Introdução
Natural da cidade de São Paulo (Brasil), Carolina Paz (1976) é artista visual e cientista social, mestre em Conhecimento e Mídia (UFSC, Santa Catarina, Brasil). Atualmente reside em Nova Iorque, onde trabalha e desenvolve pesquisa de mestrado em Artes, na MFA - School of Visual Arts.
A produção de Paz tem nos detalhes do cotidiano, nos resquícios do dia a dia e nas ações dos espaços íntimos, o cerne de seus vídeos, objetos e pinturas. Seu pensamento aguçado e ousado pode estar em uma xícara transbordante de açúcar ou em pequenos retratos minuciosamente elaborados; em vídeos irônicos, questionadores ou em instalações conceituais. Obras essas, que estiveram em inúmeras exposições individuais e coletivas, além de programas de residência no Brasil, Estados Unidos e Europa.
Para a investigação em andamento, o objetivo terá o projeto “Desejo motivo” (2017) como principal viés. Neste, as relações humanas são a matéria-prima, histórias pessoais enviadas como cartas à artista, escritas especificamente para uma convocatória. A obra é pautada na compreensão do outro e na ressignificação do verbal e do não-verbal.
Para desenvolvimento do presente texto, o aporte teórico provém da obra Fréquenter les incorporels, contribution à une théorie de l’art contemporain tem, de Anne Cauquelin (2008) e de “Redes de Criação: a criação da obra de arte”, de Cecília Almeida Salles (2008). Respectivamente, enfatiza-se a maneira como as autoras priorizam a leitura das reminiscências na arte contemporânea e da estruturação do processo criativo. O estudo dedica-se à poética da artista enquanto resultante de um fluxo de encontros e delicadezas, que enfatiza a co-autoria como exercício da sensibilidade na contemporaneidade.
1. Desejo Motivo
Imergir no universo das obras de Carolina Paz nos traz a impressão de estarmos tocando preciosidades, recônditos, cômodos restritos. Parecemos estar diante de elementos familiares, como se falassem de nós mesmos, como se nossos próprios subconscientes fossem expostos. Nessa delicada restrição, reconhecemos nossos próprios cômodos, nossas incertezas, expectativas.
Na produção da artista, a potência brota de uma sinceridade desconsertante, assim como nos cantos, gavetas e miniaturas de Bachelard (1996). A intimidade está nos encadeamentos da memória, levando-nos igualmente à compreensão do outro. No reconhecimento dessa pessoalidade, somos conduzidos a sentí-la.
No caso de Desejo Motivo, o interesse está na comunicação desperta entre
o indivíduo narrador de sua própria história e a interpretação do texto por meio de imagens não literais em pequenas pinturas, trabalho ao qual Paz se propõe a fazer. Composta por 44 telas pintadas a óleo, a série desenvolvida entre 2016 e 2017, originou-se de uma chamada pública divulgada na fachada do ateliê da artista e na Web, por meio de site do projeto.
Das cartas escritas em papel, recebidas via correio ou em mãos, a produção das obras se deu conforme as palavras de Paz (Figura 1):
Em todos esses textos eu me proponho a devolver uma resposta em forma de pintura, não uma ilustração da carta (...) Fui buscar em meu repertório pessoal, quase como se eu fosse responder à carta, quase como se eu fosse devolver um texto. Então, envolve o meu imaginário, o meu repertório, envolve coisas que eu conheço, que eu sinto que disparam algo dentro de mim. (Ferreira, 2017).
2. O incorpóreo exprimível
Na essência de Desejo Motivo, assim como ocorre em toda obra de arte, faz-se o registro de um fragmento do continuum, uma gestação resultante de espasmos, contrações. A nova criação, original, única surge de ruídos da técnica, do pré-
-concebido, de apropriações e ressignificações. A mente do artista é o receptáculo da permanência, da elaboração e pulsação de suas sinapses e, por esse motivo, sua produção é igualmente ininterrupta e feita de interrupções do outro.
Em uma troca de funções, significante e significado são transpostos, em “uma rede complexa em permanente construção.” (Salles, 2008: 169).
Composta por esse processo ininterrupto, a obra de arte surge de novas formulações que se alimentam de contextos e os ressignificam. Ao trazer esses conteúdos para si, integrando-os aseu pensamento, o artista cria a partir de preenchimentos e vazios, simultaneamente. Nessas ambiguidades, aproximamo-nos das questões nas quais residem a pesquisa de Anne Cauquelin sobre os incorporais:
Se chegarmos a apreendê-lo em sua ambiguidade fundamental, o vazio pode nos servir para explorar os outros incorporais dos quais sabemos que fazem parte o lugar, o tempo e o exprimível (...) especialmente porque o conceito do vazio nos conduz diretamente às obras contemporâneas que o reivindicam, ou ao menos jogam com seus diferentes aspectos e formas. (Cauquelin, 2008:33)
Dentre os incorporais mencionados e no processo de criação estabelecido por Paz dos escritos enviados, às respostas aos remetentes o exprimível surge. É o sutil espaço entre as palavras e as coisas, o lekton (exprimível). Nas palavras da artista e filósofa francesa:
(...) É exatamente o espaço de ligação, aquilo que torna possível a passagem do um ao outro. Então, mesmo que o termo significante permaneça como corporal, em estado bruto (é um som articulado), o sentido é o resultado de uma elaboração do pensamento e, nesse aspecto, provindo de um trabalho invisível, intangível (adelon). Feito de lembranças, de costumes, de classificações convencionadas, de ordenações, o sentido advém à palavra por um caminho de pensamento. Esse caminho é uma passagem, como o lugar e, assim como ele é, incorporal.(Cauquelin, 2008: 41)
Ao pintar, a artista define o novo lugar definido pelo exprimível (Figura 2).
3. O intangível na arte contemporânea: adiaphoron e proegmena
Para Cauquelin, em torno do vazio estão as ideias de existência e não-existência e do nada. Remetendo-se aos estóicos, os incorporais são mencionados como um terreno propício para a arte na atualidade (Figuras 3 e 4), no qual reside uma pergunta pertinente aos raciocínios transcritos nas presentes linhas: “Por que o corpo está ausente na arte contemporânea?” (p. 55).
A arte atual busca o intangível. A materialidade é uma ínfima fixação da ideia, de sentido, de lugar, do tempo. Está contida na articulação da própria vida que necessita ser soprada para acontecer, o fluxo de ar que atravessa a nós e ao que fazemos. Cada quadro de Desejo Motivo é receptáculo desse fluxo. E nesse aspecto, cita-se os incorporais sob o ponto de vista da ética na opção feita entre a indiferença (to adiaphoron) e os preferíveis (proegmena).
À medida que as pinturas foram realizadas, as “cartas-respostas” foram finalizadas (Figura 5). Cada uma das 44 cartas foi “devolvida”a seu remetente, em um evento que Paz denominou “acontecimento”. O preferível foi eleito em detrimento da indiferença. Quando “A indiferença se encerra sobre si mesma e retorna à substância do vazio” (Cauquelin, 2008: 51), deixa sua marca no objeto de predileção, “a sombra de um acontecimento” (Figuras 5 e 6).
Na leitura de uma carta por vez, o texto foi absorvido, refletido, ressignificado. No toque das telas por seus donos finais, o intangível justificou a ausência do corpo na arte contemporânea (Figura 7).
Considerações finais
Com o “acontecimento”, outro incorporal foi tocado no desvio do mercado de arte. O objetivo de todo um projeto foi alcançado sem, em momento algum, afastar-se da sustentação primordial da arte: tocar o intangível. Ao detectar lacunas, presentificou-se. Comunicou-se. Atuou como meio.
Na fluidez do tempo, na transposição do vazio, do lugar, do exprimível, o sensível se fez nas reminiscências, elaborou a partir do que é impalpável e assim ressignificou o que já não mais era. Ao tocar os fragmentos da memória, a experiência foi depurada como elo entre almas, onde o material se dissipou e se refez. No fluxo do sopro cálido do universo.