse que não, já que, na escola, a “profesora e sima mãe ku pai” (“professora é como a mãe e o pai”), elas podem bater, pois se batem é porque a criança fez algo de errado. Neste discurso, a escola torna-se um abrigo material que permite que a mãe saia de casa e trabalhe com tranquilidade, por um lado, e moral, fornecendo um aporte para o desenvolvimento da criança enquanto uma “boa pessoa”. A escola é uma instituição de confiança e de continuidade da família.
A concepção de que as professoras são como mães aventa algumas possibilidades analíticas, dentre as quais destaco: (a) existe localmente uma ideia de continuidade entre casa e escola que se traduz também em uma continuidade entre a educação no sentido institucional e a educação no sentido do comportamento, a socialização; (b) existe um conjunto de atitudes em relação às crianças que são exclusivas de quem cuida e, tendo em vista esta lógica compartilhada, esse conjunto pode ser temporariamente transferido, neste caso, para a escola.
Para explorar a ideia de uma continuidade entre casa e escola, gostaria de retroceder um pouco e esboçar melhor o contexto em que as crianças crescem na zona. Neste bairro periférico (e em outras localidades, como os interiores da ilha de Santiago, onde fica a capital do país) as crianças circulam muito pela rua, elas ocupam este espaço com suas brincadeiras diversas, estão sempre andando para cima e para baixo realizando um mandado.20 No entanto, essa circulação não acontece sem uma poderosa vigilância por parte das pessoas adultas. Aonde vão, as crianças respondem ao chamado de adultos que lhes conhecem, ou conhecem as mães e pais e investigam a motivação de elas estarem fora de casa. A resposta da criança, se satisfaz ao adulto, é aceite e ela pode seguir realizando suas tarefas. No entanto, quando a resposta não agrada, isto é, quando o adulto decide que a motivação não é suficientemente forte para justificar estar fora de casa, ele ordena que a criança volte, a acompanha até casa, ou liga para a mãe para avisar.21
É preciso compreender que a criança não está solta na rua, muito pelo contrário, ela está sob vigilância constante aonde quer que vá.22 As pessoas da comunidade se reconhecem e se cuidam e a criança é ensinada a respeitar a autoridade de qualquer adulto, assim como a aceitar fazer favores para outras pessoas. Assim se constrói uma pessoa generosa, que trabalha para manter as reciprocidades no cotidiano. O cuidado com as crianças, portanto, é compartilhado em uma rede que implica muitas pessoas em sua educação, fazendo com que este cuidado seja multiplicado (e não diluído). O cuidado se manifesta no cotidiano de diversas maneiras a depender da posição relacional das pessoas envolvidas. Nesse esquema, professoras tendem a tomar para si tarefas de cuidado mesmo fora do ambiente de trabalho. Tais tarefas se manifestam em alertas e uso de sua autoridade com crianças de outras casas (é preciso lembrar que essas professoras também são mães, tendo suas crianças em suas casas para cuidar).
Assim, retomo as duas possibilidades analíticas apontadas anteriormente. Na primeira delas, propus que há uma continuidade entre casa e escola no que tange às possibilidades de educação. O processo de educação pode ser entendido como aquele que ensina a criança a se comportar apropriadamente, que constrói seu corpo e busca moldar seu caráter e que não está circunscrito pela instituição escolar, não cessa quando esta criança sai de casa ou do raio de alcance da influência maternal e familiar. O processo lhe acompanha quando outras pessoas cumprem o papel de ensinar e cuidar. A educação passa a ser uma condição centrada na criança e não sendo contida no binômio mãe-criança, mas se estabelecendo enquanto um polinômio mãe-criança-adultos-escola. Logo, os adultos que estão na escola não estão destacados da rede de cuidados, mas a compõem em continuidade. Quando Margarida afirma que a “professora é como mãe e pai”, ela está posicionando estas pessoas em um nó muito próximo da rede de cuidado, atribuindo autorizações que são entendidas como da mãe e do pai. O que nos leva diretamente à segunda possibilidade, isto é, a de que há um conjunto de atitudes em relação às crianças e que está alinhavado com a dimensão do cuidado, como já demonstrei acima. A responsabilidade de cuidar implica uma obrigatoriedade em exercer todos os papéis contidos na relação, tanto o de alimentar e acarinhar, quanto o de castigar e corrigir.
Considerações finais
Antes de encerrar, gostaria de trazer um caso que me permite refletir sobre um outro lado dos castigos, o das crianças que têm a memória marcada por eles. Trata-se do caso de um menino, já entrando na adolescência e que certo dia me contou que, quando criança, estava conversando com alguns amigos em uma roda no quintal da casa de sua vizinha, que era responsável por ele enquanto a mãe estava fora. Em determinado momento, o menino compartilhou com os amigos algo que havia visto por acidente no fim de semana anterior: ao entrar no quarto da mãe sem avisar, flagrou-a e ao pai em pleno ato sexual. A vizinha, que entreouvia a história começou a brigar e lhe chamou para dentro, onde acendeu um fósforo e fez com que o menino apagasse dentro da boca. Anos separavam a minha conversa com ele deste acontecimento, mas a lembrança permanecia como um tormento. Sua relação com a vizinha era visivelmente marcada pelo medo e sua personalidade extrovertida transmutava-se quando ela lhe chamava para pedir algum favor.
Esse caso reflete um lado dos castigos que mencionei anteriormente, mas que ainda necessita reflexão em trabalhos futuros: a percepção da criança e o aprendizado resultante. Na rotina de cuidados compartilhados as crianças, principalmente as mais agitadas, as que “ka tá obi” (não ouvem, não obedecem), são castigadas várias vezes e por diversas pessoas. Algumas demonstram medo ao serem chamadas, outras desafiam a ameaça do castigo e aceitam estoicamente as pankada, mas no fim, o fenômeno do castigo se repete como se a lição a ser ensinada não tivesse sido aprendida.23
Trago esse dado no final para matizar e mostrar como é complexa a prática do castigo. Embora os protocolos internacionais dos quais Cabo Verde é signatário prevejam fim de práticas de maus-tratos, e agências de vigilância dos direitos das crianças, como Instituto Caboverdiano da Criança e do Adolescente (ICCA), estejam atentas para intervir em caso de limites sendo desrespeitados, no cotidiano são as pessoas engajadas no cuidado que estabelecem, tensionam e redefinem tais limites. Nessas relações, as crianças têm pouca fala, mas ao ouvir o que elas têm para contar, percebo que os efeitos do castigo podem não ser aqueles que são esperados pelos adultos.