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Revista Crítica de Ciências Sociais

versión On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.133 Coimbra mar. 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.4000/11pr6 

Artigos

“A história do meu país”: reflexões sobre a memória social e os futuros do passado nas narrativas de jovens portugueses

“The History of my Country”: Reflections on Social Memory and the Futures of the Past in the Narratives of Portuguese Youth

«L’histoire de mon pays»: réflexions sur la mémoire sociale et l’avenir du passé dans les récits de jeunes portugais

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal, luizaalins@gmail.com

2 Laboratoire PSITEC (Psychologie: Interactions, Temps, Émotions, Cognition) - ULR 4072, Université de Lille, Villeneuve d’Ascq, France, juliaalvesbrasil@gmail.com

3 Departamento de Ciências da Comunicação, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal, cabecinhas@ics.uminho.pt


Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre as tensões e ambiguidades presentes na (re)construção da memória social e nas diferentes visões da história, em torno das quais se constroem futuros para o passado português. Em particular, analisámos as narrativas de 145 estudantes do ensino secundário em Portugal sobre a história do país. O 25 de Abril foi o principal marco histórico mencionado com referências ao fim do regime ditatorial, à luta pela liberdade e pela igualdade de oportunidades. Porém, não foram mencionadas as lutas pela libertação nacional dos povos outrora colonizados. Emergiram também reafirmações do passado glorioso e expansionista dos “Descobrimentos”, mitos historiográficos e invariantes culturais sobre o que significa “ser português”. Com isso, discute-se a importância de uma educação crítica e da descolonização da história, para que futuros alternativos possam emergir dissociados de valores de dominação.

Palavras-chave: colonialidade do saber; descolonização epistemológica; história de Portugal; identidade portuguesa; memória social

Abstract

This paper proposes a reflection on the tensions and ambiguities present in the (re)construction of social memory and examines individual visions of history, the ones on which futures are built for the Portuguese past. In particular, we analysed the narratives of 145 secondary school students in Portugal who were asked to comment on the country’s history. The Carnation Revolution was the main historical milestone mentioned, with references to the end of the dictatorial regime, the struggle for freedom and equal opportunities. However, what was not mentioned were the struggles for national liberation of formerly colonized peoples. There were indeed reaffirmations of the country’s glorious and expansionist past in the “Age of Discoveries”, historiographic myths and cultural variants about what it means to “be Portuguese”. Therefore, we underscore the importance of critical education and the decolonization of history, so that alternative futures can emerge dissociated from the values associated with domination.

Keywords: coloniality of knowledge; epistemological decolonization; history of Portugal; Portuguese identity; social memory

Résumé

Cet article propose une réflexion sur les tensions et les ambiguïtés présentes dans la (re)construction de la mémoire sociale et les différentes visions de l’histoire, autour desquelles se construisent des futurs pour le passé portugais. Nous avons analysé en particulier les récits de 145 élèves de lycées au Portugal sur l’histoire du pays. La Révolution des Œillets a été le principal événement historique mentionné, avec des références à la fin du régime dictatorial, à la lutte pour la liberté et pour l’égalité des opportunités. Toutefois, les luttes de libération nationale des peuples autrefois colonisés n’ont pas été mentionnées. Il y a également eu des réaffirmations du passé glorieux et expansionniste des « découvertes », des mythes historiographiques et des invariants culturels sur ce que signifie « être portugais ». Ainsi, nous discutons de l’importance d’une éducation critique et de la décolonisation de l’histoire, afin que des futurs alternatifs puissent émerger dissociés de valeurs de domination.

Mots-clés: colonialité du savoir; décolonisation épistémologique; histoire du Portugal; identité portugaise; mémoire sociale

Introdução

Nos últimos anos, em função de um conjunto de efemérides, o passado português tem ocupado um espaço privilegiado no cenário mediático e no debate público. Em 2022, foi comemorado o bicentenário da independência do Brasil e o centenário da primeira travessia aérea do Atlântico Sul (entre Lisboa e o Rio de Janeiro). Além disso, as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril tiveram início em 2022 e prolongar-se-ão até 2026. Tal contexto tem permitido respigar memórias da história portuguesa, de modo a evidenciar o seu caráter dinâmico e multifacetado, constantemente em disputa e permeada por lembranças, esquecimentos, (re)interpretações e (re)construções.

No caso das efemérides mencionadas, o caráter multidimensional da memória social é revelado, sobretudo, nas tensões e ambiguidades presentes nesse processo de lembrança: por um lado, quando o Brasil celebra sua independência, Portugal relembra os “Descobrimentos” e o seu pioneirismo expansionista, mesmo que a data represente uma diminuição da importância do antigo império português (Sobral, 2020); por outro, no 25 de abril, o país celebra a reconquista da sua própria liberdade, após 48 anos de ditadura, que culminou no processo de democratização e trouxe consigo expectativas de mudanças e de construção de um país mais justo e inclusivo, expectativas essas que ainda permanecem como um desafio (ver CICDR et al., 2022).

Ademais, esse resgate do passado português não se restringe às celebrações. No âmbito dos protestos antirracistas de 2020, na sequência do homicídio do afro-americano George Floyd nos Estados Unidos da América por polícias, vários grupos a nível mundial promoveram a retirada de monumentos em espaços públicos que homenageavam figuras históricas relacionadas com um passado esclavagista. Em Portugal, um movimento ganhou destaque com a crítica e as pichagens à estátua do padre António Vieira erigida em 2017, em Lisboa, na qual foi escrita a palavra “Descoloniza” em letras vermelhas. Outro exemplo desses questionamentos a monumentos que exaltam o passado expansionista e colonialista português encontra-se também nos graffiti inscritos no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, em 2021 e em 2023. Para além dos diferentes significados desses acontecimentos, o espaço que os mesmos ocuparam no debate público ilustra a importância da história, ou, pelo menos, de representações seletivas do passado (Cardina, 2023) no quotidiano na sociedade portuguesa. Esses diferentes episódios evidenciam também a coexistência, nas narrativas contemporâneas, de histórias e paradigmas por vezes conflituais entre si, como o paradigma colonial, o anticolonial e o nacionalista (Meneses, 2015).

No bicentenário da independência do Brasil, por exemplo, parece ter prevalecido uma visão da história que omite referências substanciais à violência colonial ou ao processo que conduziu à emancipação brasileira. Portugal associou-se à celebração e o coração de D. Pedro (IV de Portugal e I do Brasil) atravessou o oceano Atlântico para “marcar presença” nas comemorações brasileiras, não sem antes, contudo, ser exposto pela primeira vez ao público em Portugal (Lusa, 2022), decisão que parece comportar em si algumas ambiguidades: ao mesmo tempo em que se apresenta um sinal de amizade entre “países irmãos”, recupera-se também relações de poder passadas, mas ainda presentes entre eles.

Diversos estudos têm evidenciado que brasileiros e portugueses tendem a diferir na sua visão do passado histórico “comum”. Enquanto para muitos portugueses o período dos “Descobrimentos” é percebido como “idade de ouro” da nação, suscitando emoções como orgulho ou fascínio, o mesmo não sucede entre brasileiros, cujos sentimentos também incluem a indiferença, revolta ou deceção. No Brasil, há referências ao massacre dos povos originários e outras violências resultantes da “invasão” (ver Cabecinhas et al., 2006; Sá et al., 2004). Tais narrativas e tensões elucidam o nosso ponto de partida e, em particular, a ideia de como as representações sociais da história são ingredientes críticos e importantes para criar, manter e mudar a identidade de um povo (Liu & Hilton, 2005).

A propósito da construção identitária, Sobral (2020) aborda os estereótipos construídos em torno de um suposto “caráter nacional”, ou seja, sobre a existência de constantes ou invariantes culturais que definiriam o que significa ser português. Para o autor, um conjunto de narrativas e estereótipos reforça lugares-comuns como a “bravura”, o “saudosismo” e o perfil “acolhedor”, características geralmente associadas a uma imagem eufemística da própria colonização portuguesa. Essa ideia de uma colonização mais branda foi utilizada, inclusive, pela ditadura salazarista no período que sucedeu à Segunda Guerra Mundial (Alexandre, 1979; Castelo, 1999) como forma de legitimar os territórios ultramarinos a partir de pressupostos lusotropicalistas, que incluem a ideia de uma habilidade especial dos portugueses para relações harmoniosas com outros povos, a sua adaptabilidade aos trópicos e a ausência de preconceitos. Os portugueses seriam capazes de estabelecer relações intergrupais mais harmoniosas e benevolentes nas suas colónias, um mito que ainda hoje se faz presente (Vale de Almeida, 2022; Valentim & Heleno, 2018).

Para Henriques (2020), o sistema ideológico colonial português adquiriu uma densidade teórica singular, cuja força pode ser medida pela sua duração e capacidade de resistência. A autora defende que esse sistema produziu uma forte idealização da questão colonial, a premência da expansão portuguesa e a sua identificação com o pilar da nação, podendo ser pensado em três dimensões. Uma dimensão antropológica, relacionada com a ideia de superioridade racial e cultural do homem branco e a sua “missão civilizadora”; uma histórica, que reforça o pioneirismo dos “Descobrimentos” e a continuidade da importância de Portugal no mundo; e a sociológica, relativa ao mito do lusotropicalismo.

Essas mitologias sobreviveram a mudanças políticas profundas na história de Portugal e as suas consequências permanecem para além do fim da colonização enquanto regime político. A experiência colonial não transformou apenas os países colonizados, mas também a Europa fortemente caracterizada pelo imperialismo. Nesse sentido, torna-se fundamental uma reflexão que traga para o centro do debate a descolonização também da Europa e as incidências contemporâneas do passado colonial, com a emergência de outras narrativas continentais (Ribeiro & Ribeiro, 2016).

O eufemismo e o silêncio sobre o passado colonial português possibilitam, por exemplo, que as narrativas de glória sobre os “Descobrimentos” sejam dissociadas daquelas que identificam a exploração e a violência do colonialismo. Nesse seguimento, Mbembe (2015) afirma que aos povos colonizados foi negada até mesmo a qualidade humana essencial definida como disposição para o futuro, pois tudo era monopólio da Europa e trazido de fora para os nativos, como uma dádiva da civilização. Para o autor, esse “presente” civilizatório, ou seja, a ideia de desenvolvimento promovida pelos colonizadores, transformou a violência colonial em um ato benevolente pelo qual os envolvidos mereciam absolvição.

Diante disso, é fundamental chamar a atenção para as “fraturas que atravessam as sociedades pós-coloniais e para a necessidade de um amplo processo de desvendamento de memórias de violência” (Meneses, 2015, p. 7). A educação, particularmente o ensino de história, pode auxiliar nessa desocultação de memórias “esquecidas”. Contudo, conforme argumenta Victor de Sá (1975), no livro A História em discussão, o ensino seria um dos principais desafios da descolonização, pois os portugueses passaram por uma alienação secular da consciência histórica, por meio de um ensino deturpado, que impossibilitava a compreensão do que verdadeiramente representou a tradição colonialista.

Estudos realizados anos depois sobre os manuais portugueses de história (Araújo, 2020; Cabecinhas et al., 2022; Soares & Jesuíno, 2004; Valentim & Miguel, 2018) indicam que o problema persiste, pois narrativas centradas no pioneirismo dos portugueses no panorama expansionista, bem como nos seus interesses económicos e políticos em terras estrangeiras ainda eram elementos centrais nas narrativas analisadas. E, apesar da inclusão pontual das “visões do outro” sobre períodos mais ou menos demarcados da história nacional, os manuais escolares continuavam a veicular hierarquizações raciais e a reforçar uma visão estereotipada da história, na qual não se observa uma transformação real das estruturas narrativas.

Partindo da noção de descolonização da história como “o processo de libertar a reflexão histórica dos valores fundamentais da dominação, devolvendo a palavra aos silenciados da história e reconhecendo a sua autonomia e a singularidade dos seus percursos históricos” (Henriques, 2020, p. 11), cabe questionar o que mudou ou não em relação à educação histórica em Portugal. Como é que a história do país é contada nas narrativas do presente? Sobre tal questão assentam as reflexões deste artigo, que tem como objetivo analisar representações da história nas narrativas construídas por jovens portugueses. Considerando-se o papel central da memória social para a imaginação coletiva de futuros (Saint-Laurent, 2018), discute-se a importância de uma perspetiva crítica sobre o passado nacional e como esta se relaciona com a possibilidade de construção de futuros alternativos.

1. Método

A pesquisa empírica foi realizada em escolas públicas situadas nas regiões centro e norte de Portugal (concelhos de Aveiro, Barcelos, Braga e Penafiel) e o grupo focal foi a técnica de recolha de dados utilizada. Antes da interação grupal, os participantes responderam a um questionário sobre informações sociodemográficas, tais como idade, género, nacionalidade e experiência migratória direta, ou seja, se já viveram em outro país em algum momento das suas vidas. Além dessas informações, eram solicitados a escrever, numa página com 15 linhas, como contariam a história do seu país: “Imagina que vais contar a história do teu país a uma pessoa estrangeira recém-chegada à escola. Que história contarias?”. Neste artigo, analisamos o conteúdo dessas narrativas, refletindo sobre os factos que foram espontaneamente evocados pelos estudantes como os mais significativos da história nacional.

1.1. Procedimentos

Inicialmente, a equipa entrou em contacto com direções de escolas e, em articulação com professores, foram agendadas sessões com alunos de diferentes turmas do 11.º e 12.º ano. Antes do início de cada grupo focal, os jovens foram convidados a participar voluntariamente do estudo e informados sobre os objetivos desta participação, por meio de um termo de consentimento informado. Assim, estavam cientes de que os dados seriam recolhidos e exclusivamente usados para fins relacionados com a investigação, sendo guardados sob sigilo e usados de forma anonimizada. Em seguida, os jovens escreveram individualmente as suas narrativas sobre a história do seu país, como forma de lançar o tema que seria ali discutido. Os primeiros grupos aconteceram em fevereiro de 2020, antes da declaração de pandemia de COVID-19. Os demais decorreram após a reabertura das escolas, sendo os últimos realizados em março de 2023.

1.2. Participantes

A investigação contou com a participação de 167 estudantes do ensino secundário em 25 grupos focais com uma média de seis participantes cada. A maioria era de nacionalidade portuguesa (86,8%), seguindo-se a brasileira (6%) e outras em menor frequência (3,6%), como venezuelana, britânica e angolana, além de alguns respondentes que indicaram dupla nacionalidade (3,6%). Os participantes responderam sobre a história dos seus respetivos países e aqueles com dupla nacionalidade contaram a história do país com o qual mais se identificavam.

Neste artigo iremos apenas considerar para análise as respostas dos 145 participantes que responderam sobre a história de Portugal (os demais serão trabalhados noutras produções). As idades dos respondentes variaram entre 15 e 19 anos (M = 16,93; DP = 0,87), dos participantes, 92 pessoas (63,4%) identificaram-se como do género feminino, 52 (35,9 %) como do género masculino e uma (0,7%) como não-binária. A maioria dos participantes (90%) relatou não ter experiência migratória direta. No entanto, cabe assinalar que durante os grupos focais alguns estudantes referiram migrações de familiares (pais, avós, etc.). Na apresentação dos excertos das narrativas, além da indicação do concelho, são utilizados nomes fictícios para identificação dos participantes, com o intuito de preservar as suas identidades.

1.3. Análise de dados

O conjunto de dados textuais analisado (corpus) foi composto pelas 145 respostas de jovens portugueses à questão apresentada. O tratamento desse material foi realizado com o auxílio do software Iramuteq - Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires. Este software oferece recursos distintos e possibilita a realização de diferentes tipos de análises de dados textuais ao aproximar estratégias quantitativas e qualitativas.1 Neste trabalho, optamos pela apresentação de duas análises: a nuvem de palavras e a Classificação Hierárquica Descendente (CHD).

A nuvem de palavras produz uma representação gráfica do corpus, na qual cada palavra tem tamanho proporcional à sua frequência, o que possibilita a identificação das palavras-chave. A CHD, por sua vez, é baseada no método desenvolvido por Reinert (1990), que envolve uma análise de agrupamentos (clusters) sobre segmentos de texto. O material textual é sucessivamente repartido em função de coocorrências de formas lexicais nos enunciados e, posteriormente, o software realiza testes de associação qui-quadrado (X²) entre os conjuntos lexicais agrupados (classes) e as suas palavras mais características, permitindo a representação gráfica da análise por meio de um dendrograma (Sousa et al., 2020).

2. Resultados e discussão

Optámos por realizar a apresentação e a discussão dos resultados numa mesma secção, a fim de ressaltar as interconexões entre os conteúdos observados a partir das diferentes estratégias de análise utilizadas. Primeiramente, apresentamos a nuvem de palavras, seguida da discussão dos resultados obtidos por meio da CHD, na qual identificamos discussões de classes temáticas originadas na análise, enquanto subsecções dentro desta secção.

Na Figura 1 observamos com maior destaque palavras que delimitam a própria questão apresentada aos participantes, como contariam “a história do seu país”. Esse exercício narrativo, em princípio, ilustra quais são os conteúdos abordados na prática do ensino de história. Contudo, para além da mera repetição, os relatos e a seleção do que os respondentes consideram acontecimentos e personagens de destaque no passado português estão impregnados de um tempo que é presente. Assim, a perspetiva destes jovens sobre as mudanças e as continuidades ocorridas no país e a sua consciência histórica representam também a memória social e os valores do seu tempo (Moreira & Castro, 2018).

Figura 1 Nuvem de palavras do corpus “A história do meu país”. Fonte: Elaboração própria com recurso ao software Iramuteq. 

Quando observamos as palavras-chave no corpus (frequência igual ou superior a 10), entre os marcos mais citados, parecem predominar duas narrativas principais sobre a história nacional. Por um lado, palavras como “descobrir”, “conquista” e “marítimo”, relacionadas com os “descobrimentos” e, por outro, referências à “Revolução dos Cravos”, “ditadura” e “liberdade”, associadas ao 25 de Abril. Essa centralidade pode refletir a ênfase mediática atribuída às efemérides anteriormente mencionadas, além da importância identitária desses acontecimentos. Mas, cabe questionar como esses e outros marcos históricos “convivem” e se relacionam nessas narrativas. Os acontecimentos são de algum modo associados? Há uma disputa ou concorrência de memórias (Ribeiro & Ribeiro, 2016)? Essas e outras questões são discutidas na análise a seguir.

A análise lexical de CHD, realizada com o apoio do Iramuteq, considerou 93,23% do corpus (ou seja, as respostas dos 145 participantes). Nela, foram realizadas três partições que definiram quatro classes temáticas. Conforme a Figura 2 ilustra, a Classe 4 (20,1%), denominada como “25 de Abril e os significados da libertação nacional”, apresentou o conteúdo que mais se diferenciou das demais, separando-se em uma primeira partição do corpus. Em seguida, uma nova partição separou a Classe 3 (24,8%), “O caráter português: lusotropicalismo e distintividade positiva” e, por fim, a última subdivisão originou as Classes 1 (41,9%) “Nostalgia imperial: Portugal nunca foi um país pequeno” e 2 (13,2%) “Nação antiga e resiliente”. No dendrograma apresentado, foram consideradas as 20 palavras com maior qui-quadrado, ou seja, com maior associação entre a palavra e cada uma das classes formadas. A seguir, serão discutidas as classes e seus principais enunciados ou frases representativas.

Figura 2 Dendrograma da CHD do corpus “A história do meu país”. Fonte: Elaboração própria com recurso ao software Iramuteq. 

2.1. Classe 1 - Nostalgia imperial: Portugal nunca foi um país pequeno

Considerando a frequência do conteúdo associado à Classe 1, esta é a mais representativa do corpus (41,9%). Nela, há ênfase na dimensão expansionista portuguesa, com destaque ao seu cariz ultramarino. Destacam-se narrativas sobre o pioneirismo português nos “Descobrimentos” e a sua importância para o mundo, especialmente em relação à “descoberta” de territórios como o Brasil, como no exemplo: “A descoberta do Brasil em 1500 foi uma das maiores descobertas já feitas na história do mundo. Realizada por um navegador português com o nome de Pedro Álvares Cabral” (Francisco, Braga).

Ademais, palavras como “tamanho”, “grande” e “império” remetem para a ideia central de que Portugal nunca foi um país pequeno, embora tenha passado por muitas mudanças (ou perdas) territoriais. Algumas frases representativas da Classe 1 são: “Portugal foi outrora um grande Império, sendo pioneiro nos Descobrimentos e alcançando feitos incríveis na terra e no mar [...]” (Laura, Braga); “Os portugueses já foram dos maiores Impérios do mundo, tendo meio mundo em sua posse [...]” (Afonso, Braga).

Além da glória dos “Descobrimentos”, a classe contempla também a perda desse lugar de destaque na história mundial: “Portugal já teve metade do mundo na mão, e já foi um grande império, mas acabou por perder tudo e agora somos um país pequeno que muitos, surpreendentemente, dizem que faz parte da Espanha” (João, Braga). Para Sobral (2020), essa representação do passado assente na exaltação da nação é seletiva, pois, em geral, recordam-se os feitos marítimos, mas não o tráfico de pessoas escravizadas (e.g. Cabecinhas et al., 2006). E a própria perceção da decadência serviu para alimentar a ideia de uma história excecional protagonizada pelos habitantes de um país pequeno e pobre que dominou diversos continentes.

Estas narrativas situam a grandeza imperial no passado (uma “idade de ouro” da nação), mas essa ideia ainda parece estar presente nos dias atuais, inclusive, em discursos proferidos por autoridades políticas (Cardina, 2023). Em junho de 2023, por exemplo, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, numa sessão na Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo, defendeu a tese de “grandeza” do país em diferentes esferas, em termos de antiguidade (por ter quase 900 anos), do número de portugueses noutros países, da disseminação da língua por todos os continentes e, até mesmo, a dimensão marítima sob jurisdição portuguesa (Lusa, 2023).

Vitor de Sá (1975), em denúncia à alienação do sistema de ensino português (da forma como se ensina a história das descobertas marítimas, por exemplo), ressaltou que a reconstrução do país, a partir de 1974, deveria interrogar a sua história de modo diferente, sem interesse pela ilusão da extinta “grandeza” imperial, mas sim pelas realidades económicas, sociais e humanas até então ocultadas por uma pedagogia histórica de tipo alienatória. Essa tarefa de reconstrução segue em debate, enquanto um processo permanente, como indica um estudo realizado por Sá et al. (2004) sobre a memória social a respeito do “descobrimento do Brasil”, que encontrou uma representação idealizada com referência a elementos como: “índios”, “caravelas”, “Cabral”, “praia” e “mar”, mas também (em menor escala) algum juízo crítico sobre esse acontecimento histórico, pois, embora naquele período predominasse certa exaltação da figura dos navegadores e da aventura a que se lançaram para descobrir o Brasil, questões como a escravização e a exploração das riquezas brasileiras também foram mencionadas.

Nas respostas dos participantes desta pesquisa, houve também algumas referências a aspetos negativos dos “Descobrimentos”, uma perspetiva mais crítica sobre a história (mesmo que ainda associada à narrativa nacionalista), como nos trechos a seguir: “Somos muito conhecidos devido aos Descobrimentos, por boas razões e por más razões. A história que nos contam é que chegamos ao Brasil e pronto. E não nos contam das escravizações. Depois perdemos as colónias [...]” (Maria, Barcelos); e “Portugal também foi um país que começou a escravatura e também não foi um dos melhores em termos de tratamento dos nativos nas colónias, mas pelo menos também fomos um dos primeiros a abolir a escravatura” (Alice, Penafiel).

Erros históricos como este merecem destaque, pois, durante mais de três séculos, o tráfico negreiro constituiu uma das molas fundamentais do capitalismo mercantil e, ao contrário do que a narrativa apresenta, Portugal não foi um dos primeiros países a abolir a escravatura (Jerónimo & Monteiro, 2020). A memória coletiva tende a encarar o colonialismo e toda a violência a ele associada como coisa do passado, mesmo que as suas consequências mais brutais, como o racismo, ainda hoje se façam presentes na sociedade portuguesa (Alexandre, 1991; Cabecinhas, 2023).

Para Cardina (2023), Portugal tem construído imagens do colonial extirpado da sua dimensão histórica de dominação, pois estas enaltecem a nação a partir da singularidade das “Descobertas” e da especificidade da “presença portuguesa no mundo” e produzem reconfigurações semânticas e desvios interpretativos que rasuram a natureza do colonial como colonial. Essa narrativa nacionalista evitou e continua a evitar diálogos com o passado (Meneses, 2015), como é possível observar pela reiteração de temas antigos do colonialismo português, perpetuando uma visão branda do seu significado.

2.2. Classe 2 - Nação antiga e resiliente

Nesta segunda classe (13,2% do corpus analisado) observam-se narrativas hegemónicas sobre a fundação do país. Reúne, portanto, respostas de estudantes que optaram por contar “como tudo começou”, uma história do nascimento da ideia de Portugal enquanto nação antiga e resiliente. As duas palavras mais frequentes ilustram a personificação dessa ideia fundadora na figura de um homem: “rei” e “D. Afonso Henriques”. Esse tipo de narrativa é caracterizado, não raras vezes, pela recuperação acrítica de acontecimentos e uma mitificação de personagens aos quais se atribui um carácter heroico, como sinónimo de glórias nacionais (Moreira & Castro, 2018).

Algumas frases representativas da ideia geral desta classe são: “Portugal é um país independente desde 1143 cujo primeiro rei foi D. Afonso Henriques [...]” (Duarte, Braga) ou ainda, com mais detalhes: “A ideia de Portugal surge já com os pais do nosso primeiro rei. Nasce Portugal em 1143, com um tratado entre Portugal e Castela (um dos reinos que hoje constitui a Espanha). Mas, o reconhecimento oficial pelo mundo acontece apenas em 1179, com a bula manifestum [sic] probatum [...]” (Lourenço, Barcelos).

Como referem, a nação portuguesa é o resultado do que começou por ser um reino cristão medieval formado por um príncipe da família real castelhano-leonesa e os seus partidários e que conseguiu manter uma existência separada de outros reinos peninsulares (Sobral, 2020). Nas narrativas, houve também referência a Guimarães como berço ou local de nascimento do país, passagens mais genéricas acerca de outras personalidades e mitos patrióticos, da monarquia e de figuras de destaque.

Nesta classe, observou-se ainda a centralidade da ideia das primeiras “conquistas” portuguesas, disputas por território e as rivalidades históricas, observadas no trecho: “Portugal foi fundado por D. Afonso Henriques depois de conquistar terreno aos mouros. Portugal sempre teve problemas com Espanha porque eles queriam tomar conta do país, e houve uma época em que Portugal foi governado por espanhóis [...]” (Leonor, Barcelos). Tal centralidade do conflito tem sido destacada em estudos sobre as representações sociais da história mundial, nos quais se observa uma tendência para considerar eventos relativos a guerras, conflitos e revoluções entre os mais importantes, em detrimento de outros tipos de eventos, como aqueles relacionados a questões socioeconómicas, ambientais ou a conquistas científicas e tecnológicas (e.g., Liu et al., 2009).

Outra tendência sistemática observada nesses estudos, e também nesta pesquisa, é o androcentrismo. Geralmente, as mulheres aparecem simultaneamente como “excecionais” e “excluídas” da história, na qual os homens surgem como se fossem os únicos agentes (Cabecinhas, 2022). As únicas mulheres mencionadas nas narrativas dos estudantes foram Amália Rodrigues, D. Teresa e Inês de Castro. A primeira é referida pela sua consagração enquanto fadista, como é possível identificar no trecho: “temos um grande legado a nível literário-artístico destacando Camões, Eça de Queiroz e o famoso fado, com a importante personagem Amália Rodrigues” (Benedita, Braga).

Por outro lado, as duas outras mulheres mencionadas são figuras fortemente associadas ao protagonismo masculino na historiografia e nas narrativas em análise. A primeira é parte da narrativa fundadora:

D. Henrique de Borgonha] se casou com D. Teresa e tiveram D. Afonso Henriques que mais tarde se revoltou contra a mãe e seguiu ideia do rei de tornar o pequeno território que lhe pertencia num país, que mais tarde ele expandiu para esse país que é chamado hoje de Portugal e D. Afonso se tornou assim, o 1º rei de Portugal. (Matilde, Barcelos)

Já Inês de Castro é recordada como “rainha depois de morta”, como ilustra o seguinte trecho:

Acho mais interessante para contar a um recém-chegado é sem dúvida a [história] do Rei D. Pedro 1º e Inês de Castro. Inês de Castro e D. Pedro se amavam, mas o pai de D. Pedro 1º, o rei Afonso 4º, não era tão fã deste casal, então ele mandou matar Inês de Castro. Mas, D. Pedro como é óbvio, ficou com raiva e imensamente triste com a morte da sua amada e exigiu, que quando morresse, a sepultura de Inês de Castro e a dele ficassem frente a frente. E, mais ainda, ela foi coroada rainha mesmo depois de morta. (Carolina, Braga)

2.3. Classe 3 - O caráter português: lusotropicalismo e distintividade positiva

Nesta classe (24,8% do corpus analisado) o conteúdo prevalente diferencia-se das demais classes ao apresentar narrativas sobre a “história do país” sem referir, necessariamente, marcos históricos, mas, sim, tópicos que poderiam integrar uma campanha de promoção nacional. Houve muitas referências aos atrativos e às distinções de Portugal, com destaque para a gastronomia, o desporto, as belezas naturais e a ideia de que o povo português é amigável e acolhedor com os estrangeiros. O seguinte enunciado ilustra bem esse conteúdo:

Portugal, embora, à vista de muitos, pareça apenas um país pequeno, é considerado o líder relativamente ao destino turístico. É um país diferente, possuímos uma cultura muito própria falando em termos gastronómicos. Somos líderes na revolução para o uso de energias renováveis. Somos um país fantástico em termos de paisagens naturais, como as praias e reservas naturais. Somos um país muito acolhedor e simpático com os estrangeiros. E possuímos figuras em todos os tipos de desporto ou outros tipos de entretenimento. (Santiago, Braga)

Sobral (2020), no texto “O que significa ser português?”, apresenta uma série de questões e pesquisas em torno da ideia de caráter nacional, ou seja, a crença na existência de constantes culturais que definiriam uma “personalidade-base” do português. Entre essas referidas constantes culturais, estaria uma suposta “atração pelo Atlântico”, que explicaria a sua história expansionista, discutida na Classe 1. No entanto, esses estereótipos em torno do que significaria “ser português” não são feitos apenas das imagens épicas da narrativa marítima, mas, também, por outros elementos do “dia-a-dia partilhado” (Sobral, 2020, p. 176), como o apoio a clubes de futebol e a celebração da cozinha portuguesa, presentes nas narrativas em análise.

A classe contempla, portanto, temas antigos do nacionalismo português ao referir elementos definidores de um “caráter nacional”. E, embora haja referência a aspetos negativos - por exemplo, económicos: “Portugal é um país belo, com vários locais turísticos, uma boa gastronomia, porém bastante pobre em relação à economia” (Martim, Aveiro) -, predominam narrativas positivas e, algumas, inclusive, resgatam pressupostos lusotropicalistas (e.g., Valentim & Heleno, 2018) como a habilidade portuguesa para o acolhimento:

Diria que Portugal é um país que, de forma generalizada, gosta de receber estrangeiros. É um país que visa muito a sua história e cultura. A população é bastante amigável. É muito rico a nível gastronómico, temos uma alimentação muito rica e Portugal é bastante reconhecido pelos pontos históricos que chamam, também, vários estrangeiros a visitar o país. (Beatriz, Aveiro)

As narrativas sustentam, portanto, uma imagem dos portugueses enquanto conquistadores, sendo que tais conquistas perpassam os mais variados domínios, como é possível observar no seguinte exemplo: “[...] do futebol até a gastronomia aquilo que Portugal tanto conquistou. E, por fim, na escrita e na literatura portuguesa onde nós destacamos a nossa língua e afirmamos o poder da literatura portuguesa” (Miguel, Penafiel). No mesmo sentido, nas pesquisas apresentadas por Sobral (2020), a cultura e o desporto estão entre os principais motivos de orgulho dos portugueses, que na altura citavam factos como o Prémio Nobel de Saramago e os feitos desportivos de Eusébio. A presença de “Cristiano Ronaldo” entre as evocações mais frequentes nesta classe ilustra a manutenção deste perfil e como a exaltação das conquistas, sejam elas territoriais ou futebolísticas, ainda servem para a manutenção da autoestima nacional.

2.4. Classe 4 - 25 de Abril e os significados da libertação nacional

A Classe 4 (20,1 % do corpus) foi a primeira a ser separada, sendo aquela que apresentou o conteúdo mais característico entre as várias classes. Nela, há uma centralidade no facto histórico que pôs fim à ditadura salazarista, o “25 de Abril’ ou a “Revolução dos Cravos”, enquanto o marco mais relevante da história nacional. Como é possível observar no seguinte excerto:

Portugal tem muitos feitos históricos, mas um dos mais marcantes é a Revolução do 25 de Abril, também conhecida como a Revolução dos Cravos. Causada pela repressão de liberdades civis, política e de expressão, foi assim o denominado feriado nacional, dia da Liberdade. Assim também [de]terminou a implantação de um regime democrático e entrou em vigor a nova constituição. (Margarida, Penafiel)

Nas narrativas desta classe, destaca-se o foco nos militares enquanto os principais responsáveis pela libertação nacional, tendendo a esquecer as outras pessoas que lutaram pela liberdade ou referindo-os, genericamente, enquanto “colaboradores”, como na passagem: “[...] existiu uma revolução, a revolução é conhecida como Revolução dos Cravos, Portugal já vivia em ditadura há décadas e um grupo de militares decidiu [...] com a população a colaborar [n]a revolução […] [pôr] fim à ditadura de Salazar” (Sofia, Barcelos). Como o 25 de Abril representa o dia em que o Movimento das Forças Armadas (MFA) realizou o golpe que derrubou o Estado Novo, mesmo que as mudanças ocorridas na sociedade portuguesa se devam, também, à expressão da vontade popular, ao combate à repressão, às conquistas das liberdades e às lutas de independência de antigas colónias africanas (Cardina, 2023), o mérito dessa conquista é quase exclusivamente atribuído aos heróis do MFA e ao simbolismo dos cravos nas armas dos soldados:

Os portugueses puseram fim à ditadura no dia 25 de abril de 1974. A população vivia condicionada e sem liberdade, assim, fizeram uma revolução em que o principal feito foi o fim da guerra ditatorial. Esta Revolução é representada por cravos vermelhos, que foram postos nas armas dos soldados portugueses. (Francisca, Braga)

O caráter pacifista da revolução também é predominante nas narrativas desses jovens: “[...] esta revolução é tão importante e marcante porque não foi disparada uma única bala e o exército português uniu-se ao povo e lutaram por um direito que é a liberdade” (Gabriel, Braga); “Orgulho-me desta data, pois foi um movimento militar muito pacífico, transmitindo os verdadeiros valores do país, através da passagem de muitas mensagens, a música, o facto de não terem recorrido à violência e por terem lutado com muita esperança pelos interesses da população” (Camila, Penafiel).

Assim, as vítimas mortais das balas disparadas nesse dia por elementos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS) são esquecidas nas narrativas. O relato de que “não foi disparada uma única bala” também remete para o esquecimento do sangue derramado, sobretudo em África, na guerra colonial/lutas de libertação. Observa-se, portanto, um retrato de uma narrativa idealizada que estabelece poucos diálogos com diferentes versões de um mesmo passado (Meneses, 2015). Desse modo, verifica-se uma supressão histórica da ação coletiva de grupos subalternizados e o esquecimento da luta dos povos africanos, outrora colonizados, pela libertação nacional, denunciando o silêncio sobre a guerra colonial, como expressão de uma ordem hegemónica que “apaga” da história determinadas versões e experiências vividas (Cardina, 2023; Coelho, 2003). Nesse sentido, para Khan et al. (2019) é fundamental reconhecer como as conquistas comemoradas no presente foram construídas também pelas resistências e lutas anticoloniais que contribuíram para o fim do colonialismo político, além de legarem inspiradoras narrativas de dignidade humana.

Em várias narrativas, o 25 de Abril é também associado ao fim da PIDE/DGS e da censura e à efetivação de direitos humanos, nomeadamente da igualdade. Porém, alguns estudantes salientam a persistência de diversas formas de discriminação no contexto português, como ilustra o excerto: “[...] apesar de haver muita igualdade, infelizmente ainda é um país com poucos princípios e racista por causa da população idosa e não acreditarem no que a nova geração pode e tem a dar ao país” (Clara, Aveiro). Nessa perspetiva, a culpa do racismo, por exemplo, seria da “população idosa” e da sua “mentalidade atrasada”: “[...] é um país atrasado em questão de mentalidades, mas tem paisagens muito bonitas e uma história extraordinária” (Madalena, Aveiro). Macedo et al. (2023) referem essa crença de uma “nova geração” que se considera transformadora e destituída de preconceitos, tendendo a associar os mais velhos ao racismo, à homofobia, à transfobia, etc. Entretanto, observa-se que esses jovens reproduzem mitos historiográficos e, não raras vezes, narrativas com elementos que parecem ressaltar um “efeito nostálgico” (Cabecinhas & Brasil, 2019), que se traduz numa avaliação mais positiva do passado remoto (expansionista e colonialista) de Portugal em comparação com o seu passado recente.

Entre os “três D” do programa da Revolução (Descolonizar, Democratizar, Desenvolver), o mais mencionado nas narrativas é a democratização, descrita enquanto uma conquista consolidada. Não há uma discussão, por exemplo, sobre o descolonizar, nem sobre os seus significados e consequências para Portugal e para as ex-colónias. Sobre tais questões, Coelho (2003) refere que, nos contextos angolano e moçambicano, o modo como os acontecimentos se desenrolaram após o 25 de Abril e as respetivas independências produziram um legado de violência com contornos ainda não inteiramente circunscritos e que permaneceram enquanto fator alimentador de conflitos pós-coloniais.

De modo geral, as narrativas destes jovens portugueses sobre a história do seu país (re)produzem representações seletivas do passado (Cabecinhas et al., 2006; Cardina, 2023), que nos levam a refletir sobre como a história é contada no presente, ou ainda sobre como se imagina um futuro para o passado de Portugal. Tais narrativas parecem organizar-se a partir de uma polarização entre o “Portugal de ontem” vs. o “Portugal de hoje e amanhã”. As narrativas do passado remetem para a construção do país e para a sua posterior (e gloriosa) expansão territorial, bem como para elementos de um passado mais recente sobre o período ditatorial, entre as décadas de 1930 e 1970, e o movimento revolucionário que levou ao fim da ditadura. Já as narrativas do presente/futuro também apresentam elementos referentes ao passado distante e recente do país, porém grande parte do seu conteúdo refere-se a elementos diversos que se destacam no projeto de nação que, para os participantes, é interessante mostrar aos recém-chegados ao país. Em geral, há uma simplificação de processos históricos e uma visão muitas vezes romântica ou repleta de eufemismos acerca do passado da nação, especialmente no que se refere ao passado colonial.

Embora surjam narrativas mais críticas, mesmo na classe em que há um destaque ao 25 de Abril, à liberdade e à igualdade de oportunidades a ele associadas, não há referência ao impacto das lutas dos povos outrora colonizados nem ao seu contributo para as conquistas das libertações nacionais, celebradas no presente. Desse modo, os resultados reforçam o “dever cívico da memória”, pautado num “imperativo ético que conecte o necessário reconhecimento do passado com as lutas por futuros questionadores das heranças de violência instauradas pelos colonialismos” (Khan et al., 2019, p. 3).

Considerações finais

Neste artigo propusemos uma reflexão sobre a história na perspetiva de jovens portugueses. Os resultados evidenciaram as dinâmicas entre lembranças e esquecimentos, bem como as tensões e as ambiguidades presentes na (re)construção da memória social e das diferentes versões contadas da história. Evidenciaram, ainda, como essa memória social da história nacional se organiza a partir de modelos ou esquemas narrativos (Wertsch, 2008) que envolvem eventos, atores e enredos diversos, que participam da dinâmica identitária de um grupo e que funcionam como guias para a ação (Liu & Hilton, 2005). Neste estudo, tais narrativas nacionais sublinham diferentes elementos passados e presentes a partir dos quais se constrói a “alma nacional” portuguesa (Cunha, 2001) e em torno dos quais se imagina um futuro para o passado de Portugal.

Nesse sentido, sublinhamos a necessidade de ampliação das narrativas que possibilitam um olhar plural para o futuro, a partir de uma perspetiva muitas vezes silenciada sobre o passado, que envolva um verdadeiro “trabalho de memória” (Ribeiro & Ribeiro, 2016, p. 7), por meio do qual sejam desveladas experiências e memórias rasuradas, bem como permanências e mudanças observadas na construção da história nacional. Esse “trabalho de memória” inclui também, portanto, uma reflexão crítica sobre as continuidades do colonialismo como forma de relação social, que se traduzem na colonialidade do poder, do ser e do saber, que se mantêm vivas em diferentes contextos e aspetos das nossas experiências quotidianas (Quijano, 2005). Tal processo de desocultação de histórias e de luta contra o esquecimento faz parte dos chamados “ativismos mnemónicos” (Cabecinhas, 2022) e pressupõe a compreensão da memória como uma forma crucial de transformar a sociedade (Gutman & Wüstenberg, 2022), desempenhando um papel fundamental na construção de uma educação crítica e na tarefa de desconstrução de mitos historiográficos.

Apesar das suas contribuições, o estudo realizado tem algumas limitações, como a interrupção da recolha de dados durante alguns meses em função da pandemia de COVID-19 e a restrição da análise a apenas alguns estudantes do ensino secundário. Uma ampliação para outros níveis de ensino pode promover novas e interessantes discussões sobre o tema. Entretanto, ressaltamos que esta pesquisa foi realizada nas regiões centro e norte de Portugal e, com isso, possibilita uma discussão para além da realidade da Grande Lisboa, na qual a maioria dos estudos está centrada.

Por fim, sustentamos que auscultar essas diferentes narrativas de jovens sobre o passado nacional permite-nos entender e discutir como o passado de Portugal tem sido abordado no presente, mas não só. Esta análise constitui um passo importante para que possamos imaginar coletivamente futuros possíveis (Saint-Laurent, 2018), ou ainda, alcançar o que é preciso transformar hoje, em termos de educação crítica e da descolonização da história. Especialmente no contexto atual, com maior contacto entre diferentes grupos, torna-se cada vez mais urgente reconhecer a diversidade que faz parte da configuração da identidade nacional portuguesa, mas também de diferentes países. Tal reconhecimento pode abrir caminhos para que antigas promessas de construção de sociedades mais justas e igualitárias se concretizem e para que futuros alternativos possam emergir dissociados dos valores de dominação.

Declaração de conflitos de interesse

As autoras declaram não existir quaisquer conflitos de interesse.

Declaração de ética

A investigação da qual resulta este artigo foi submetida à avaliação da Comissão de Ética para a Investigação em Ciências Sociais e Humanas (CEICSH) da Universidade do Minho, que emitiu o parecer favorável ao seu desenvolvimento e atribuiu-lhe a referência CEICSH 025/2020.

Agradecimentos

As autoras agradecem aos/às dois/duas revisores/as anónimos/as e ao Conselho de Redação da RCCS o seu contributo para a melhoria deste texto, bem como a todas as pessoas que colaboraram no estudo, sem as quais este texto não seria possível.

Financiamento

Este trabalho foi realizado no âmbito do projeto “MigraMediaActs - Migrações, media e ativismos em língua portuguesa: descolonizar paisagens mediáticas e imaginar futuros alternativos” (PTDC/COM-CSS/3121/2021), financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P.

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Notas

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Recebido: 30 de Junho de 2023; Aceito: 19 de Janeiro de 2024

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