Introdução
Com o surgimento do novo coronavírus, atualmente conhecido como doença da COVID-19, várias foram as medidas adoptadas pelo governo angolano no sentido de evitar a propagação da doença entre os residentes. Uma das medidas impostas foi o confinamento social, reconhecido como período de Estado de Emergência. O mesmo período durou um pouco mais de dois meses e com ele as pessoas viram-se obrigadas a ficar em casa, salvo algumas exceções.
Com a permanência de várias semanas em casa sem sair, vários foram os casais que aproveitaram para fortalecer laços afetivos, porém, tendo como base algumas realidades, foi verificada uma subida dos casos de violência doméstica contra as mulheres como consequência do tempo ininterrupto de convívio entre os casais. Tal como declaram Alencar, Stuker, Tokarski, Alves e Andrade (2020) com a pandemia da COVID-19, foi obrigatório implementar-se o isolamento social. Este isolamento teve impacto na vida das pessoas, sendo que uma das consequências foi o aumento da violência no seio familiar, especificamente contra a mulher.
O crescente número de casos de violência doméstica contra as mulheres pelo mundo motivou o estudo em causa, pois procurou-se indagar se, na realidade angolana, também houve um crescente número de casos ligados ao confinamento social imposto. Esse aumento do número de casos de violência foi notório. Como exemplo temos a China, primeiro país a abraçar o isolamento para prevenção da Covid-19, verificou-se que o número de denúncias de violência doméstica em 2020 dobrou durante o confinamento comparado com o mesmo período de 2019. Também na França, os abusos domésticos reportados à polícia subiram 36% em Paris e 32% no resto do país. Na Espanha, a subida dos casos foi de 47%. Na Colômbia, verificou-se um drástico aumento para 163% e na África do Sul, as linhas telefónicas de denúncias tiveram o dobro de ligações desde o início do confinamento em 27 de Março (Alencar, Stuker, Tokarski, Alves & de Andrade, 2020).
Segundo a OMS a violência é definida como o “uso intencional da força física ou do poder, sob a forma de ato ou de ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que cause ou tenha muitas probabilidades de causar lesões, morte, danos psicológicos, perturbações do desenvolvimento ou privação” (Krug et al., 2002, p.5, citados por Redondo, Pimentel, Correia & Vicente, 2012). A violência contra as mulheres constitui o tipo de violência mais generalizado de abuso dos direitos humanos no mundo.
A Assembleia Geral das Nações Unidas (1993) definiu oficialmente a violência contra as mulheres como: “qualquer acto de violência de género que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual, psicológico ou sofrimento para a mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, quer ocorra em público ou na vida privada” (Day, et al., 2003, p.15).
Na violência doméstica contra a mulher, o abuso pelo parceiro íntimo é mais comumente parte de um padrão repetitivo, de controle e dominação, do que um ato único de agressão física. O abuso pelo parceiro pode ser operacionalizado das mais variadas formas, tais como agressões físicas como golpes, tentativas de estrangulamento e queimaduras, quebras de objetos favoritos, móveis, ameaças de ferir as crianças ou outros membros da família, agressão psicológica através de intimidações, agressão sexual, comportamentos de controle, como sendo, forçar a mulher em relação à sua família e amigos, vigilância constante de suas ações e restrição de acesso a recursos variados (idem).
Metodologia
O estudo em causa recorreu a um design descritivo correlacional de abordagem quantitativa, pois fez-se recurso ao teste X² para independência, especificamente, para analisar se a violência doméstica está associada ao isolamento social imposto pela covid-19.
Amostra
Para o presente estudo selecionou-se uma amostra de 68 mulheres, com idades compreendidas entre os 22 e os 67 anos, do município do Lubango, Angola. O requisito principal foi de se encontrarem a coabitar com os respetivos parceiros durante o período de Estado de Emergência.
Instrumentos de recolha de dados
O instrumento é dirigido a mulheres casadas ou que vivem em comunhão de fato e é constituído por duas partes. A primeira contém 9 itens que medem o comportamento do casal durante o confinamento pela COVID-19 e a segunda por 8 itens que medem os sentimentos da mulher durante esse período. Com vista a verificar a fidelidade do instrumento, aplicou-se o alpha de Cronbach, que teve como resultado .727, mostrando uma razoável consistência interna.
Resultados e Discussões
Considerando o período de Estado de Emergência e, uma vez que algumas mulheres apresentaram-se céticas em participar da pesquisa por causa da pandemia pelo COVID-19, trabalhou-se com apenas 68 mulheres, que assinaram a ficha de consentimento informado, à qual se anexou o inquérito com as questões a serem preenchidas. As mesmas disponibilizaram-se em os preencher e fizeram a devolução do instrumento logo que possível.
Variáveis | Frequências | Percentagens | |
---|---|---|---|
Estado civil | Casada | 48 | 70,6 |
União de facto | 20 | 29,4 | |
Vezes que saiu de casa | Não saí | 2 | 2,9 |
1 vez por semana | 28 | 41,2 | |
Várias vezes na semana | 28 | 41,2 | |
Todos os dias | 10 | 14,7 | |
Motivo | Compras | 28 | 41,2 |
Trabalho | 12 | 17,6 | |
Outro | 26 | 38,2 | |
100 | 2 | 2,9 | |
Vezes que marido saiu | Não saiu | 4 | 5,9 |
1 vez por semana | 10 | 14,7 | |
Várias vezes por semana | 34 | 50,0 | |
Todos os dias | 14 | 20,6 | |
Várias vezes por dia | 6 | 8,8 | |
Motivo marido | Compras | 10 | 14,7 |
Trabalho | 34 | 50,0 | |
Apoio familiar | 4 | 5,9 | |
Outro | 16 | 23,5 | |
100 | 4 | 5,9 |
Como podemos ver na Tabela 1, a maioria das mulheres inquiridas no estudo são casadas (70,6%), sendo que durante o período de confinamento social obrigatório saíram de casa 1 a várias vezes por semana (41,2%), pelo fato de precisarem fazer compras (41,2%). Já os parceiros precisaram sair várias vezes por semana (50,0%) para trabalhar (50,0%).
Não é novidade para ninguém que a pandemia do COVID-19 constitui uma ameaça na vida das pessoas. A mesma afetou a vida das pessoas no que tange às dimensões familiares, escolares, de lazer e laborais (Ornel, Schuch, Sordi & Kessler, 2020). Com tais restrições, as pessoas viram-se na obrigação de sair de casa apenas para suprir as suas necessidades básicas. Neste estudo verificou-se que, em geral, as inquiridas saíram apenas para obter bens a fim de colmatar as necessidades.
Variáveis | Frequências | Percentagens | |
---|---|---|---|
Outros familiares | Não | 26 | 38,2 |
Sim | 42 | 61,8 | |
Relações familiares quarentena | Boas | 20 | 47,6 |
Razoáveis | 20 | 47,6 | |
Más | 2 | 4,8 | |
Relações com marido | Boa | 44 | 64,7 |
Razoável | 18 | 26,5 | |
Má | 2 | 2,9 | |
Péssima | 2 | 2,9 | |
100 | 2 | 2,9 | |
Quarentena sexo | Não tive | 8 | 11,8 |
Mesma frequência | 44 | 64,7 | |
Mais frequência | 12 | 17,6 |
No concernente ao fato de existirem outros familiares a coabitarem com o casal durante o mesmo período, 61,8% das mulheres responderam que as relações estabelecidas foram entre boas e razoáveis (47,6%). O mesmo aconteceu com as relações estabelecidas com o marido, que permaneceram entre boas e razoáveis (64,7%). Relativamente à prática sexual, 64,7% afirmaram que mantiveram a mesma frequência. Uma vez que a fase de confinamento constituiu um momento novo de convivência, as relações familiares consistiram num desafio pela variedade de emoções entre as pessoas (Gomes, 2020). Ainda assim, as famílias ficaram mais próximas, e tal como afirmam Basso, Schonardie-Filho, Barriquelo, Roncaglio e Dallabrida (2020), durante tal transição foi de extrema importância que as famílias mantivessem a interação e os vínculos afetivos no sentido de constituir motivação para ultrapassar tal período de maneira mais tranquila.
Variáveis | Frequências | Percentagens | |
---|---|---|---|
Marido relações fora | Não | 40 | 58,8 |
Não sei | 16 | 23,5 | |
Sim | 12 | 17,6 | |
Motivo conflito familiar | Não | 8 | 44,4 |
Sim | 10 | 55,6 | |
Violências em casa | Não | 52 | 76,5 |
Às vezes | 12 | 17,6 | |
Sim | 4 | 5,9 | |
Período Quarentena | Melhorou | 6 | 37,5 |
Igual | 8 | 50,0 | |
Piorou | 2 | 12,5 | |
Mais violento com | Ninguém | 50 | 73,5 |
Comigo | 14 | 20,6 | |
Vários | 2 | 2,9 | |
100 | 2 | 2,9 | |
Tipo violência | Psicologia | 10 | 62,5 |
Física | 4 | 25,0 | |
Outra | 2 | 12,5 |
Um aspecto contraditório foi o de que 40% das inquiridas responderam que os parceiros não têm relações extraconjugais, porém, 55,6% das que o afirmaram, referiram que constituiu motivo de conflito familiar o fato de os parceiros terem outra relação para além da convencional. As relações extraconjugais configuram traição, sendo esta definida na visão de Ferreira (2018) como o rompimento de um laço de confiança na relação, o que vem a provocar, por um lado desgaste emocional do cônjuge afetado e por outro, pode acabar por alterar todo o âmbito familiar. Situações de discórdia entre o casal, manifestadas na forma de conflito conjugal, podem caracterizar-se por diferentes razões (Benetti, 2006), sendo que uma das razões é a existência de relações extraconjugais, o que foi verificado na nossa pesquisa.
A maioria das mulheres da nossa amostra não evidenciou violência em casa (76,5%), mas para aquelas que referiram ter sofrido violência por parte do parceiro durante o período de quarentena, a mesma manteve-se igual ao habitual (50,0%), sendo a psicológica a que mais se destacou (62,5%).
Redondo, Pimentel, Correia e Vicente (2012) abordam que, apesar da violência psicológica ser mais difícil de ser operacionalizada, geralmente é tida como o conjunto de ações verbais ou não que causam danos simbólicos na vítima. A mesma abrange insultos, ameaças, críticas, humilhações, desvalorizações, intimidações, isolamento social, privação de contacto com a família e amigos, revistar objectos pessoais (agenda, telemóvel…), privação de documentação pessoal entre outros.
Variáveis | Frequências | Percentagens | |
---|---|---|---|
Item 6.1 | Muito calma | 16 | 23,5 |
Calma | 30 | 55,9 | |
Nada calma | 14 | 20,6 | |
Item 6.2 | Nada nervosa | 45 | 66,2 |
Nervosa | 13 | 19,1 | |
Muito nervosa | 8 | 11,8 | |
Item 6.3 | Muito confiante | 8 | 11,8 |
Confiante | 44 | 64,7 | |
Nada confiante | 16 | 23,5 | |
Item 6.4 | Muito tranquila | 8 | 11,8 |
Tranquila | 46 | 67,5 | |
Nada tranquila | 14 | 20,6 | |
Item 6.5 | Sem medo | 24 | 35,3 |
Medo | 38 | 55,9 | |
Muito medo | 6 | 8,8 | |
Item 6.6 | Nada assustada | 34 | 50,0 |
Assustada | 26 | 38,2 | |
Muito assustada | 8 | 11,8 | |
Item 6.7 | Nada baralhada | 42 | 61,8 |
Baralhada | 20 | 29,4 | |
Muito baralhada | 6 | 8,8 | |
Item 6.8 | Muito agressiva | 68 | 100,0 |
No que se refere aos sentimentos, durante o período de quarentena 55,9% frisaram que mantiveram-se calma, 66,2% não remeteram ao nervosismo, 64,7% confiantes, 67,6% tranquilas, 55,9% com medo, 50,0% nada assustadas e 61,8% nada baralhadas. Paradoxalmente, algumas pesquisas concluíram que o stresse e sentimentos de frustração e de aborrecimento constituíram efeitos negativos durante a quarentena (Barros, et al., 2020), sentimentos estes que não se verificaram nas inquiridas.
O sentimento de medo foi consonante entre a literatura e a pesquisa, uma vez que na visão dos autores, o medo da infecção constituiu um sentimento negativo durante o confinamento.
Todas as inquiridas neste estudo referiram que se mostraram mais agressivas (100%). Na visão dos autores, durante o confinamento social, comportamentos agressivos podem ser verificados, uma vez que informações deturpadas e pouco verídicas sobre a doença instigam a reações de raiva e de agressividade (Wang, et al., citados por Ornell, et al., 2020).
Variáveis | Média | Desvio Padrão |
---|---|---|
Idade | 37,09 | 11,881 |
Idade marido | 40,21 | 11,460 |
Tempo convivência | 15,56 (anos) | 18,491 |
N parentes convivência | 49,56 | 47,933 |
Total violência | 10,3529 | 4,97085 |
Total sentimentos | 12,5000 | 2,90393 |
A média de idade das mulheres foi de 37 anos (37,09; DP=11,881); dos maridos 40 anos (40,21; DP=11,460). A média de tempo de convivência entre o casal foi de 15 anos e meio (15,56 anos; DP=18,491).
O total de violência neste estudo encontra-se na faixa da violência moderada (6 a 12 pontos), com uma média de 10,35. O mesmo aconteceu com os sentimentos relativos à ansiedade, ou seja, revelou-se uma ansiedade média (7 à 14 pontos), uma vez que a média desses sentimentos foi de 12, 5.
Atendendo que as mulheres em estudo referiram conflitos conjugais devido a relações extraconjugais por parte dos maridos, recorremos ao teste t de student para verificar a correlação entre as variáveis que dizem respeito a este fato. Ao correlacionar a variável “marido com relações fora” com a “violência em casa” verificamos que as mesmas estão relacionadas (x²(68)=9,701;p˂.008), sendo que as mulheres que afirmaram que os maridos não têm relações fora do casamento maioritariamente também não têm violência familiar, as que afirmaram não saber se têm ou não sofrem violência às vezes, enquanto que metade das que afirmaram que os maridos têm outras parceiras sofrem de violência familiar. A mesma variável (marido tem relações fora do casamento) cruzada com as “relações com o marido” deu igualmente significativa (x²(68)=25,377;p˂.000), mostrando que as mulheres cujos maridos não têm outras parceiras quase na totalidade têm boas relações com os mesmos, as que afirmam não saber estão divididas entre boas, razoáveis e péssimas, ao passo que as que confirmam que os maridos têm outras parceiras afirmam ter relações razoáveis ou más com os maridos. Ainda, os maridos com relações fora do casamento mostraram-se mais violentos para com as mulheres no período de quarentena (x²(68)=15,113;p˂.001) e a violência mais frequente foi a psicológica. Estes dados confirmam a teoria, uma vez que a existência de outras mulheres interfere na vida do casal e aumenta a violência doméstica.
Conclusão
A Pandemia da COVID-19 tem afetado o mundo na sua globalidade. As famílias, por se verem em estado de isolamento social obrigatório, foram igualmente afetadas. Uma das possíveis consequências do confinamento social é a violência doméstica contra as mulheres, o qual foi alvo da nossa investigação.
Fruto do estudo da violência doméstica em período de quarentena, podemos extrair que a maioria das mulheres inquiridas na nossa amostra são casadas, sendo que, tanto elas como os parceiros precisaram sair de casa durante o isolamento várias vezes por semana para fazer compras ou para trabalhar.
A maioria, para além do parceiro, dividiram a familiaridade com outros parentes, sendo que estabeleceram com eles boas relações, bem como com o marido. No que concerne à frequência do ato sexual, durante essa fase manteve-se inalterada. A maioria apontou que o parceiro não tem relações extraconjugais, o que parece não corresponder à realidade, uma vez que, para aquelas que realçaram tal situação, as relações extraconjugais dos maridos constitui um motivo de conflito familiar.
No que toca à violência, no geral, a grande maioria não evidenciou, mas as que realçaram ser vítimas de violência psicológica, concernente aos sentimentos inerentes à ansiedade, os resultados indicaram uma predominância moderada.