Introdução
É-me muito honrosa a oportunidade de contribuir para este número especial que assinala os 60 anos da Análise Social - a revista que foi fundadora da sociologia moderna em Portugal e que, como recordado por Peixoto e Marques (2003), estipulou nos seus primeiros números o objetivo de ligar a economia e a sociologia. Associo-me igualmente ao reconhecimento coletivo que é prestado a Adérito Sedas Nunes, sendo inevitável ter presente a sua ligação ao então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (atual ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão) - escola onde se formou, lecionou e criou o Gabinete de Investigações Sociais (GIS), em 1962 -, e fundamentalmente o legado que deixou às Ciências Sociais, à institucionalização da Sociologia em particular e à valorização do diálogo interdisciplinar entre a economia e a sociologia1 (Nunes, 1964). É com esta tela de fundo que recuo, nestas páginas, à investigação realizada na área de Economia do ISEG acerca das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho (Silva, 1983) para destacar a relevância de uma perspetiva de género na compreensão dessas disparidades e na “desocultação” das respetivas causas - contribuição fundamental para os novos trilhos 2 da Sociologia Económica e das Organizações (SEO).
O Emprego das Mulheres em Portugal - A “Mão Invisível” da Discriminação Sexual no Emprego - trabalho publicado por Manuela Silva, em 1983 - colocou o ISEG como uma instituição precursora no estudo de uma dualidade relativamente invisível no plano científico nacional. Nele se encontra uma abordagem crítica quanto aos pressupostos da economia mainstream acerca da racionalidade das decisões dos atores - seja do lado da oferta, seja do da procura -, por deixarem invisíveis as causas da discriminação sexual. Retoma-se, nas páginas seguintes, esta linha de raciocínio, com o foco nas desigualdades remuneratórias.3 Assim, numa primeira parte do texto, são abordadas as insuficiências das teorias do capital humano (TCH), explicitando-se a relevância da incorporação de uma perspetiva de género no domínio da SEO. Ao contribuir para a renovação desta área disciplinar, aquela lente afigura-se muito relevante na interpretação da complexidade inerente aos processos que (re)produzem as desigualdades de género no mercado de trabalho e as disparidades remuneratórias em particular. No subcapítulo seguinte, procede-se a uma breve caracterização da participação laboral das mulheres e dos homens em Portugal, tendo presente o contexto mais abrangente da União Europeia (UE). Na terceira parte do texto, detemo-nos na análise do diferencial remuneratório entre homens e mulheres em Portugal, recorrendo a uma fórmula de cálculo que permite controlar o efeito de diferenças individuais observadas entre homens e mulheres. Complementarmente, através da aplicação do método de decomposição Blinder-Oaxaca, será quantificada a parcela explicada e a parcela não explicada desse diferencial - componente que sugere desigualdades estruturais em função do género. Conclui-se que a elevada expressão desta parcela confere sustentação à tese segundo a qual o “valor” do trabalho não é neutro do ponto de vista do género. Esta constatação eleva a necessidade de implementação de metodologias de avaliação de funções e de políticas remuneratórias que garantam a não discriminação (direta e indireta) em função do género, sem perder de vista uma abordagem coerente e articulada de desconstrução de estereótipos de género em todas as políticas públicas.4
Contribuições teóricas para a compreensão das desigualdades remuneratórias entre homens e mulheres: da economia à sociologia económica e das organizações
A lente da economia: as insuficiências do contributo das teorias do capital humano
A alusão à mão invisível da discriminação sexual do emprego (Silva, 1983) dá-nos conta das limitações inerentes aos pressupostos da economia mainstream na análise e na explicação das causas das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Não sendo este o espaço para um desenvolvimento aprofundado dos contributos das TCH (Casaca e Perista, 2017; Chagas Lopes, 2000; Ferreira, 1999, 2010), atemo-nos a um dos seus pressupostos elementares: quanto mais um indivíduo investe nas suas qualificações e experiência profissional (capital humano), maior a sua capacidade produtiva e, por conseguinte, mais elevada a contrapartida remuneratória oferecida pelo “mercado”. Por um lado, a vantagem competitiva de cada indivíduo no mercado de trabalho depende do capital humano por si detido e da capacidade produtiva que o mesmo determina; por outro, as entidades empregadoras ajustam a sua política remuneratória à capacidade produtiva dos/as trabalhadores/as, inferida a partir do respetivo capital humano. Ainda numa lógica de racionalidade, os indivíduos que reúnem menor capital humano - seja porque detêm menos qualificações, seja porque a experiência laboral foi entrecortada por interrupções ou por reduções do tempo de trabalho - tendem a não competir pelos postos de trabalho profissionalmente mais exigentes (em tempo e responsabilidades) e mais bem pagos. A situação de desvantagem das mulheres e a discrepância remuneratória em seu desfavor, por comparação com os homens, resulta de decisões individuais e familiares que conduzem a um menor investimento em capital humano em benefício do tempo para a vida familiar (Hakim, 2000). Às entidades empregadoras coloca-se, por seu turno, a expetativa de menor capacidade produtiva das mulheres, o que conduz à decisão racional de não seleção (ou promoção) das mesmas para funções que requerem elevados níveis de responsabilidade e de disponibilidade (Becker, 1985; Mincer e Polachek, 1974).
Vários estudos têm demonstrado que, embora persistam assimetrias remuneratórias entre homens e mulheres, verifica-se - em termos médios - uma tendência para a respetiva diminuição nas últimas décadas, tanto nos EUA como na Europa em geral, decorrente sobretudo de uma aproximação nos atributos em termos de capital humano (Blau e Lawerence, 2017; Boll, Rossen et al., 2016; Goldin, 2014). Ainda assim, as mulheres - genericamente mais do que os homens - tendem a reduzir a sua participação no mercado de trabalho (ou mesmo a desvincularem-se) após a maternidade, o que restringe a sua experiência profissional (Glauber, 2018; Goldin, 2014).
Ainda que não seja de subestimar, no quadro da área de investigação que desenvolvemos, a relevância do capital humano reunido por homens e mulheres, os pressupostos das TCH afiguram-se-nos insuficientes para a compreensão da complexidade das causas inerentes às desigualdades de género no mercado de trabalho e às assimetrias remuneratórias em particular. Além disso, como se observará mais à frente, essas limitações assumem particular expressão quando se trata de analisar o caso português. Em geral, ficam por esclarecer questões relevantes, como sejam:
Como se explica que sejam essencialmente as mulheres a reduzir o tempo dedicado à atividade profissional ou a optar por modalidades flexíveis de tempo de trabalho que facilitem a articulação com a vida familiar - i. e., o seu papel enquanto cuidadoras? E qual a razão pela qual são os homens quem tende, com a paternidade, a reforçar um comportamento laboral alinhado com o papel social de breadwinners e com o arquétipo de trabalhador/a ideal que demonstra disponibilidade total para a atividade profissional - i.e. para ocupar greedy jobs, na aceção de Goldin (2021)? Ora, como amplamente documentado na literatura, é este padrão de divisão de papéis que está na base do agravamento das desigualdades remuneratórias entre homens (paternity premium) e mulheres (motherhood penalty), a partir do nascimento da primeira criança (Glauber, 2018; Goldin, 2014; Grimshaw e Rubery, 2015).
Quais os fatores que sustentam a existência de ramos de atividade e de profissões socialmente tipificadas como masculinas ou femininas (England,1982)? E como se justifica o menor valor social e económico atribuído aos ramos de atividade e às profissões onde as mulheres constituem a força de trabalho prevalecente? O que leva as entidades empregadoras a afetar a força de trabalho do sexo feminino a categorias profissionais de níveis inferiores e onde as perspetivas de progressão são mais limitadas, mesmo quando são detentoras de capital humano tão ou mais relevante do que os seus pares do sexo masculino? (Casaca e Perista, 2017; Ferreira, 1999, 2010).
A integração de uma perspetiva de género no âmbito da sociologia económica e das organizações
A incorporação de uma perspetiva de género na teoria sociológica tem permitido atender aos constrangimentos estruturais que estão na base da subvalorização do trabalho das mulheres (England, 1982), no contexto de sociedades de dominação masculina (Bourdieu, 1999). Quem seleciona, recruta e gere a força de trabalho, assim como quem procura emprego ou exerce uma profissão, não é indiferente às representações dominantes - socialmente construídas - sobre os ideais de masculinidade e feminilidade, as características dos homens e das mulheres e os papéis sociais que devem cumprir (Casaca, 2023). A assimetria simbólica inerente a essas representações sociais (Amâncio, 1994) é perpassada por uma valência diferencial em que o papel social e os atributos associados aos homens colhem um valor superior, num quadro de hierarquização das relações entre os sexos e de predomínio da superioridade masculina (Héritier, 1998 [1996]). As conceções estereotipadas em torno dos papéis sociais dos homens e das mulheres condicionam as respetivas decisões, reforçando comportamentos que sustentam as desigualdades no contexto familiar e laboral. Acresce que essas conceções estão na base de enviesamentos que condicionam a racionalidade e a objetividade dos processos de tomada de decisão de quem emprega/gere e define a política remuneratória, sustentando processos de discriminação direita e indireta em função do género. Nesta linha, são vários os estudos que comprovam que as mulheres são percecionadas como menos profissionalmente competentes e empenhadas do que os homens, sendo que as trabalhadoras-mães são em geral percecionadas como menos empenhadas do que aquelas que não têm filhos/as (e. g. Correll, Benard e Paik, 2007).
Distanciando-se dos argumentos das TCH, várias/os autoras/es têm vindo a contribuir para a renovação da SEO ao destacarem que a atividade económica, o mercado de trabalho e a organização da vida familiar não são realidades neutras do ponto de vista do género. No quadro da Sociologia Económica, Ruth Milkman e Eleanor Townsley, na década de 90 do século XX, reclamaram o reconhecimento do género enquanto dimensão estruturante da vida económica e da organização da vida social. Se, na linha de Polanyi (1977) e Granovetter (1985), ainda que com interpretações não inteiramente coincidentes, se havia reconhecido a necessidade de atender à incrustação social e cultural dos fenómenos económicos, muito importaria - na sua perspetiva - considerar que o género é inerente a essa incrustação (Milkman e Townsley, 1994).
No campo da Sociologia das Organizações, mais ou menos pela mesma altura, Joan Acker oferecia-nos uma teoria sobre a dimensão genderizada (gendered) das organizações, desafiando o pensamento dominante que perspetivava as instituições como neutras do ponto de vista do género. A autora identificou cinco processos que (re)produzem essa genderização: (1) a construção de divisões em função do género (como é o caso, por exemplo, da divisão do trabalho e da inerente concentração de mulheres e de homens em áreas funcionais, profissões e cargos distintos); (2) a construção de símbolos e imagens que reforçam as “diferenças” e legitimam as desigualdades de género; (3) as interações entre as mulheres e os homens, as mulheres e as mulheres, os homens e os homens, que incluem a mobilização de ideais de masculinidade e de feminilidade, além de relações de dominação-submissão; (4) a produção de identidades que influem, por exemplo, nas opções de mulheres e de homens quanto ao tempo dedicado ao trabalho remunerado e à família; (5) e a incrustação das representações sociais em torno do género nos pressupostos e nas práticas que estruturam as organizações (rotinas informais e práticas formais de trabalho, fixação de salários e sistemas de avaliação de desempenho) (Acker, 1990). Connell (2006) viria, numa linha de raciocínio próxima, a assinalar a relevância da conceptualização das instituições enquanto regimes de género, onde se (re)produz a divisão do trabalho entre mulheres e homens e uma estrutura de autoridade e de poder consentânea com o ideal de masculinidade hegemónica.
Destas e de outras relevantes contribuições para a teoria das organizações ressalta, portanto, a noção que a marca do género está impregnada nas políticas e práticas organizacionais, nos processos de gestão, no desenho do trabalho e nas rotinas que o corporizam, nas imagens e nos símbolos veiculados, nas normas formais e informais, assim como nas múltiplas interações sociais através das quais são (re)produzidas as desigualdades de género (doing gender), ou, em alternativa, são desafiadas, negociadas e superadas (undoing gender) (Calás, Smircich e Holvino, 2014; Connell, 2006; Ridgeway e Correll, 2004).
A compreensão das desigualdades remuneratórias convoca-nos ainda para a importância da diversidade de configurações institucionais, compreendendo designadamente: o papel dos Estados e das políticas públicas [políticas e iniciativas orientadas para a promoção da igualdade de género, incluindo licenças por maternidade/paternidade (parentalidade), provisão de infraestruturas públicas de apoio às famílias, e políticas fiscais, por exemplo]; os mecanismos de regulação do mercado de trabalho e os processos de determinação salarial; a agenda dos parceiros sociais e as prioridades plasmadas em sede de diálogo social; e ainda o papel de outros atores coletivos - das empresas à sociedade civil - na valorização da igualdade de género (Grimshaw, Bosch e Rubery, 2013; Rubery e Koukiadaki, 2016). Note-se que são vários estudos que têm demonstrado a importância da dimensão coletiva das relações laborais na mitigação das desigualdades remuneratórias entre homens e mulheres (e nas disparidades remuneratórias em geral) (Pillinger e Wintour, 2019); já a individualização das relações de trabalho, por seu turno, tende a gerar uma maior amplitude nos critérios que determinam a formação dos salários e, portanto, também maiores níveis de desigualdade (Ferreira, 2010; Grimshaw e Rubery, 2015). Complementarmente, outras investigações têm evidenciado a relevância de políticas laborais e de família que assegurem, tanto para mulheres como para homens, as mesmas oportunidades de participação laboral e a igual realização no plano da vida familiar, designadamente no que se refere aos direitos de maternidade e de paternidade (parentalidade) (Wall et. al., 2016).
O comportamento laboral das mulheres e dos homens em Portugal e na UE
Verifica-se uma tendência em Portugal para a aproximação entre o comportamento laboral das mulheres e o dos homens. Tendo presente estudos anteriores (Casaca, 2012, Casaca et al., 2022a), é de notar que, em 2022, a taxa de emprego das mulheres atingiu o valor mais elevado de sempre (69,5%) e a menor diferença já registada em relação à taxa de emprego dos homens (-4,6 p. p.). Como ilustra o Quadro 1, o valor continua a fixar-se acima da média da UE27 (64,9%) - e muito acima do conjunto de países comummente agrupado na “Europa do Sul”.
Como tem igualmente sido referido noutros trabalhos (e. g. Ferreira, 1999; Torres et al., 2018; Wall et al., 2016), prevalece no país um padrão de regime de trabalho essencialmente a tempo inteiro [91% das mulheres e 95,5% dos homens empregados/as (15-64 anos)], enquanto na UE27, em média, essa representação corresponde a 71,6% das mulheres e a 91,8% dos homens. Já nos Países-Baixos - contexto onde se verifica a taxa de emprego das mulheres mais elevada (78,1%) de toda a UE (Quadro 1) -, apenas um pouco mais de um terço das mulheres empregadas (36,2% contra 76,5% dos homens) está vinculado ao regime de trabalho a tempo inteiro. Importa notar que quando observamos apenas as mulheres (25-49 anos) que têm crianças pequenas (seis anos de idade ou menos), diminui em geral a proporção daquelas que se encontra a trabalhar a tempo integral (65,9% na UE27, versus 94,5% de homens), registando-se a situação oposta em Portugal (92,2% de mulheres empregadas, por comparação com 96,1% dos homens em situação comparável) (Eurostat, 2023).
Como se pode observar no Quadro 2, enquanto na ampla maioria dos países da UE27 a taxa de emprego das mulheres (20-49 anos) que são mães de crianças pequenas (menores de seis anos) é inferior à taxa de emprego das mulheres que não são mães, em Portugal verifica-se um padrão oposto: a maternidade está associada a uma taxa de emprego ainda mais expressiva do que quando essa condição não se verifica (embora o reforço da participação laboral dos homens seja particularmente pronunciado). Note-se, aliás, que a taxa de emprego de mulheres que são mães situa-se entre as mais elevadas (80,8%) do espaço da UE (66,4%, em média), verificando-se também uma das menores diferenças, em pontos percentuais, em relação aos homens que são pais. No caso destes em particular, em todos os países da UE27 a taxa de emprego supera a daqueles que não têm crianças.
Em síntese, se para a UE em geral, os dados conferem sustentação às TCH quanto ao efeito da maternidade no comportamento laboral das mulheres e quanto à menor acumulação de experiência profissional - por comparação com os homens -, não deixam, todavia, de sugerir algumas reservas quanto à interpretação do caso português. Esta constatação remete para a necessidade de estudos mais aprofundados que permitam analisar o efeito da maternidade e da paternidade no curso de vida ativa de mulheres e de homens.
Não obstante o relativo nivelamento entre a participação laboral das mulheres e a dos homens em Portugal, importa recordar que a marca do género está refletida na maior vulnerabilidade laboral das mulheres, evidenciada na expressiva representação em ramos de atividade e profissões onde em geral é menor a qualidade de emprego, mais fracas as oportunidades de progressão, mais precárias as condições laborais (Casaca, 2012, Coelho e Ferreira, 2018) e mais baixas as remunerações (v. subcapítulo seguinte).
A persistência da “mão invisível” no diferencial remuneratório entre homens e mulheres
Nota metodológica
A análise que aqui apresentamos refere-se ao ganho/hora de trabalhadores/as por conta de outrem no país, tendo por base os microdados dos “Quadros de Pessoal” de 2021 (base de dados disponibilizada em 2023). De acordo com esta fonte estatística, o ganho inclui não só a remuneração base como também as prestações regulares e os subsídios complementares que são auferidos como contrapartida do trabalho prestado (incluindo trabalho extraordinário). Esta é, por conseguinte, a variável que mais se aproxima do conceito legal de remuneração (Diário da República, 2018). A informação dos Quadros de Pessoal resulta de um procedimento administrativo a que estão obrigadas, anualmente, todas as entidades com pessoas ao serviço, a operar no país (Anexo A do Relatório Único), sendo recolhida pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Os dados referem-se a trabalhadores/as por conta de outrem no setor privado; no que respeita à administração central regional e local e aos institutos públicos, a base de dados apenas contempla os/as trabalhadores/as em regime jurídico de contrato individual de trabalho. Não estão também abrangidas as entidades que têm ao serviço trabalhadores/as rurais não permanentes e trabalhadoras/es domésticas/os.
Recorre-se, neste capítulo, a fórmulas de cálculo do diferencial remuneratório entre homens e mulheres (DRHM) utilizadas no contexto do estu-do Os Benefícios Sociais e Económicos da Igualdade Salarial (Casaca et al., 2022a).5 Serão apresentados valores para o DRHM não ajustado (the raw gender pay gap) e para o DRHM ajustado. Neste caso, recorre-se a uma regressão estatística que “expurga” o efeito de diferenças observadas nos atributos individuais de mulheres e de homens (em termos de idade, nível de escolaridade e antiguidade da relação laboral com a atual entidade empregadora). Além disso, apresentaremos também os resultados da aplicação do método de decomposição Blinder-Oaxaca, particularmente usado em estudos sobre o gender pay gap (Boll, Rossen e Wolf, 2016) (ver Anexo A).
Os resultados reportam a todos os indivíduos com remuneração base completa (trabalhadores/as que não tiveram ausências ao trabalho não remuneradas), sendo excluídas da análise as observações relativamente às quais se desconhece a idade, a escolaridade ou a antiguidade na entidade empregadora. Adicionalmente, não são consideradas observações em que as profissões estão descritas como “residuais”. A amostra final é composta por 2.444,128 observações (1.147,670 mulheres e 1.296,458 homens). Como se pode observar no Quadro 3, as idades médias e a antiguidade na atual entidade empregadora (proxy de experiência laboral) são atributos que praticamente não diferenciam as mulheres e os homens que integram a amostra. Note-se, porém, que as mulheres detêm níveis de escolaridade superiores aos dos homens.
O diferencial remuneratório entre homens e mulheres em Portugal
Um dos estudos nacionais mais recentes sobre o tema abrangeu o período entre 1991 e 2013, tendo recorrido a uma metodologia próxima daquela que aqui incorporamos e à mesma base de dados (Cardoso et al., 2016). Uma das principais conclusões é a de que a atenuação observada no DRHM não ajustado ficou a dever-se essencialmente a uma melhoria dos atributos das mulheres, em particular dos respetivos níveis de escolaridade, e não a alterações estruturais que possam sugerir a eliminação da discriminação sexual remuneratória. A este respeito, é de referir que o DRHM ajustado se revelou superior ao ajustado, além de relativamente constante no decurso do período em análise. Cabe assinalar que estudos anteriores já haviam colocado a tónica na dimensão estrutural e não explicada do DRHM (e. g. González, Santos e Santos, 2008).
A Figura 1 dá conta que, em 2021, o DRHM não ajustado foi de 15,5%, em desfavor das mulheres; no entanto, quando se controla o efeito das diferenças observadas nas características de mulheres e homens (idade, nível de escolaridade e antiguidade na atual entidade empregadora), constata-se - em linha com o estudo acima referido - que o diferencial é ainda mais pronunciado (18,8%).
Verifica-se também que o DRHM ajustado aumenta com o nível de qualificação, atingindo o valor de 22,58% no caso das/os trabalhadoras/es com a classificação de “quadros superiores”. O diferencial progride ainda com a idade: se na classe etária compreendida entre os 25 e os 34 anos, o valor é de 13%, no escalão seguinte (35-49 anos) eleva-se para 20,8%. É de salientar, como retomaremos mais à frente, que o conjunto de variáveis contemplado na base de dados não nos esclarece sobre uma possível penalização em função da maternidade (motherhood penalty), por contraponto com o bónus da paternidade (paternity premium) - como amplamente sugerido pela literatura (e. g. Glauber, 2018; Goldin, 2014, 2021).
A aplicação do método de decomposição Blinder-Oaxaca (Figura 2) permite observar que a parcela não explicada do DRHM supera amplamente a explicada, quando convocamos para a análise tanto as características individuais (idade, nível de escolaridade e antiguidade na atual entidade empregadora), como aquelas associadas ao emprego (regime de tempo de trabalho, vínculos contratuais, nível de qualificação e profissão), como ainda as que se prendem com a entidade empregadora (dimensão, ramo de atividade e região geográfica). Dito de outro modo, estas variáveis apenas explicam 27,3% do diferencial remuneratório em desfavor das mulheres - constatação que sugere o efeito de desigualdades estruturais em função do género.
Atendendo exclusivamente à parcela explicada do DRHM, confirma-se que, se não existisse segregação sexual horizontal, o diferencial diminuiria em 52,6% - 31,5% se fosse eliminada a segregação por ramo de atividade e 21,29% se fosse superada a segregação profissional (ver Quadro 4). Esta constatação está alinhada com as conclusões de outros estudos realizados a propósito de outros contextos (e. g. Bettio, Verashchagina e Camilleri-Cassar, 2009). É de assinalar, a este respeito, que enquanto os homens constituem a ampla maioria da força de trabalho no ramo das tecnologias de informação e comunicação, por exemplo, as mulheres estão particularmente representadas em áreas de atividade e em profissões onde predominam as baixas remunerações - atividades ligadas ao cuidado e ao apoio a pessoas e à reprodução social - serviços pessoais, limpeza, saúde, educação, designadamente (Coelho e Ferreira, 2018).
Em contraponto, observa-se que o nível de escolaridade contribui negativamente para o DRHM: ou seja, se as mulheres não detivessem níveis de escolaridade mais elevados que os dos homens (Quadro 3), o DRHM seria superior em 20,81%. É de reter que os dados disponíveis não permitem apreender rigorosamente as posições exatas de mulheres e homens na estrutura funcional e hierárquica, ficando assim por determinar o peso da segregação sexual vertical no diferencial.
Como observámos noutro texto, não nos é possível concluir que a elevada expressão da parcela não explicada (72,66%, Figura 2) equivale na sua globalidade à quota-parte da discriminação remuneratória em função do género. Da complexidade de causas que determinam o DRHM faz parte a assimetria na afetação das tarefas domésticas e do cuidado, que continua a recair essencialmente sobre as mulheres (Perista et al., 2016). Para aferir a influência dessa disparidade na situação laboral, muito importaria contar, na base de dados, com informação sobre: número de filhos/as e respetivas idades - e/ou de pessoas em situação de dependência a cargo; uso de licenças parentais, por modalidade e duração; ausências ao trabalho, por duração e motivo; e recurso a teletrabalho, a horário flexível, a jornada contínua ou a trabalho a tempo parcial, por motivo.
Uma das questões mais críticas na efetividade da igualdade remuneratória prende-se com a determinação de trabalho de “valor igual” - ou seja, com a igual valoração de componentes (e subcomponentes) de funções que, embora não sendo objetivamente idênticas, possam ser equivalentes quanto às qualificações exigidas, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico, e às condições em que o trabalho é efetuado (Chicha, 2011). Ora, como notámos no capítulo 2, o “valor” do trabalho é genderizado - i. e., não é imune às conceções estereotipadas que, numa ordem de género (Connell, 2006) de dominação masculina (Bourdieu, 1999, Héritier, 1998), sustentam a menor valorização conferida às funções realizadas pelas mulheres e aos atributos que estas mobilizam para o exercício das mesmas. Pese embora o reconhecimento da importância de robustecer o modelo de análise, não podemos deixar de notar que a ampla expressão da parcela não explicada do DRHM, em desfavor das mulheres, sugere a necessidade de políticas remuneratórias transparentes que garantam a ausência de discriminação (direta ou indireta) em razão do género.
Notas finais
Em linha com a própria génese da Análise Social, este texto reflete a valorização do diálogo interdisciplinar entre a economia e a sociologia na compreensão das desigualdades de género no mercado de trabalho, centrando-se fundamentalmente no diferencial remuneratório em desfavor das mulheres. O ponto de partida é a publicação de Manuela Silva que, em 1983, versou sobre uma dualidade relativamente invisível no plano científico nacional, colocando o ISEG como uma instituição precursora na investigação sobre as desigualdades de género no domínio laboral. Esse trabalho oferece-nos uma abordagem crítica quanto às insuficiências dos instrumentos teóricos, metodológicos e analíticos da economia mainstream na identificação e na explicação das causas da discriminação sexual do emprego (Silva, 1983). Embora reconhecendo a pertinência de alguns dos pressupostos das TCH, destacamos as limitações dos mesmos na interpretação do caso português, caracterizado pela aproximação entre o comportamento laboral das mulheres e o dos homens - desde o progressivo nivelamento entre as respetivas taxas de emprego ao predomínio do regime de trabalho a tempo inteiro, passando por um padrão de continuidade dos percursos laborais. Ainda assim, não deixamos de notar a necessidade de desenvolvimento de estudos mais aprofundados sobre o efeito da maternidade e da paternidade - e das responsabilidades familiares em geral - no curso de vida ativa de mulheres e de homens (e de contar com as bases de dados adequadas para esse efeito).
A renovação das contribuições teóricas no domínio da SEO, por via da incorporação de uma perspetiva de género, permite superar as insuficiências dos pressupostos teóricos em torno da racionalidade do comportamento dos atores no mercado de trabalho, sublinhando que a realidade económica, laboral, organizacional e social não é neutra do ponto de vista do género. A análise que aqui efetuamos coloca a tónica na dimensão genderizada do valor do trabalho. O diferencial remuneratório entre homens e mulheres, em desfavor destas, é mais elevado quando se controla o efeito de diferenças individuais em termos de idade, nível de escolaridade e antiguidade na entidade empregadora. Além disso, a parcela não explicada do diferencial remuneratório supera amplamente a parcela explicada quando se tem em consideração, além das características individuais, variáveis associadas ao emprego (regime de tempo de trabalho, vínculos contratuais e profissão) e ao local de trabalho (dimensão, atividade económica e região geográfica). Esta constatação sugere a necessidade de implementação de metodologias de avaliação de funções e de políticas remuneratórias que garantam a não discriminação (direta e indireta) em função do género. O diálogo social e a negociação coletiva assumem, neste plano, um papel muito relevante - desde logo, na operacionalização do conceito de trabalho de valor igual e na determinação de critérios que assegurem a igualdade remuneratória.
Em linha com a conclusão de estudos anteriores, destaca-se a importância da desconstrução de estereótipos de género enquanto princípio estruturante e orientador de todas as políticas públicas, desde aquelas orientadas para a dessegregação sexual das áreas de educação/formação e das profissões até aquelas que permitam efetivar a igual participação de mulheres e de homens no trabalho pago e no trabalho não pago de cuidado e doméstico (Casaca et al., 2022b).