Introdução
O trabalho colaborativo é um procedimento muito presente na arte contemporânea porque ele promove o encontro de pessoas, ideias e talentos. Reunidos para trabalhos contínuos ou pontuais os coletivos possibilitam novas maneiras de criar arte e cultura e propor fricções no espaço público tal como o trabalho desenvolvido pelo Coletivo Descolônia, que reúne alunos, ex-alunos e professores do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora. De caráter transdisciplinar o coletivo questiona a escassez da temática no currículo vigente, estimula e difunde a produção artística de criadores negros e negras na região da zona da mata mineira e promove ações no espaço urbano que problematizam o racismo na sociedade brasileira.
Segundo Assunção (2018), o Coletivo Descolônia é resultado de encontros promovidos em 2016 por um grupo de alunos, a grande maioria beneficiários de ações afirmativas, políticas de reparações étnico-raciais promovidas pelo Estado Brasileiro a partir do primeiro governo do ex-presidente Lula da Silva. Naquele momento, os encontros tornaram-se um espaço de "compartilhamento de experiências sobre ser negro e estar numa universidade pública de maioria branca" (Assunção, 2018:132). Ao lembrar destes encontros Assunção (2018:133) afirma:
É interessante perceber como é ainda um processo doloroso e cansativo tratar sobre a temática afrobrasileira e como isso implica em mexer em um passado escravocrata que ainda não foi superado em nosso contexto brasileiro. Falar sobre descolonização implica em repensar uma nova universidade, pois seu estado atual se estrutura em um pensamento hegemônico de origem branca e europeia.
Em 2017, com o apoio da Prof. Dra. Eliane Bettochi que cedeu o espaço do Laboratório Interdisciplinar de Linguagens do Instituto de Artes da UFJF o Coletívo Descolônia foi oficialmente fundado. No ano seguinte, produziram a exposição "Preto ao Cubo", na Galeria Guaçuí em Juiz de Fora.
A mostra reuniu obras de 24 artistas (Figura 1) e teve a curadoria de Eliane Bettocchi e Karina Pereira. As obras tratam dos mais diversos temas que perpassam às experiências de negritude vivenciadas no Brasil e apontam temáticas caras aos jovens criadores afrodescendentes no país, tais como as questões de gênero e sexualidade, colorismo, colonialidade, genocídio da juventude negra brasileira e representatividade.
Essa variedade de abordagens refletiu também numa variedade de poéticas e procedimentos artísticos, tais a pintura, a escultura, a performance, a instalação, a videoarte, o lambe-lambe, o graffiti e a fotografia. Nesse texto pretendemos refletir sobre a obra de Matheus Assunção (1993), um dos artistas que participou da exposição "Preto ao Cubo".
Desenvolvimento
Nascido no Rio de Janeiro e de formação interdisciplinar, Matheus Assunção explora as interfaces entre a performance, a fotografia e o vídeo, ficando explicita a relação entre o corpo/sexualidade/gênero dissidentes e as marcas do tráfico negreiro no Brasil tal como vemos em Dos pesos que se carrega, 2018 (Figura 2 e Figura 3) e Ori gem, 2016 (Figura 4).
Da escravidão, no início do período colonial, até os dias que correm, as populações negras brasileiras têm sofrido como já apontava Nascimento (2016) na década de 1970, um genocídio institucionalizado e, sistemático, embora silencioso. Entretanto, cada dia mais denunciado e combatido pelos ativistas afro-descendentes e defensores dos direitos humanos, a "necropolitica" (Mbembe, 2018), entendida como "direito de matar" ou definir o direito à vida é uma forma contemporânea que fantasmagoriza a subjetividade e a vivencia negra.
A violência vivenciada há séculos por negros e negras fará com que na literatura, na filosofia, na política e na arte, o discurso negro seja dominado, segundo Mbembe, (2018) por três acontecimentos: a escravidão, a colonização e o apartheid. No caso brasileiro, acrescentaríamos ainda, a política do branqueamento o discurso da democracia racial. A "separação de si mesmo e do seu grupo" (Mbembe, 2018:143) é uma constante na produção visual afrodescendente brasileira, consequentemente na obra de Matheus Assunção. Nesse contexto, o corpo negro assume protagonismo enquanto memória suturada e suporte artístico.
Imagens psíquicas entrelaçam-se para constituir a memória e surgirem no campo simbólico e da representação. Na arte, mais importante que a verdade é a forma como a memória reorganiza e representa essas imagens, "o jogo de símbolos e a sua circulação, os desvios, as mentiras, as dificuldades de articulação, os pequenos atos falhos e os lapsos, em suma, a resistência à admissão" (Mbembe, 2018:187)
Os marcadores de africanidades como apontam Carvalho & Teodoro (2017) são fundamentais para pensarmos as epistemologias e as estéticas afrocentradas, a criação e a reflexão de conhecimento que tem na experiência afro-brasileira a base filosófica e epistemológica de suas atuações. As questões sobre a corporeidade negra como as características físicas étnico-raciais, a incorporação de estereótipos e imaginários racistas presentes desde os tempos coloniais e reforçados por teorias filosóficas e cientificas excludentes baseadas na inferiorizarão racial são problematizadas nas obras de Matheus Assunção porque são memórias e discursos que persistem e marcam o seu corpo enquanto sujeito negro. Pois como diz Silva (2014) no Brasil, o racismo, a discriminação e o preconceito racial que incidem sobre negros ocorrem não somente em decorrência de um pertencimento étnico expresso na vida, nos costumes, nas tradições e na história desse grupo, "mas pela conjugação desse pertencimento com a presença de sinais diacríticos, inscritos no corpo. Esses sinais remetem a uma ancestralidade negra e africana que se deseja ocultar e/ou negar" (2014:31).
O corpo como contestação e resistência amplia sua força quando além das questões étnicas agregam-se às de gênero e dissidências sexuais. Um corpo que não se ajusta a uma cisheteronormatividade gerando um discurso de força por meio do desvio como vemos na série Bixa Estranha, 2018 (Figura 5 e Figura 6) e na série Bixa Brasilis, 2018 (Figura 7 e Figura 8).
As imagens de Matheus Assunção apresentam um corpo que se reconstrói a partir de referências afro-brasileiras, indígenas, urbanas que fogem as categorizações e classificações. Referenciado por mitos, imaginários e religiosidades que valorizam o corpo como fonte e produtor de conhecimento e procuram desenvolver todos os cinco sentidos em experiências sensíveis e estéticas. Um corpo que tal como nas tradições africanas e indígenas integram o mundo natural e o mundo espiritual. Folhas de guiné, espadas de Ogum, raízes e ervas que protegem contra energias negativas e aproximam os humanos da dimensão sagrada do invisível.
Conclusão
Matheus Assunção é um artista hibrido e inventivo. Essa inventividade faz com que explore suportes e técnicas variadas e assuma identidades plurais. Fruta Gogóia, Bixa Estranha podem tanto denominar séries e performances quanto identificar o artista em si. Entretanto, não é possível falar em heterônimos porque nos parece que a faísca que acende seu fogo criativo e se desdobra em alter egos variados originam-se da mesma fonte. Independente do nome que assuma é o mesmo artista que está ali. Entretanto, isso não é visto por nós como uma falha, mas como qualidade de um artista que consegue articular uma linguagem própria.
As produções artísticas de Matheus Assunção mobilizadas por questões que interseccionam gênero, raça, classe e dissidências sexuais marcadas por uma vivência periférica ganham potência e visibilidade via plataformas digitais. A internet é o principal método de divulgação de suas obras, característica comum aos jovens artistas negros brasileiros com menos de trinta anos. Além disso, é preciso apontar que os suportes explorados pelo artista, tais como a performance, a fotografia digital e o vídeo despontam como os mais utilizados pelos artistas negros e negras contemporâneos, principalmente, os mais jovens e moradores das grandes cidades brasileiras. Dessa forma, acreditamos que ao olharmos com mais atenção para a obra deste artista estamos propondo diálogos e conexões com todo um coletivo de artistas afrodescendentes surgidos na última década que questionam a institucionalização da arte e renovam práticas artísticas, temáticas e de circulação de obras.