INTRODUÇÃO
Na maioria dos países desenvolvidos a reabilitação faz parte dos cuidados prestados à pessoa em situação crítica, sendo reconhecida a sua importância em particular na mobilização precoce, uma prática segura e benéfica que deve constituir uma prioridade neste contexto.1
Por norma, a mobilização e outras técnicas de reabilitação, são asseguradas maioritariamente por fisioterapeutas integrados na equipa ou em regime de chamada, dependendo do país em análise. 2,3 Nas unidades de cuidados intensivos portuguesas a fisioterapia é feita maioritariamente em regime de chamada pelo médico intensivista, contudo no processo de reabilitação intervêm também enfermeiros com formação especializada em reabilitação, vulgarmente designados enfermeiros de reabilitação (ER).4 Esta especialização da enfermagem surgiu, em Portugal, na década de 60 tendo por base o modelo Norte Americano. Numa fase inicial formaram-se especialistas para o Centro de Medicina Física e Reabilitação do Alcoitão e posteriormente, o aumento do número de ER’s permitiu que passassem a integrar serviços de reabilitação ou cinesiterapia respiratória e que integrassem também cuidados de saúde primários e serviços hospitalares, sem que tenha havido uma distribuição homogenia com base nas necessidades destes cuidados especializados. 5
Segundo a Ordem dos Enfermeiros “o enfermeiro especialista em enfermagem de reabilitação concebe, implementa e monitoriza planos de enfermagem de reabilitação diferenciados, baseados nos problemas reais e potenciais das pessoas. (…) A sua intervenção visa (…) assegurar a manutenção das capacidades funcionais dos clientes, prevenir complicações e evitar incapacidades, assim como proporcionar intervenções terapêuticas que visam melhorar as funções residuais, manter ou recuperar a independência nas atividades de vida (…)”. O especialista em enfermagem de reabilitação intervém sobretudo “ao nível das funções neurológica, respiratória, cardíaca, ortopédica”6 enquadrando-se naquilo que serão as necessidades de cuidados de reabilitação do doente crítico.7-9
Estes enfermeiros estão dispersos por quase todas as unidades, ainda que, por falta de recursos ou opções de gestão, nem sempre desempenhando funções dentro da área de especialização. Ainda assim, podemos encontrar ER’s integrados na equipa multidisciplinar das unidades de cuidados intensivos (UCI’s) ou integrados em equipas especializadas que se deslocam às unidades para prestar cuidados de reabilitação, fazendo parte de uma organização heterogenia assente em 3 modelos base:4
Modelo interno - cuidados de reabilitação prestados pela equipa da unidade, presente em cerca de 23% das unidades;
Modelo externo - cuidados de reabilitação prestados por equipa externa especializada, presente em 25% das unidades;
Modelo Misto - cuidados de reabilitação prestados pela equipa da unidade em articulação com cuidados por equipa externa, num misto dos modelos anteriores, a situação mais comum que abrange 52% das unidades.
Neste contexto, o ER está presente em todas as unidades que usam o modelo interno e em cerca de 19% das equipas externas especializadas que prestam cuidados de reabilitação ao doente critico. 4
Neste artigo pretendemos analisar mais ao pormenor esta informação de forma a compreender a importância da Enfermagem de Reabilitação nas unidades de cuidados intensivos portuguesas. A questão de investigação colocada foi: Qual a importância dos enfermeiros de reabilitação nos cuidados ao doente critico, adulto, em Portugal? São objetivos específicos deste trabalho:
- Determinar a disponibilidade de enfermeiros com formação especializada em reabilitação nas UCI portuguesas;
- Avaliar a taxa de utilização destes profissionais para o desempenho de funções especializadas na área de reabilitação;
- Avaliar se o número de enfermeiros de reabilitação em cada unidade está relacionado com a organização dos cuidados de reabilitação;
- Determinar a participação dos enfermeiros de reabilitação na mobilização dos doentes críticos;
- Avaliar a influência da presença de enfermeiros de reabilitação nos resultados assistenciais;
- Avaliar a participação dos enfermeiros de reabilitação em possíveis avaliações do doente após a alta da UCI.
MÉTODOS
Análise secundária do inquérito nacional de avaliação da organização dos cuidados de reabilitação nas unidades de cuidados intensivos portuguesas. Estudo realizado entre novembro de 2016 e março de 2017, através de inquérito on-line aos Enfermeiros Chefes ou Responsáveis das 58 UCI’s de adultos que integram a base de dados da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos. O inquérito foi composto por um total de 28 questões, agrupadas em: caraterização da instituição, caraterização da unidade, caraterização da equipa, organização dos cuidados de reabilitação, disponibilidade de recursos e resultados.4
A análise estatística foi realizada através do programa IBM SPSS Statistics versão 22. No que respeita à estatística descritiva foram calculadas frequências, percentagens, médias e desvios padrão.
Foi utilizado o teste de Qui Quadrado para comparar a distribuição do número de ER de acordo com os diversos modelos de organização dos cuidados de reabilitação e para comparar a avaliação da condição física na alta entre UCI’s com e sem ER.
A comparação dos resultados assistenciais realizou-se através do teste de Mann-Withney para amostras independentes.
Utilizou-se um nível de significância de 0.05.
Estudo aprovado pela Comissão de Ética da Universidade da Beira Interior (Parecer CE-FCS-2016-028).
RESULTADOS
Obtiveram-se 48 inquéritos válidos relativos a 42 unidades médico-cirúrgicas ou polivalentes, 3 unidades neurocirúrgicas e 2 unidades cardiotorácicas (1 inquérito não refere o tipo de unidade). Estas unidades representam um total de 399 camas de cuidados intensivos e 132 camas de cuidados intermédios.
Disponibilidade de enfermeiros com formação em reabilitação
Uma unidade integra na sua equipa, em média, 31.6 ± 14.7 enfermeiros, dos quais cerca de 9.6% possuem formação especializada em enfermagem de reabilitação. Estas UCI´s incluem um total de 140 enfermeiros com este tipo de especialização, em média, 2.9 ± 1.8 enfermeiros por unidade.
- 93.8% das unidades têm enfermeiros com formação especializada em reabilitação na sua equipa;
- 75.0% das unidades têm enfermeiro com formação especializada em reabilitação em exercício de funções especializadas;
- 45.8% das unidades têm enfermeiro com formação especializada em reabilitação em exercício de funções especializadas a tempo inteiro.
Em termos absolutos, 60% dos enfermeiros com formação especializada desempenham funções especializadas, 26.4% a tempo inteiro e 33.6% a tempo parcial (gráfico 1).
Analisando a distribuição do número de ER de acordo com os diversos modelos de organização dos cuidados de reabilitação (Tabela 1) verificamos que, em termos médios, é no modelo misto (articulação dos cuidados de reabilitação prestados pela equipa da UCI com equipas externas especializadas) que existe maior número de enfermeiros com formação especializada em reabilitação por UCI (3.6 ± 2.0 enfermeiros/unidade). Em oposição as unidades em que os cuidados de reabilitação são prestados por equipas externas são as que têm menos ER’s na sua equipa (1.58 ± 1.17).
Para além dos ER’s integrados nas equipas de cuidados intensivos, em 10 unidades (cerca de 17%) estes profissionais integram as equipas externas que prestam cuidados de reabilitação nesses serviços.
Participação na mobilização e levante dos doentes
Para além das atividades de reabilitação realizadas no leito os ER’s, independentemente do modelo de organização dos cuidados de reabilitação, são geralmente os dinamizadores da mobilização dos doentes para fora do leito (Gráfico 2) e têm participação ativa nesse procedimento, geralmente em articulação com o enfermeiro cuidador (Gráfico 3).
Influência nos resultados
Das 48 unidades em análise apenas 19 referiram os resultados relativos a tempo de internamento, tempo de ventilação e taxa de mortalidade. Estes resultados não diferem significativamente por existirem na equipa enfermeiros com formação em reabilitação ou por existirem ER’s a tempo inteiro (Tabela 2).
Participação na avaliação à alta e pós-alta
No que respeita à avaliação na alta, apenas em cerca de 22% das unidades é avaliada a funcionalidade dos doentes. Contudo observam-se diferenças significativas entre as unidades que têm ER a tempo inteiro e as que não possuem enfermeiros nessas condições (X2 (2) = 5.373; p = 0.020; N = 41), com as primeiras a realizarem mais frequentemente esse tipo de avaliação (38,7 versus 8,9%).
Modelo de organização | Modelo interno | Modelo externo | Modelo misto | Valor de p | |
---|---|---|---|---|---|
Nº de enfermeiros especializados em reabilitação | Soma | 31 | 19 | 90 | 0.003 |
(Média ± Desvio padrão) | (2.82 ± 0.75) | (1.58 ± 1.17) | (3.60 ± 2.00) | ||
Nº de enfermeiros de reabilitação a tempo inteiro | Soma | 14 | 3 | 20 | 0.096 |
(Média ± Desvio padrão) | (1.27 ± 1.42) | (0.25 ± 0.45) | (0.80 ± 0.96) | ||
Nº de enfermeiros de reabilitação a tempo parcial | Soma | 14 | 0 | 33 | 0.006 |
(Média ± Desvio padrão) | (1.27 ± 1.35) | (0.00 ± 0.00) | 1.32 ± 1.60) | ||
Nº de enfermeiros de reabilitação que não desempenham funções | Soma | 3 | 16 | 37 | 0.129 |
(Média ± Desvio padrão) | (0.27 ± 0.46) | (1.33 ± 1.37) | (1.48 ± 2.20) |
UCI com enfermeiro de reabilitação | Não | Sim | Valor de p | |
---|---|---|---|---|
Tempo médio de internamento (dias) | N | 2 | 26 | 0.894 |
Média ± Desvio padrão | 7.45 ± 0.78 | 7.37 ± 2.33 | ||
Tempo médio de ventilação invasiva (dias) | N | 0 | 20 | |
Média ± Desvio padrão | 5.73 ± 2.69 | |||
Taxa de mortalidade | N | 1 | 23 | 1.000 |
Média ± Desvio padrão | 21.00 ± - - | 20.79 ± 6.21 | ||
UCI com enfermeiro de reabilitação a tempo inteiro | Não | Sim | Valor de p | |
Tempo médio de internamento (dias) | N | 16 | 12 | 0.347 |
Média ± Desvio padrão | 7.65 ± 2.23 | 7.02 ± 2.32 | ||
Tempo médio de ventilação invasiva (dias) | N | 11 | 9 | 0.370 |
Média ± Desvio padrão | 6.43 ± 2.24 | 4.87 ± 3.07 | ||
Taxa de mortalidade | N | 13 | 11 | 0.228 |
Média ± Desvio padrão | 19.51 ± 4.95 | 22.32 ± 7.12 |
Os números de avaliação após alta são ligeiramente inferiores, apenas com 12.5% das unidades a referirem efetuar este tipo de acompanhamento e, ainda assim, de forma muito díspar. Não foi referida a participação de enfermeiros especialistas em reabilitação nesta avaliação.
DISCUSSÃO
Os enfermeiros com especialização em enfermagem de reabilitação estão presentes na maior parte das UCI a nível nacional, uma situação sem paralelo a nível internacional. 10 Para além do trabalho que desenvolvem junto dos doentes, tomando a iniciativa de iniciar precocemente o processo de reabilitação e elaborando um plano adequado à condição do doente, 4 estes profissionais promovem, como se evidencia nesta análise, a mobilização dos doentes para fora do leito, indo de encontro às orientações que preconizam a precocidade na mobilização destes doentes.11
A par do trabalho clínico são desenvolvidos projetos de investigação em áreas concretas da reabilitação dos doentes críticos, nomeadamente a nível respiratório, 12-16 motor 17 e também na promoção da autonomia18 e nas competências para o atendimento à pessoa com dependência no autocuidado19. Este desenvolvimento parece estar intimamente relacionado com a criação dos cursos de mestrado em enfermagem de reabilitação uma vez que a maior parte das investigações foram desenvolvidas nesse âmbito.
Apesar de neste artigo se apresentarem alguns traços do que é a intervenção da enfermagem de reabilitação nas unidades de cuidados intensivos, estamos convictos que apenas apresentamos a ponta do iceberg e que a investigação nesta área tem elevado potencial. Seria interessante conhecer de facto o quão precoce é mobilização e se cumprimos as recomendações internacionais, o que nem sempre se tem verificado nos trabalhos de investigação desenvolvidos em outros países.20-22 Neste aspeto em particular, a enfermagem de reabilitação poderia reforçar a sua posição, pois trata-se de um contexto sensível em que é fundamental o domínio de um conjunto de competências muito especificas ao alcance dos ER’s. Esta afirmação passa também pela documentação da prática e os indicadores são a melhor ferramenta. A Ordem dos Enfermeiros e o Colégio da Especialidade de Enfermagem de Reabilitação já deram alguns passos nesse sentido, divulgando um conjunto de indicadores potencialmente sensíveis aos cuidados de reabilitação.23 Há que identificar aqueles que mais se adequam e eventualmente complementar com alguns indicadores mais específicos deste contexto.24-26 Para desenvolver este trabalho será importante aumentar a participação dos ER na avaliação da condição física dos doentes na alta e no pós alta e rentabilizar os 40% de enfermeiros com formação especializada que à data não desempenhavam funções na área.
CONCLUSÃO
Os enfermeiros com especialidade em enfermagem de reabilitação estão presentes na maioria das UCI’s nacionais e constituem um elemento importante nos cuidados ao doente crítico, situação ímpar no contexto internacional. A sua intervenção passa por desenvolver planos de cuidados individuais, incluindo mobilização para fora do leito, e a sua atividade é sustentada por uma crescente produção científica. Não possuímos neste momento dados que nos permitam inferir sobre a influência nos resultados assistenciais, de um modo geral, ou mais especificamente na funcionalidade ou em ganhos no autocuidado, alvos da intervenção desta especialidade.