Introdução
Partindo do princípio de que o turismo envolve não apenas o ato de viajar, mas um espectro constituído por várias disciplinas, buscamos construir uma epistemologia do turismo pela arte, a partir do discurso de artistas ou criadores. Pensamos que a viagem possui um papel importante na história da arte. Desde o século XIX, a viagem já era reconhecida como maneira de estudar e praticar a técnica, aproveitando a natureza e os monumentos do antigo e novo mundo.
Atualmente, o papel do deslocamento na arte, ultrapassa a ideia inicial dos diários de viagem. O que antes era um caminho para se desenvolver arte, se tornou discurso e fundamento teórico nos processos artísticos. Nesse tempo, encontramos nas perspectivas artísticas sobre a atividade de viajar, um olhar satírico, outras vezes repulsivo, mas também, observamos tentativas para reinfundir a noção de viagem dos românticos e do Grand Tour.
Pensamos que nas obras de arte, o coeficiente autoral permite-nos maneiras individualizadas de observar a realidade da teoria do conhecimento turístico. Assim, do universo particular do artista, ao conceito de turismo global, extraímos argumentos para a nossa epistemologia voltada para um contexto de fenómeno social, abrigada dos excessos do sistema económico dominante, através da relação entre os processos de subjetivação provocados pela modernização das viagens e a produção artística.
Nesse sentido, encontramos nas actas do “Congresso Criadores Sobre outras Obras” o manancial para a nossa reflexão, devido a peculiaridade de ser um congresso destinado a artistas e criadores, onde os autores devem ser artistas ou criadores graduados, que discursam sobre a obra de outro artista ou criador. Essa convenção ou norma, concedeu-nos perscrutar o nosso assunto, por um duplo olhar da arte: do autor e criador, longe dos conceitos desenvolvidos pela ideologia legitimadora do negócio turístico. Nesse sentido, realizamos o levantamento da ocorrência das palavras turismo e viagem, além de suas variantes: turista e viajante nas actas do evento entre 2010 e 2019. O Congresso “Criadores Sobre Outras Obras” é organizado pelo Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA), Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e coordenado pelo professor João Paulo Queiroz.
Depois de recolhida toda a informação, organizamos de tal forma, que pudesse ser comparada anualmente através de gráfico. A seguir, desenvolvemos a nossa reflexão a partir dos temas levantados pelos autores, observando as ideias e os contextos onde a nossa temática estava inserida e como era tratada. Assim, procuramos justificações dentro dos textos dos autores, que validassem ou invalidassem suas proposições, como também referimos outros conhecimentos para fundamentar qualquer questão apresentada nos artigos.
Considerações sobre a epistemologia do turismo pela arte
Atualmente existe um crescimento da quantificação artificial do saber, pois além da facilidade, as pesquisas instrumentalizadas pela tecnologia são mais rápidas e concretas. Julgamos que isso possa alterar o conhecimento produzido, por causa da restrição da liberdade do pensamento. Pensamos que, as ideias devem deambular para outros espaços de desenvolvimento, crescimento, sustentabilidade e convivência social, pois a caoticidade do mundo moderno solicita do pesquisador, o rompimento da clausura das investigações artificiais, para incluir cada vez mais as faculdades humanas como um dos caminhos para a produção da epistemologia (Castillo Nechar & Panosso Netto, 2010).
A arte revela um conhecimento sobre o mundo percebido na expressividade do artista. Essa faculdade, intuitiva ou técnica, ajuda na composição de suas obras com tal coerência, que podem despertar ou abalar a lógica convencional sobre a compreensão do mundo, até mesmo, àquelas obras de épocas remotas ou estilos alheios ao universo do espectador. Isso porque, o tema narrado é trivial, mas a maneira como esse tema é tratado transforma ideia em obra arte.
Apresentação dos resultados
No primeiro momento, mostramos os dados brutos da pesquisa através de percentagens e gráfico. Depois, ao perscrutar o contexto onde estavam inseridas as variáveis, encontramos a viagem como uma fase ou fundamento teórico do processo artístico e iniciamos um diálogo com as ideias apresentadas de viagem produtiva, de experiência, de interior ou exterior, os diários de viagem, as explorações científicas, o artista viajante, o comportamento e o olhar do turista. Das citações verificadas, interessou-nos as que promoviam algum tipo de reflexão, mesmo assim, tabulamos as que utilizaram estes termos apenas como figuras de linguagem ou como substantivo. Através do buscador do software “Pré-visualização” do sistema operativo IOS, tabulamos os dados que nos mostraram a maior incidência da variável viagem com 66%, seguida de viajante com 18%, turista 9% e turismo 7%. Vale reconhecermos que, a variável relacionada com a nossa proposta de teoria do conhecimento, “turismo”, foi a menos citada.
No Quadro 1, os anos de 2015 e 2010 se destacam por possuírem mais e menos os termos. À primeira vista, o número de citação ao termo viagem suplanta ao turismo que em 2011, 2013, 2014 e 2018 não é mencionado. Isso nos levou a pensar que os criadores estão mais familiarizados com a viagem, por ser um termo mais abrangente e livre dos discursos econômicos limitantes do turismo. Devemos explicar que devido ao elevado número de autores (53 no total) e a impossibilidade de referi-los na bibliografia, ao longo de nosso texto citamos o
último nome do autor do artigo e entre parenteses a sigla in (em) o último nome do editor das actas e ano.
Nas publicações encontramos a viagem como uma fase do processo criativo do artista. No início, durante ou depois de realizar a viagem, seja como motivadora, seja como método de criação (Lima inQueiroz, 2010; Cardoso in Queiroz, 2012; Barreto inQueiroz, 2013; Almozara in Queiroz, 2014; Nicolaiewsky inQueiroz, 2017; Gonçalves in Queiroz, 2015; Veneroso in Queiroz, 2014; Planas in Queiroz, 2014; Cidade inQueiroz, 2018; Rocha in Queiroz, 2015 e Maneschy in Queiroz, 2015).
Verificamos também, a viagem como fundamento teórico. Vicente (inQueiroz, 2010) nos mostrou uma artista influenciada pelo estudo do turismo e viagem. Lopes (inQueiroz, 2016) nos sugeriu a obra de Nelson Leirner que relaciona a efemeridade da viagem à alegria do casamento. Oliveira (in Queiroz, 2018) nos esmiuçou a obra “Ordem e Progresso” do artista Zamora, onde barcos simbolizavam todo o arcabouço que envolve a viagem, a exemplo do espaço imaginário, a busca pela felicidade, a fuga do cotidiano em uma mobilidade eterna. Percebemos essa necessidade pelo movimento de partida contínuo das viagens modernas, pela velocidade em Paiva e Mendes (inQueiroz, 2019) na obra SkyLoopSpace de Rui Calçada Bastos. Isso estaria em consonância ao turismo rápido de López (inQueiroz, 2019) ao se referir à industria cultural. Coelho (in Queiroz, 2019) nos direcionou para a dificuldade em se realizar uma viagem na obra de Rajaa Paixão, “Travel Machine”.
Outras obras abordaram os impactos negativos do turismo, como as diferenças sociais entre visitantes e moradores, alienação da comunidade e a dependência excessiva pelo turismo (Furtado inQueiroz, 2012; Centella inQueiroz, 2014). Como também os impactos positivos, quando Silva (in Queiroz, 2015) nos propôs que a instalação de um Ateliê poderia contribuir para o turismo do lugar.
O diário de viagem também apareceu, desde a visão da viagem como um ato pedagógico através da visita ao passado, à viagem moderna incorporada à narrativa do diário para reviver as explorações do passado: “Vieira Portuense, Cadernos de Viagem: álbuns 821 e 817 do MNAA” de Conceição Pereira (inQueiroz, 2012), Eduardo Salvista: um Desenhador do Quotidiano” de Shakil Rahim (in Queiroz, 2015) e “Diário de Kioto: pinturas de papel de Marco Giannotti” de Laís Guaraldo (inQueiroz, 2019). Aliás, como podemos observar no Quadro 1, foram nesses anos que a palavra viagem foi mais citada.
As expedições científicas eram acompanhadas pelo artista viajante para desenhar a fauna e a flora (Veneroso inQueiroz, 2016). Marcondes e Martins (inQueiroz, 2017) referiram aos desbravadores dos séculos XVII e XVIII e até mesmo ao artista que é globalizado. Mibielli (in Queiroz, 2017) e Weyner (inQueiroz, 2019) chamaram de artistas viajantes os que viviam em uma cidade e atuavam em outras. Ainda houve aqueles que entenderam o artista visual como um viajante no espaço e no tempo, predisposto às adversidades que qualquer deslocamento traria (Souza inQueiroz, 2017). Essa predisposição é provada em Rampin (in Queiroz, 2015) e Weymar (inQueiroz, 2019) quando alguns artistas, mesmo detestando a viagem, não abdicaram de viajar para desenvolver trabalhos.
As explorações científicas voltaram ao nosso estudo, não mais pelos diários de viagens, mas pela fotografia. Em Rampin (inQueiroz, 2015), onde foi a primeira vez que apareceu o termo artista viajante, o importante seria o espaço para caminhar e guardar. Mais tarde, Gonçalves (in Queiroz, 2017) nos advertiu para os fotógrafos viajantes, que no século XIX, capturavam a expansão do mundo, em oposição ao representado na fotografia contemporânea. Cidade (inQueiroz, 2018) nos sugeriu a ótica curiosa do viajante ao fotógrafo moderno, no sentido de auxiliar seu olhar no atual excesso de lugares fotografados.
Esse excesso de lugares provoca uma dificuldade cognitiva da realidade e para contornar isso, alguns autores tentaram desvincular a viagem do supérfluo e propuseram a noção de percurso interior ou viagem interior Maneschy (in Queiroz, 2017) e Cardoso (in Queiroz, 2012), ou ainda, para ser meritória do intelecto, Cidade (in Queiroz, 2018) nos apresentou a “viagem produtiva” como a busca pela síntese do estereótipo. Já Corona (in Queiroz, 2019) nos colocou a viagem como experiência, como uma inspeção da exterioridade originada nas expedições científicas.
Nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2018 assinalaram discussões críticas sobre o olhar do turista. Rampin (inQueiroz, 2015) nos mostrou uma antinomia entre o olhar do turista e do explorador, o primeiro seria superficial e o seguinte, do artista viajante: uma experiência, uma curiosidade científica e artística. Demarchi (in Queiroz, 2015) também nos reportou ao olhar do turista como superficial. Teceu uma reflexão sobre a imagem de um visitante próximo de uma obra de arte. O visitante é chamado de turista por seu “uniforme de turista”, pela passividade em pagar para se submeter às longas filas e estando diante das obras de arte está sempre a saltar entre elas, assim concluiu que não possui intelecto para analisar a arte e aconselha a dominarmos o turista que existe em nós. Identificar o turista e distingui-lo do viajante nos pareceu ser um imperativo nos documentos investigados. Barachini (inQueiroz, 2014) identificou o viajante como um ser que vagueia em permanente devir balizado pelos mapas. Mais uma vez, Barachini (in Queiroz, 2018) qualificou o artista como “viajante consciente” por saber que não existe viagem ao paraíso. Justificou-nos uma distinção entre viajante e turista, pois um partiria em uma busca hercúlea de si mesmo e o turista estaria interessado pela fuga do seu cotidiano, facilitada pelas agências de viagem.
Ser turista ou não ser. Na maior parte das vezes, o homem em viagem adquiri uma nova identidade: a de turista, o comportamento muda devido ao novo status. Desde os sentimentos contraditórios de se sentir superior e passivo, até mesmo comportamentos de vandalismo são atribuídos ao turista Busó (inQueiroz, 2013) e Kanaan (in Queiroz, 2015).
O olhar desse turista foi ao longo do tempo padronizado, inclusive em museus, onde a arte deve estar em conformidade pelo gosto dos patronos e atrair a atenção de visitantes. Pietro (inQueiroz, 2015) nos expôs a dificuldade de uma artista em chamar a atenção dos visitantes em uma sala com um lado revestido de janelas com uma paisagem de cartão-postal. Constantemente, os visitantes se desviavam das obras de arte e se direcionavam para às janelas. Até porque, como nos explicou Demarchi (in Queiroz, 2015) o turista está envolto em uma penumbra de exagero, espetáculo e mercado, em um contexto anestesiante, onde o lazer é obrigatório e no museu descobrimos isso através do turismo superficial.
Considerações finais
Ao escolhermos pesquisar o conhecimento turístico pelo contexto específico da arte estamos conscientes de que estaremos expostos a uma realidade que adquirirá um significado de acordo com o contexto em que está localizado, no caso o Congresso.
Isso permitiu-nos identificar a postura daqueles que são reconhecidos como artistas criadores com relação ao turismo e, sobretudo, todas as variáveis que estão no arcabouço da ocorrência da viagem pelo artista, que podem ser inseridas no desenvolvimento de uma possível epistemologia do turismo pela arte.