Introdução
A cultura digital com as suas interfaces limitadas leva-nos a olhar fixamente, durante horas, para um ecrã; sentados, imóveis, batemos num teclado/ecrã ou clicamos repetidamente num rato. O trauma físico resultante deste constrangimento é ecoado por um choque psicológico constantemente alimentado por ciclos tecnológicos pontuados pela invenção, desenvolvimento e obsolescência de novos gadgets. Os criadores destes apetrechos aproveitam-se da imobilidade do homem digital, propondo novas formas de interagir - uma tendência que se observa sobretudo na indústria dos jogos. Ultrapassado o joystick, podemos agora mexer aos braços de forma mais livre, ou mesmo o corpo todo, e com o nosso movimento activar um avatar que faz ginástica ou ioga num ambiente virtual. Mais livres dos mecanismos restritivos do teclado, não estamos, porém, mais libertos da separação cartesiana mente/corpo que prevalece na lógica das novas interfaces, miméticas de uma realidade física da qual, na verdade, nos sequestram. Regras simplistas do gaming, como encontrar e matar ou a obediência a hierarquias, afastam-nos também da nossa realidade social e cultural. Nos mundos virtuais, a imagem do corpo é trazida para o ecrã, mas o corpo físico não se liberta das interfaces clássicas. O nosso habitar do virtual continua limitado à acção da mão no teclado, e o corpo permanece, sentado, imóvel, e adoece. Estas são algumas das preocupações de que parte o projecto criado por Isabel Valverde Lugares Sentidos/Senses Places, uma ciberformance (Gomes, 2015) participativa em ambiente de realidade mista visando desenvolver a corporealidade, a consciência corporal e a amplificação dos sentidos através da cinestesia que perpassa a convergência entre virtual e real. Trata-se de um trabalho in progress, em desenvolvimento, com raízes formais num estilo de dança somática e tecnológica que utiliza várias interfaces - motion tracking, o controlo remoto de consolas de jogo, wearables que captam sinais biométricos, audio-video streaming - para estabelecer a ligação e interacção entre performers, o espaço físico, avatares e o ambiente do Second Life. Performers e o público intermedial distribuem-se por um ou mais espaços físicos e pelo espaço virtual. Neste, através dos seus avatares, os elementos do público podem simplesmente assistir ou, apropriando interfaces criadas para o efeito, podem integrar a performance.
1. As bases
O projecto decorre de experiências anteriores de Isabel Valverde em Reais Jogos Virtuais/Real Virtual Games, um projecto iniciado em 2007, que questionava os estereótipos das interfaces típicas dos vídeojogos e que se desenvolveu em Com Tempo/Wethering In, em 2009, integrando uma relação entre dados biométricos
e ambientes virtuais e reais (Valverde, 2009). Em Senses Places as interfaces foram apuradas e a colaboração local, global e intercultural estendeu-se. A visão inicial transformou-se em algo outro e novas ideias brotaram da colaboração entre artistas distribuídos e diferentes realidades.
Trata-se de uma ciberformance marcadamente liminar (Broadhurst, 1999) no sentido em que a experimentação tecnológica leva à desconstrução das regras clássicas, criando algo inacabado e difícil de alinhar esteticamente.
Senses Places é uma criação de Isabel Valverde, portuguesa, coreógrafa e investigadora na área da dança-tecnologia, sediada em Portugal, e Todd Chochrane, neo-zelandês, engenheiro e investigador na área da informática, com uma abordagem baseada na computação semântica e na sinergética; porém, sendo um projecto em construção, híbrido e distribuído, conta com a colaboração de outros artistas e técnicos. Desde 2010 que colaboro com Senses Places em várias funções mas sobretudo como performer e documentarista, numa perspectiva de multitasking que é inerente a este tipo de ciberformance.
Segundo Isabel Valverde (2013:2) as bases teóricas deste projecto encontram-se em Piérre Lévy (1998), que considera que o actual e o virtual são apenas duas formas do ser e que insiste que a virtualização sempre fez parte do processo de hominização bem como em N. Katherine Hayles (1999) e no seu reconhecimento da inclusão e da interdependência entre o corpo e a tecnologia, afirmando que o habitar do virtual está sempre dependente dos nossos corpos e que essa experiência tem um efeito à posteriori na medida em que a nossa percepção, comportamento físico e padrões de pensamento são alterados por ela. Também o conceito da “(r)evolução do corpo somático” bem como a possibilidade de se contrariar o domínio tecnológico através de uma somatização da tecnologia, advogados pelo pai da somática, Thomas Hanna, são referidos por Valverde como uma das afinidades teóricas deste projecto, assim como os conceitos de coreographing emphaty “empatia coreográfica” e de cyber-kinesthesis “ciber-cinestesia”, que Susan Foster (2011) aplica aos corpos em rede que habitam simultaneamente ambientes imediatos e distantes, teorias que Valverde
debateu em tese de doutoramento (2010).
2. As interfaces e a participação
As performances de Senses Places acontecem no mundo virtual Second Life, na ilha de Koru ou em plataformas como os espaços do Linden Endowment for the Arts (L.E.A.), no Odyssey Contemporary Art and Performance Simulator, ou no espaço do Seminário Imagens da Cultura/Cultura das Imagens em Portugal, SL. Na superfície do espaço virtual, são apenas visíveis ecrãs para audio-video streaming, estruturas facilmente aplicáveis a qualquer outro local virtual onde aconteça a performance.
No mundo físico, Senses Places acontece em galerias, workshops, conferências, festivais ou jams de contacto-improvisação, onde uma boa ligação à Internet e um ou mais projectores de vídeo são as condições essenciais, podendo também haver algumas cortinas transparentes suspensas no espaço que multiplicam as projecções e lhes dão relevo. Idealmente o ambiente virtual é mapeado no físico. Os performers interagem entre si fisicamente e com as imagens dos avatares e do ambiente virtual. O público presencial pode simplesmente assistir, ou interagir através das interfaces disponíveis (vide artigo de Valverde, analisando a última instância deste projecto no Festival Vivarium, Porto, Março, 2019).
Uma das formas do performer interagir com o avatar é através da webcam. Trata-se de uma aplicação de motion tracking que capta seis pontos de movimento que activam sequências de animações correspondentes a seis pontos no corpo do avatar. Movendo-se em frente à webcam do seu computador o performer/participante acciona desta forma o seu avatar (Martins et al. 2016)
Quando há movimentação colectiva no espaço da performance física as webcams dos computadores captam também o movimento geral existente no seu campo de cobertura, traduzindo-o para a movimentação dos avatares em funcionamento.
Parte das animações que são despoletadas por esta interface foram criadas através de captura de movimento, como Isabel Valverde explica: “Desejando improvisar juntos com/através de avatares usando a nossa abordagem somática e necessitando de animações que reflectissem tais estados de envolvimento corporal, indo para além dos limitativos clichés de dança de discoteca do SL, trabalhámos com motion capture, criando animações para compor um vocabulário de movimento adequado para os avatares” (2013:4).
Há alguns anos, trabalhando no laboratório de motion capture da Universidade Lusófona, Isabel Valverde e outros performers improvisaram sequências de movimentos. O resultado foi a produção de animações de 30 segundos que contrariam o realismo dos movimentos de dança encontrados no Second Life. Procurou-se uma estética que se afasta do cliché, do mimetismo e da movimentação clássica da dança e se aproxima do estranho e do não humano (Valverde, 2017).
Uma outra forma de interagir com o avatar e o ambiente virtual é através do controlo remoto da consola de jogos Wii (Nintendo, 2006). Com a aplicação Darwiin Remote esta interface, que só funciona com o sistema operativo da linha Macintosh da Apple, permite ao performer navegar o espaço virtual. Movendo o corpo eo comando com mais ou menos rapidez, o performer sintoniza-se com o avatar que viaja pelo espaço virtual. Fixando a câmara do Second Life em relação a um ponto ou a um avatar, o controlo Wii permite também rodar o espaço à volta ou fazer zoom in e out em relação ao mesmo, integrando na performance o ambiente virtual em si, de uma forma diferente.
O ambiente pode também ser alterado por sinais biométricos capturados através de um dispositivo wearable com sensores. As alterações do ritmo cardíaco edo som interno da respiração, a temperatura do corpo ou a tensão muscular traduzem-se sinestesicamente no ambiente físico em sinais audíveis, visíveis e sentidos - como temperatura, som, cor, luz, fumo, vento, cheiro e humidade - e em sinais visuais e auditivos no ambiente virtual. Por sua vez, informação provinda de avatares e ambiente virtual poderá afectar o ambiente físico. Dados meteorológicos colhidos nos locais onde se desenrola a performance - em Portugal e na Nova Zelândia, por exemplo - poderão ainda ser acrescentados a esta equação de sinais, evocando o ambient computing.
Um protótipo de um dispositivo biométrico desenhado por Artica, instalado num cinto, tem sido usado por Isabel Valverde em várias performances. Este capta a variação no ritmo cardíaco e o som interno da respiração da artista em performance e, através de um sistema desenhado por Nick Rothwell, cria sons que se misturam com o som ambiente ao vivo do espaço físico e o áudio do espaço virtual. Em algumas ocasiões o dispositivo biométrico foi também utilizado em ligação com iluminação e uma máquina de fumo (Valverde, 2013:9).
Esta introdução de dados de origem biológica que acrescentam informação da
Figura 4 ∙ O avatar da autora, Lux Nix, e o de Isabel Valverde, Butler2Evelyn, no AvaCon, Metaverse Cultural Series, 2014.
Fonte: própria.
Figura 5 ∙ Performance no espaço In Vitro Lab, Universidade Aberta/Odyssey, Second Life, Lisboa, 2016.
Fonte: Isabel Valverde.
ordem do sensível tanto para os performers como para o público intermedial conduz Senses Places no caminho de uma performance generativa ainda mais corporalizada, no âmbito de uma perspectiva somático-tecnológica.
Uma interface essencial para este projecto é o audio-video streaming tanto no ambiente virtual como no espaço físico, criando uma espécie de portal. Indo para além das “cabeças falantes” da videoconferência, este ecrã do duplo (Causey, 2006) permite uma sinergia entre performers, participantes, avatares e ambiente. O performer não só dança com os outros no espaço físico como dança literalmente com o seu avatar, enquanto os participantes ligados apenas ao mundo virtual observam e acompanham com o seu avatar a acção do espaço físico, numa experiência duplamente colectiva.
Os ecrãs em ambos os ambientes podem variar entre um e vários. No ambiente virtual os participantes podem ver, por exemplo, a acção queseestá a passar em Lisboa, no Japão ou no Canadá, em locais públicos ou no espaço privado do performer, uma vez que Senses Places é uma performance colaborativa distribuída geograficamente, participada e transcultural.
Através do portal criado pelo sistema de videoconferência, da captura de movimento e de animações, da movimentação/navegação do espaço através do controlo remoto de jogo digital, e, por vezes, da ligação entre sinais vitais e ambientes, Senses Places desenvolve-se como uma performance multifacetada e multimodal.
Senses Places é participado por muitos colaboradores para além dos seus criadores: code performers do Second Life, coreógrafos de Butoh japoneses, praticantes de contacto-improvisação, técnicos de várias áreas da informática, músicos e eu própria com experiência em performance e vídeo-arte.
Esta performance em progresso vai sendo construída por todos nós com a “orquestração” (Benford e Giannachi, 2011) de Valverde, num espírito de produtilização (Bruns, 2008) tão característico da ciberformance, sobretudo tendo em conta que a tecnologia é acessível e desenvolvida pelos próprios participantes/colaboradores (Gomes, 2015).
Conclusão
O projecto de Isabel Valverde Lugares Sentidos/Senses Places e as futuras práticas que dele advirão, advogando modos mais incorporados de interagir com a tecnologia, apontam tendências para o futuro da comunicação humana. Esta, será afectada pela alteração da nossa relação com o computador, através da criação de novas e acessíveis interfaces entre o corpo e os ambientes virtuais.
Se novos gadgets como os computer brain interfaces parecem dar primazia ao cérebro sobre o corpo, bastando um pensamento para accionar um mecanismo informático, a verdade é que estes irão, a curto prazo, libertar o corpo da prisão teclado/ecrã, permitindo que, eventualmente, nos livremos das doenças somáticas associadas a essa dupla e que possamos usar o corpo livre para voltar à terra e tocar os outros, dentro de um contexto tecnológico de comunicação à distância. O desenvolvimento de uma consciência corporal e somática resultante das práticas desta ciberformance no limiar do virtual é um contributo para a criação de uma consciência social distribuída e de uma geoestética.