Apresentação do Caso
Doente de 65 anos com antecedentes pessoais de artrite reumatóide diagnosticada há mais de 30 anos, em tratamento.
Há 4 anos recorreu a Consulta de Ortopedia por parestesias e incapacidade de extensão dos dedos da mão esquerda, sem história traumática.
Realizou EMG que revelou a existência de neuropatia cubital com localização provável no cotovelo, e síndrome do túnel cárpico à esquerda.
No decurso da avaliação por diversas Especialidades (Neurologia, Neurocirurgia, Reumatologia, Fisiatria), realizou RM do crânio, coluna cervical e dorsal, onde foi diagnosticada malformação Arnold-Chiari I e siringomielia cervico-dorsal (Fig. 5). O desenvolvimento de dor e tumefacção do ombro, associados às neuropatias periféricas do membro superior à esquerda motivaram o pedido de avaliação imagiológica do ombro, com infomação de “lesão expansiva do ombro com envolvimento nervoso e parésia do membro superior esquerdo”.
Após realização de estudo radiográfico, TC e RM do ombro (Figs. 1, 2 e 3 respectivamente), e estudo radiográfico do cotovelo(Fig. 4), a constatação de extensa desorganização articular gleno-umeral, com derrame, fragmentação e rotura crónica da coifa dos rotadores, associada à presença de alterações semelhantes no cotovelo (Fig. 4) desse lado e à existência de siringomielia e malformação de Chiari (Fig. 5), permitiram concluir pelo diagnóstico de neuroartropatia de Charcot crónica. Apesar de, classicamente, estar descrita a associação de siringomielia à forma atrófica de neuroartropatia do ombro, as exuberantes alterações produtivas ósseas presentes são indicativas da forma hipertrófica desta entidade.
O efeito de massa das artropatias do membro superior, particularmente a nível do cotovelo, justificam a neuropatia cubital, por efeito compressivo da hipertrofia óssea/ sinovial no nervo a nível da goteira epitrócleo-olecraniana.
Discussão
A artropatia neuropática ou neuroartropatia de Charcot é uma condição degenerativa geralmente progressiva e crónica, que condiciona destruição de uma ou mais articulações, estando associada a um déficit neurossensorial, cuja etiologia inclui várias entidades, sendo as mais frequentes a diabetes mellitus, siringomielia, tabes dorsalis e outras neuropatias periféricas e centrais. A identificação precoce da causa deste déficit neurosensorial é fundamental para evitar a progressão da artropatia.
No que diz respeito à fisiopatologia desta entidade, existem duas teorias comummente aceites: a teoria neurotraumática e a neurovascular.
A teoria neurotraumática advoga que na génese da destruição articular estão microtraumas repetidos, consequentes à perda da sensibilidade periférica e da sensibilidade proprioceptiva.
A teoria neurovascular sugere que a neuropatia periférica leva ao aumento da perfusão sanguínea óssea, que por sua vez aumenta a actividade osteoclástica e resulta em osteopenia. O osso fragilizado é propenso a fracturas patológicas, causando importante destruição e deformação articular.
A localização anatómica dos achados ósseos e articulares, a idade do doente e a história clínica fornecem pistas para a pesquisa etiológica.
No membro superior, a etiologia mais frequente da artropatia de Charcot é a siringomielia, estimando-se que 20-25% dos doentes com siringomielia desenvolvem artropatia de Charcot.
Na génese da siringomielia podem encontrar-se diversas condições, como as neoplasias da fossa posterior, traumatismos vertebro-medulares, hemorragias sub- aracnoideias, aracnoidites da cisterna basal e malformações da junção crânio-vertebral, nomeadamente a malformação de Arnold-Chiari.
A siringomielia pode apresentar-se com uma ampla variedade de sintomas neurológicos, dependendo da sua localização exacta, embora classicamente exista perda da sensibilidade térmica e dolorosa em “capa” ao longo da região cervico-dorsal e membros superiores. À medida que o volume da siringomielia aumenta pode existir abolição dos reflexos miotácticos, redução/perda da força e atrofia muscular, sendo estas alterações tipicamente mais expressivas nos membros superiores comparativamente com os membros inferiores. Na artropatia de Charcot causada por siringomielia pode existir envolvimento articular dos ombros e cotovelos, e raramente das mãos, sendo a forma monoarticular mais frequente.
No caso concreto da neuropatia de Charcot do ombro, a manifestação clínica inicial mais frequente é o aumento de volume, seguido de dor, rigidez e redução da amplitude articular.
As manifestações imagiológicas da osteoartropatia neuropática variam ao longo de um espectro que inclui o padrão atrófico e o padrão hipertrófico, podendo os dois coexistir, sendo o primeiro mais frequente em articulações das extremidades superiores, que não suportam a carga corporal. Estes dois padrões, que têm em comum a ocorrência de desorganização da articulação, representam segundo alguns autores estadios diferentes da história natural da doença.
Classicamente, no padrão hipertrófico existe destruição articular com fragmentação, esclerose óssea e formação de osteófitos, sendo por vezes difícil distinguir estes achados de alterações degenerativas avançadas.
Na forma atrófica existe reabsorção óssea massiva cujo aspecto muitas vezes é semelhante a uma amputação cirúrgica e outras vezes tem características similares a uma artrite séptica.
As fracturas são outra manifestação possível e acontecem espontaneamente ou na sequência de traumatismos minor. Frequentemente passam despercebidas e são mais tarde diagnosticadas pela visualização de exuberante calo ósseo. Várias entidades podem ser incluídas no diagnóstico diferencial do caso clínico em questão.
A artrite reumatóide, de que a paciente sofria há décadas, não justifica os achados presentes, uma vez que se caracteriza essencialmente por alterações destrutivas ósseas (e.g. erosões, osteopenia), sendo as alterações produtivas (e.g. anquilose, doença articular degenerativa secundária) muito mais subtis e com padrão imagiológico distinto do encontrado.
A artropatia degenerativa, nomeadamente a que se desenvolve na rotura crónica completa da coifa do rotadores, bem como o chamado ombro de Milwaukee, podem cursar com instabilidade e derrame volumoso, mas as alterações produtivas ósseas são geralmente menos exuberantes, sem o grau de desestruturação e fragmentação observado no presente caso.
A miosite ossificante e calcinose tumoral cursam com calcificações por vezes exuberantes de partes moles, mas não apresentam envolvimento ósseo ou articular, sendo as calcificações extra-articulares e com padrão diferente.
A osteocondromatose sinovial é outra entidade que pode cursar com múltiplos corpos livres intra-articulares ossificados. O grau de desestruturação articular e a exuberância das alterações degenerativas na artropatia de Charcot são, mais uma vez, a chave para o diagnóstico diferencial.1,2,3,4