Introdução
O conceito de psicoativo, tradicionalmente associado a substâncias que afetam a atividade psíquica e o comportamento humano, não tem sido consensual ao longo do tempo, não só pela quantidade crescente das substâncias psicoativas, mas também porque entre países não existe igual definição e regulamento legal (Arbour et al., 2019). A distinção entre o uso clínico e o uso recreativo e abusivo é uma das formas de dividir o tipo de substâncias psicoativas, contudo as drogas de uso clínico podem ter uso abusivo e ultimamente algumas drogas de abuso tem sido usadas para fins medicinais, como por exemplo a cannabis (Subeliani et al., 2019).
As substâncias mais referenciadas e livremente consumidas em termos mundiais com capacidade psicoativa são o álcool e o tabaco, seguindo-se os medicamentos psicoativos e as drogas recreativas ilícitas (Arbour et al., 2019). De todos as substâncias com poder psicoativo, o álcool é considerado por alguns investigadores como a droga psicoativa mais problemática dos tempos atuais, porque socialmente é visto como uma não droga, tem fácil acesso e muitas das vezes são menosprezados os seus efeitos problemáticos de ordem física, psicossocial e de dependência (Fein et al., 2018). O tabaco sendo o segundo psicoativo mais consumido no mundo representa diretamente maiores riscos mensuráveis para a saúde, nomeadamente complicações pulmonares graves, cancerígenas e a dependência (Ahluwalia et al., 2019).
Por sua vez, os medicamentos psicoativos são menos consumidos, mas não deixam de representar um problema tão ou mais grave pelos riscos extremos de dependência e sobredose com enorme impacto na saúde pública (Subeliani et al., 2019). Na literatura não existe uma classificação consensual, no entanto a maioria divide os medicamentos psicoativos em quatro grupos: neurolépticos e antipsicóticos, ansiolíticos e hipnóticos, antidepressivos e estabilizadores do humor (Arbour et al., 2019). Os ansiolíticos e os antidepressivos são os mais consumidos na atualidade pela população mundial e em Portugal, dados do relatório do Conselho Nacional da Saúde (CNS, 2019), mostram consumos de mais do dobro que a média da comunidade europeia, tendo triplicado o seu consumo nas últimas duas décadas. Segundo investigadores e vários grupos de trabalho, as drogas recreativas mais conhecidas são: cocaína, canábis e derivados, heroína, anfetaminas, ecstasy, LSD, cogumelos alucinogénios, colas e solventes (Arbour et al., 2019). De todos as substâncias psicoativas, as drogas recreativas são que representam maior perigo para a saúde pública, sendo muitas consideradas ilegais, o que em parte limita o seu consumo (Neicun et al., 2020).
Na sociedade moderna tem surgido nos últimos anos comportamentos desviantes em relação ao consumo de substâncias psicoativas, condensando o consumo em intervalos de tempo muito curto, nomeadamente com o álcool e tabaco. O binge drinking corresponde ao consumo no intervalo de 2 horas, de cinco ou mais bebidas alcoólicas para os homens e quatro ou mais para as mulheres (Wechsler & Nelson, 2001). O binge smoking, não tem ainda uma definição clara, estando associado ao consumo ocasional e de forma exagerada de tabaco numa noite ou evento social (Cancer Institute of New South Wales in Australia, 2022). Estudos comprovam que o binge drinking em adolescentes e em jovens adultos, naturalmente associado aos convívios académicos, traz consequências metabólicas graves, como resultado da prévia inadaptação do organismo e risco de intoxicação (Molina et al., 2018) conduzindo a uma diminuição da massa cerebral e capacidade cognitiva.
Embora este estudo incida sobre as quatro substâncias psicoativas mais usuais, álcool, tabaco, medicamentos psicoativos e drogas recreativas, é pertinente referir que existem muitos outros com efeitos no sistema nervoso central, como por exemplo a cafeína proveniente do café ou as bebidas energéticas e estimulantes.
Este estudo teve como objetivo analisar o consumo de substâncias psicoativas nos estudantes do ensino superior e a sua relação com as variáveis sóciodemográficas e com o surgimento da pandemia COVID-19.
Enquadramento
O consumo de substâncias psicoativas é um problema de saúde pública em todas as faixas etárias, nomeadamente na população estudantil do ensino superior. Estudos de revisão referem que na população em geral é usual o consumo de duas ou mais substâncias psicoativas, com destaque para a combinação entre o álcool e tabaco (Tarren & Bartlett, 2017). Estudos recentes em estudantes mostram elevada prevalência do consumo de substâncias psicoativas, nomeadamente o álcool e o tabaco, destacando por um lado a alta prevalência de embriaguez e da prática de binge drinking e por outro a combinação com medicamentos psicoativos e/ou drogas recreativas (Anes & Antão, 2018; Bento et al., 2021). Outros estudos reportam que muitas vezes os consumos de medicamentos psicoativos nos estudantes é causa secundária ao consumo de outras substâncias psicoativas ou como solução para diminuir a pressão a que estão sujeitos na altura dos exames (Lyons et al., 2020).
A literatura evidência a interferência de fatores sociodemográficos no consumo das principais substâncias psicoativas, bem como a associação entre quem consome e quem tem problemas de saúde (Chelieh et al., 2019), idade mais jovem e maiores níveis de educação (Neicun et al., 2020). A literatura evidencia ainda que os estudantes do ensino superior têm consumos maiores que o resto da população (Anic et al., 2018) e os estudantes dos cursos de saúde são, regra geral, maiores consumidores (Font-Mayolas et al., 2019). O sexo masculino é quem mais consome álcool e tabaco de forma abusiva (Anes & Antão, 2018; Tarren & Bartlett, 2017) enquanto o sexo feminino, proporcionalmente, é quem mais medicamentos psicoativos consome (Bento et al., 2021).
As alterações do padrão de consumo decorrentes da pandemia COVID-19 carecem de aprofundamento, no entanto, dados do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (, 2020) e dados de estudos recentes apontam para um aumento considerável dos estados de ansiedade ou depressão, tal como o aumento do consumo das principais substâncias psicoativas (Jodczyk et al., 2022; Stanton et al., 2020).
Questão de investigação
Qual a prevalência do consumo das principais substâncias psicoativas nos estudantes do ensino superior em contexto de pandemia COVID-19?
Como as variáveis sociodemográficas dos inquiridos e o surgimento da pandemia COVID-19 se associam ao consumo dessas substâncias?
Metodologia
Estudo quantitativo, descritivo, analítico e transversal. A amostra de 825 inquiridos foi definida com base na população de 8.875 estudantes matriculados no Instituto Politécnico de Bragança (IPB) no ano letivo de 2020/2021, de natureza estratificada, proporcional para cada uma das cinco escolas do IPB: Escola Superior de Saúde (ESSA), Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTIG), Escola Superior Agrária (ESA), Escola Superior de Educação (ESE) e Escola Superior de Administração, Contabilidade e Turismo de Mirandela (ESACT).
Foi estabelecida uma amostra probabilística estratificada por escolas e para o cálculo amostral foi usado o Sample Size Calculator, disponível online pela Raosoft. Foi definido um intervalo de confiança de 99% e desvio de 5%, perfazendo a necessidade de 618 respostas. O único critério de inclusão foi ser estudante matriculado no IPB de qualquer ciclo de estudos no ano letivo de 2020/2021 e o critério de exclusão a recusa do consentimento informado.
Para a recolha de dados foi usado um questionário em português e/ou inglês, composto por duas partes. Na primeira parte colocaram-se as variáveis independentes sociodemográficas, académicas, do agregado familiar e de saúde: sexo, idade, escola, curso, grau e ano académico, proveniência, tipo de inscrição, escolaridade e profissão do pai e da mãe, existência de doença crónica e rastreio à COVID-19. Na segunda parte do questionário foram colocadas as variáveis dependentes relativas aos consumos das substâncias ativas, sendo que todas as questões se referiam aos comportamentos do semestre anterior. Para a segunda parte usou-se uma adaptação da escala portuguesa Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT) para o consumo de álcool, disponível na página da internet do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Para o consumo de álcool, tabaco, medicamentos psicoativos e drogas recreativas foram criadas escalas novas para a presente investigação.
O questionário foi aplicado imediatamente após o 1.º Semestre letivo (março e abril de 2021), em pleno contexto de pandemia COVID-19 com aulas síncronas. Recorreu-se ao formato eletrónico de formulário Google, disponibilizado automaticamente por email a todos os estudantes do IPB.
Obteve-se autorização da Comissão de Ética do IPB (parecer nº. 31/2021), cumprindo todas as regras éticas aplicáveis, nomeadamente a Declaração de Helsínquia, onde o anonimato e o consentimento informado foram assegurados.
Foram recolhidos um total de 825 questionários e cumpridos os critérios de amostra estratificada por escolas. Posteriormente procedeu-se à análise estatística descritiva da amostra, através de tabelas de frequência absoluta e relativa assim como as medidas de tendência central, média e mediana. Para detetar a existência de diferenças estatisticamente significativas entre variáveis dependentes e independentes qualitativas, utilizou-se o teste Qui-Quadrado. Para detetar diferenças estatísticas significativas entre variáveis independentes qualitativas e variáveis dependentes quantitativas, utilizaram-se testes t de Student para duas amostras independentes ou testes One-way Anova no caso de mais de duas amostras independentes, ambos apenas quando verificada normalidade populacional. Nos casos em que não se verificou normalidade populacional utilizou-se o teste de Mann-Whitney para duas amostras independentes e o teste paramétrico de Kruskal-Wallis no caso de três ou mais amostras independentes. A significância estatística foi verificada sempre que o valor de p fosse menor ou igual que 0,05. Todas as análises estatísticas foram realizadas com IBM SPSS Statistics, versão 20.0 (Chicago, Illinois, Estados Unidos da América).
Resultados
Analisando a Tabela 1, verifica-se uma amostra maioritariamente feminina (75,4%) e a classe etária maioritária é até aos 22 anos (65,8%). A nível académico os mais representados são: ESSA (28,6%), ESTIG (27%), Licenciatura (81,8%) e o primeiro ano académico (34,8%), proveniência Portuguesa (82,4), inscritos como ordinários (73,3%). Verifica-se doença crónica em 8% dos estudantes e 12,4% com teste positivo à COVID-19. Relativamente ao agregado familiar, a maioria tem os dois pais, ambos têm atividade económica (58,5%), a escolaridade predominante é o ensino secundário (39,7%) e o ensino básico (29,6%). Segundo a Classificação Nacional de Profissões (CNP) predomina no agregado familiar os trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança, com 24,9% seguindo-se trabalhadores qualificados da indústria com 22,8%. Os especialistas das atividades intelectuais e científicas representam 15,9%. De realçar a predominância de trabalhadores não qualificados em 8,7% dos agregados familiares.
n | n % | ||
Sexo | Feminino | 622 | 75,4% |
Masculino | 203 | 24,6% | |
Classes etárias | até 22 anos | 543 | 65,8% |
23 a 25 anos | 155 | 18,8% | |
mais que 25 anos | 127 | 15,4% | |
Escola | ESSA | 236 | 28,6% |
ESE | 147 | 17,8% | |
ESTIG | 223 | 27,0% | |
ESACT | 158 | 19,2% | |
ESA | 61 | 7,4% | |
Grau académico principal | CTESP | 40 | 4,8% |
Licenciatura | 675 | 81,8% | |
Mestrado | 110 | 13,3% | |
Ano académico principal | 1.ª ano | 287 | 34,8% |
2.ª ano | 258 | 31,3% | |
3.º ano | 249 | 30,2% | |
4.º ano | 31 | 3,8% | |
Proveniência | Portugal | 680 | 82,4% |
Estrangeiro | 145 | 17,6% | |
Tipo de inscrição | Ordinário Português | 605 | 73,3% |
Ordinário Internacional | 113 | 13,7% | |
Dirigente associativo, Erasmus ou trabalhador estudante | 107 | 13,0% | |
Doença crónica | Não | 759 | 92,0% |
Sim | 66 | 8,0% | |
Teve teste COVID-1 9 positivo | Não | 723 | 87,6% |
Sim | 102 | 12,4% | |
Pais existentes | Nenhum | 12 | 1,5% |
Apenas um | 64 | 7,8% | |
Dois | 749 | 90,8% | |
Atividade económica dos pais | Nenhum | 89 | 10,8% |
Um dos pais | 253 | 30,7% | |
Pai e mãe | 483 | 58,5% | |
Escolaridade dos pais | Ensino primário | 59 | 7,9% |
Ensino básico | 222 | 29,6% | |
Ensino secundário | 297 | 39,7% | |
Ensino superior | 171 | 22,8% | |
Categoria profissional dominante no agregado familiar | Profissões das forças armadas | 4 | 0,5% |
Representantes do poder legislativo e de órgãos | 56 | 7,6% | |
Especialistas das atividades intelectuais e científicas | 117 | 15,9% | |
Técnicos e profissões de nível intermédio | 36 | 4,9% | |
Pessoal administrativo | 65 | 8,8% | |
Trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança | 183 | 24,9% | |
Agricultores e trabalhadores qualificados | 16 | 2,2% | |
Trabalhadores qualificados da indústria | 168 | 22,8% | |
Operadores de instalações e máquinas | 27 | 3,7% | |
Trabalhadores não qualificados | 64 | 8,7% |
Nota. n = frequência absoluta; n % = frequência relativa; ESSA = Escola Superior de Saúde de Bragança); ESSE = Escola Superior de Educa- ção); ESTIG = Escola Superior de Tecnologia e Gestão; ESACT = Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo; ESA = Escola Superior Agrária; CTESP = Curso Técnico Superior Profissional.
Pela análise da Tabela 2 verifica-se que a grande maioria dos estudantes (67,2%) consumiu, pelo menos, uma das seguintes substâncias psicoativas: álcool, tabaco, medicamentos e drogas recreativas. O álcool é o mais consumido (59,4%), seguindo-se o tabaco (31,6%). O consumo de medicamentos (7,3%) e drogas recreativas (7,6%) é muito inferior. O consumo combinado: 22,1% consome duas substâncias psicoativas, 6,5% consome três e 1,2% consomem todos as estudadas. No geral, a média de consumo é de 1,1 substâncias psicoativas por estudante.
Álcool | Medicamentos psicoativos | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | n % | n | n % | |||||||
Consumiu? | Não | 335 | 40,6% | Consumiu? | Não | 765 | 92,7% | |||
Sim | 490 | 59,4% | Sim | 60 | 7,3% | |||||
Perfil consumo | 1 a 4 vezes por semestre | 146 | 29,8% | Tipo? | Ansiolíticos | 51 | 85,0% | |||
1 a 4 vezes por mês | 182 | 37,1% | Sedativos | 30 | 50,0% | |||||
1 a 4 vezes por semana | 127 | 25,9% | Antidepressivos | 15 | 25,0% | |||||
1 a 2 vezes por dia | 21 | 4,3% | Antipsicóticos | 12 | 20,0% | |||||
mais que 2 vezes por dia | 14 | 2,9% | Como tomou? | Automedicação toma diária | 8 | 15,4% | ||||
Binge drinking | Não | 312 | 63,7% | Automedicação SOS | 12 | 20,0% | ||||
Sim | 178 | 36,3% | Prescrição médica toma diária | 27 | 45,0% | |||||
Consumo pandemia COVID-19 | Diminuiu | 285 | 58,2% | Prescrição médica SOS | 28 | 46,7% | ||||
Manteve-se | 165 | 33,6% | Consumo pandemia COVID-19 | Diminuiu | 4 | 6,7% | ||||
Aumentou | 40 | 8,2% | Manteve-se | 21 | 35,0% | |||||
Aumentou | 35 | 58,3% | ||||||||
Tabaco | Drogas recreativas | |||||||||
Consumiu? | Não | 564 | 68,4% | Consumiu? | Não | 762 | 92,4% | |||
Sim | 261 | 31,6% | Sim | 63 | 7,6% | |||||
Perfil de consumo | 1 a 3 vezes por semestre | 39 | 14,9% | Tipo | Cocaína | 10 | 15,9% | |||
1 a 3 vezes por mês | 17 | 6,5% | Canábis | 54 | 85,7% | |||||
1 a 3 vezes por semana | 20 | 7,7% | Heroína | 2 | 3,2% | |||||
4 a 6 vezes por semana | 14 | 5,4% | LSD | 6 | 9,5% | |||||
1 a 4 vezes por dia | 53 | 20,3% | Anfetaminas | 2 | 6,3% | |||||
5 a 9 vezes por dia | 63 | 24,1% | Colas e solventes | 0 | 0,0% | |||||
10 a 20 vezes por dia | 46 | 17,6% | Cogumelos alucinogénios | 5 | 8,0% | |||||
21 ou mais vezes por dia | 9 | 3,5% | Ecstasy | 10 | 15,9% | |||||
Binge smoking | Não | 139 | 53,3% | Outros | 7 | 11,1% | ||||
Sim | 122 | 46,7% | Perfil de consumo? | 1 a 3 vezes por semestre | 18 | 28,6% | ||||
Consumo pandemia COVID-19 | Diminuiu | 74 | 28,4% | 4 a 6 vezes por semestre | 5 | 7,9% | ||||
Manteve-se | 90 | 34,5% | 1 a 2 vezes por mês | 4 | 6,3% | |||||
Aumentou | 97 | 37,2% | 3 a 4 vezes por mês | 4 | 6,3% | |||||
5 a 6 vezes por mês | 1 | 1,6% | ||||||||
Número total de substâncias psicoativas consumido | 1 a 2 vezes por semana | 7 | 11,1% | |||||||
n | n % | 3 a 4 vezes por semana | 10 | 15,9% | ||||||
Nenhum | 271 | 32,8 % | 32,8% | 5 a 6 vezes por semana | 6 | 9,5% | ||||
1 | 308 | 37,3 % | 67,2% | Todos os dias | 8 | 12,7% | ||||
2 | 182 | 22,1 % | Consumo semanal? | Não | 31 | 50,8% | ||||
3 | 54 | 6,5 % | Sim | 32 | 49,2% | |||||
4 | 10 | 1,2 % | Consumo pandemia COVID-19 | Diminuiu | 17 | 27,0% | ||||
Total | 825 | Manteve-se | 25 | 39,7% | ||||||
Média de substâncias psicoativas consumidas | 1,1 | Aumentou | 21 | 33,3% |
Nota. n = frequência absoluta; n % = frequência relativa; SOS = situação de urgência ou crise aguda
Sendo o álcool o mais consumido, os perfis de consumos usuais são: uma a duas bebidas por mês (16,6%), três a quatro bebidas por mês (18,6%) e uma a duas bebidas por semestre (17,1%). Mais de um terço dos estudantes que ingerem álcool, 36,3%, praticaram binge drinking. Com a pandemia COVID-19, a maioria, 58,2%, percecionou diminuição do consumo.
Relativamente ao tabaco, verifica-se que a escala mais prevalente é a de cinco a nove cigarros por dia (24,9%), seguindo-se de um a quatro (20,3%). Dos estudantes que fumam, 46,7% praticaram binge smoking. Com a pandemia COVID-19 foi mais prevalente nos estudantes a perceção do aumento ou manutenção do consumo, respetivamente em 37,2% e 34,5%.
Sobre o consumo de medicamentos psicoativos a grande maioria (85,0%) refere o uso de ansiolíticos, seguindo-se os sedativos, antidepressivos e antipsicóticos, respetivamente 50,0%, 25,0% e 20,0%. A forma mais usual de obtenção é por prescrição médica, usados em situação de urgência ou crise aguda ou toma diária, respetivamente 46,7% e 45,0%. A automedicação em situações de urgência ou crise aguda representa 20,0% e a toma diária 15,4%. Com a pandemia COVID-19 a maioria dos estudantes percecionou um aumento dos consumos (58,3%).
Por último, no que diz respeito às drogas recreativas, a canábis representa a maior parte dos consumos (85,7%), seguindo-se a cocaína e ecstasy com consumo muito menor, ambos com 15,9%. A frequência de consumo é difusa, embora as mais representativas sejam o consumo de uma a três vezes por semestre (28,6%) e 3 a 4 vezes por semana (15,9%). Com a pandemia COVID-19 a maioria percecionou a manutenção (39,7%) ou aumento (33,3%) dos consumos.
As setas da Tabela 3 indicam quais os grupos das variáveis sociodemográficas, académicas de saúde e do agregado familiar que estão associados a um aumento de consumos e práticas abusivas. O consumo de álcool está associado aos seguintes fatores: sexo masculino, ESTIG e quarto ano de curso. O binge drinking está associado ao sexo masculino, à ESTIG e aos estudantes com idade entre os 23 e 25 anos. Relativamente ao agregado familiar, a maior escolaridade do agregado está associada a maior prevalência do consumo de álcool.
Qualitativa - teste Qui-Quadrado | Quantitativa | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Álcool | Tabaco | Medicamentos psicoativos | Drogas recreativas | N.º substâncias psicoativas diferente | ||||||
Consumiu? | Binge Drinking? | Consumiu? | Binge Smoking? | Consumiu? | Auto-medicação? | Consumiu? | Consumo semanal? | |||
Sexo | p = 0,001 | p = 0,008 | p = 0,061 | p = 0.103 | p = 0,192 | p = 0,740 | p < 0,001 | p = 0,002 | t de Student p = 0,001 | |
↑ Masculino | ↑Masculino | ↑ Masculino | ↑ Masculino | ↑ Masculino | ||||||
Classe etária | p = 0,170 | p = 0,023 | p = 0,227 | p = 0,001 | p = 0,052 | p = 0.740 | p = 0,054 | p = 1,00 | Anova p = 0,036 | |
↑ 23 a 25 anos | ↑ até 22 anos | ↑ 23 a 25 anos | ||||||||
Escola | p = 0,0143 | p = 0,028 | p < 0,001 | p = 0,416 | p = 0,861 | p = 0.959 | p = 0,120 | p = 0,017 | Anova p = 0,031 | |
↑ ESTIG | ↑ ESTIG | ↑ ESACT | ↑ ESTIG ↑ ESACT | |||||||
Grau | p = 0,406 | p = 0,289 | p = 0,048 | p = 0,409 | p = 0,488 | p = 0.520 | p = 0,440 | p = 0,361 | Anova p = 0,046 | |
↑ Licenciatura | ↑ Licenciatura | |||||||||
Ano | p = 0.001 | p = 0,732 | p < 0,001 | p = 0.307 | p = 0,05 | p = 1.000 | p = 0,053 | p = 0,774 | Anova p < 0,001 | |
↑ 4.º ano | ↑ 4.º ano | ↑ 4.º ano | ||||||||
Proveniência | p = 0,870 | p = 0,001 | p < 0,001 | p = 0,089 | p = 0,117 | p = 0.960 | p = 0,507 | p = 0,805 | t de Student p = 0,076 | |
↑ Portugal | ||||||||||
Inscrição | p = 0,527 | p = 0,887 | p < 0,001 | p = 0,776 | p = 0,771 | p = 0.795 | p = 0,072 | p = 0,776 | Anova p=0.01 | |
↑ Dirigente Associativo | ↑ Dirigente Associativo | |||||||||
Doença crónica | p = 0,403 | p = 0,978 | p = 0,049 | p = 0,041 | p < 0,001 | p = 0.370 | p < 0,001 | p = 0,496 | t de Student p = 0,015 | |
↑ Com doença crónica | ↑ Sem doença crónica | ↑ComDoença crónica | ↑ Com doença crónica | ↑ Com doença crónica | ||||||
Rastreio COVID-19 | p = 0,341 | p = 0,077 | p = 0,192 | p = 0,431 | p = 0,813 | p = 0.565 | p=0,004 | p = 0,032 | t de Student p = 0,077 | |
↑ Positivo | ↑ Negativo | |||||||||
Atividade Económica agregado familiar | p = 0,675 | p = 0,411 | p = 0,424 | p = 0,688 | p = 0,086 | p = 0.233 | p =0,496 | p = 0,898 | Anova p = 0,690 | |
Escolaridade agregado familiar | p = 0.033 | p = 0,242 | p = 0,471 | p = 0,807 | p = 0,293 | p = 0.075 | p=0,001 | p = 0,316 | Anova p = 0,046 | |
↑Secundário ↑Superior | ↑Superior | ↑Superior | ||||||||
Profissão agregado familiar | p = 0,071 | p = 0,449 | p = 0,086 | p = 0,164 | p = 0,783 | p = 0.074 | p=0,010 | p = 0,377 | Kruskal-Wallis p = 0,043 | |
↑Forças armadas e atividades intelectuais | ↑Forças armadas e atividades intelectuais |
Nota. ↑ = grupo com significância; Anova = teste paramétrico de comparação de médias; Kruskal-Wallis = teste não paramétrico da variância; p = valor de significância; t de Student = Teste t de Student; ESTIG = Escola Superior de Tecnologia e Gestão; ESACT = Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo.
Sobre o consumo de tabaco a maior prevalência está associada aos seguintes fatores académicos e de saúde: Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo grau licenciatura, quarto ano de curso, estudantes de proveniência portuguesa, dirigentes associativos e existência de doença crónica. O consumo exagerado por binge smoking está associado aos estudantes mais jovens e sem doença crónica. Relativamente ao consumo de medicamentos apenas os estudantes com doença crónica estão associados a maior consumo.
Já sobre as drogas recreativas, o maior consumo está associado aos seguintes fatores: sexo masculino, doença crónica e rastreio COVID-19 positivo. Sobre o agregado familiar, maior nível de escolaridade e profissões das forças armadas ou de atividades intelectuais estão associados a maiores consumos dos seus educandos.
Discussão
Os consumos de substâncias psicoativas pelos estudantes do IPB é expressivo tendo em conta tratar-se de uma população de risco como descrito por Anic et al. (2018), no entanto é inferior quando comparado com o estudo mais alargado de âmbito nacional de Bento et al. (2021).
Embora o álcool seja o psicoativo mais consumido, o problema maior reside na elevada prevalência da prática de binge drinking, em consonância com o estudo de Bento et al. (2021). É interessante verificar que em contexto de pandemia COVID-19 os estudantes do IPB percecionaram uma diminuição do consumo de álcool, contrastando com os estudos de Stanton et al. (2020) e de Jodczyk et al. (2022), talvez porque os estudantes se viram diminuídos dos contactos sociais.
Relativamente ao tabaco, os resultados de 31,6% de estudantes consumidores mostram não só uma prevalência muito superior relativamente ao resto da população, em consonância com Anic et al. (2018), como também relativamente superiores quando comparados com 19,4% da realidade nacional dos estudantes do ensino superior (Bento et al., 2021). Durante a pandemia COVID-19, os estudantes maioritariamente percecionaram manutenção ou aumento do consumo de tabaco, em concordância com os resultados do estudo de Stanton et al. (2020) e de Jodczyk et al. (2022). Estes resultados de altos consumos de tabaco identificam claramente um problema subjacente à população de estudantes do IPB, embora a própria pandemia COVID-19 possa ter potenciado os consumos.
O consumo de medicamentos psicoativos em apenas 7,3% de estudantes mostra uma prevalência bastante baixam quando comparada com os 42,2% da realidade nacional portuguesa (Bento et al., 2021), embora se mantenha o padrão do sexo feminino proporcionalmente como o mais consumidor. Dos estudantes do IPB que consumem medicamentos psicoativos, a maioria percecionou um aumento do consumo com a pandemia COVID-19, em linha com o aumento dos estados de ansiedade ou depressão apontados pelo European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (2020) e pelo estudo de Stanton et al. (2020). Estes resultados reforçam de forma inequívoca a ligação entre a pandemia COVID-19 e um aumento de estados depressivos com consequente aumento de consumo de medicamentos psicoativos nos estudantes.
Relativamente às drogas recreativas, os resultados mostram que no IPB o consumo é também bastante inferior à realidade nacional descrita por Bento et al. (2021), embora com a pandemia COVID-19 os estudantes tenham percecionado maioritariamente a manutenção dos consumos.
Em termos sociodemográficos, os dados indicam o sexo masculino como maior consumidor e o que mais combina várias substâncias psicoativas, traduzindo-se assim num maior risco de dependência como apontado também em outros estudos (Anes & Antão, 2018; Tarren & Bartlett, 2017). De todas as substâncias psicoativas estudadas, apenas a prática de binge smoking está associada aos estudantes mais jovens. Os resultados revelam que nos estudantes da Escola Superior de Saúde o consumo e abuso de substâncias psicoativas é muito menor comparativamente aos restantes, ao contrário da literatura que aponta os estudantes dos cursos de saúde como os mais consumidores (Font-Mayolas et al., 2019). Estes resultados estabelecem que estudantes com formação em áreas de saúde tem mais literacia sobre as substâncias psicoativas o que se traduz num menor consumo. Por outro lado, portadores de doença crónica estão associados a maior consumo de tabaco, medicamentos psicoativos e maior número de diferentes substâncias psicoativas, em consonância com alguns dos resultados de Neicun et al. (2020) e Chelieh et al. (2019). Estes dados reforçam que a doença crónica é um fator debilitante para os estudantes, muitos com necessidade de tratamentos que envolvem medicamentos psicoativos. Quando a escolaridade do agregado familiar do estudante é mais elevada, maior é o consumo de álcool, drogas recreativas e da associação de diferentes substâncias psicoativas, em concordância com o estudo de Görgülü et al. (2016).
Numa análise geral os resultados não são completamente sobreponíveis com outros estudos. Por um lado, a recolha de dados foi feita em contexto pandémico de COVID-19, com períodos de maior isolamento social dos alunos e aulas síncronas, e por outro, porque a população de estudantes do IPB apresenta características sociodemográficas diferentes. Este estudo aporta alguns resultados diferentes do que seria de esperar e diferentes de outros estudos, nomeadamente a diminuição do consumo de álcool pelos estudantes, tendo em conta o contexto pandémico.
Conclusão
Nos estudantes do IPB o consumo de álcool, drogas psicoativas e recreativas é menor do que na maioria dos estudos nacionais, exceto o consumo de tabaco que é proporcionalmente mais elevado. Com a pandemia COVID-19, os estudantes percecionaram uma diminuição no consumo de álcool, mas um aumento no consumo de tabaco, medicamentos psicoativos e drogas recreativas. Em termos sociodemográficos, ser estudante do sexo masculino e de idade mais jovem está associado a maiores consumos e práticas abusivas de binge drinking/smoking, no entanto os medicamentos psicoativos são mais consumidos pelo sexo feminino. Os estudantes mais jovens são os que consomem mais tabaco, enquanto os que tem mais idade, conjugam várias substâncias psicoativas. Os resultados revelam também que os estudantes dos cursos de saúde têm menores consumos e práticas abusivas e que a existência de doença crónica parece ser um fator potenciador de maior consumo. Relativamente ao agregado familiar, quando encontramos uma escolaridade maior e quando existem profissões com maior nível intelectual, os consumos dos seus educandos são significativamente maiores.
Este estudo permitiu, por um lado, verificar o nível de consumo das principais substâncias psicoativas, e por outro, identificar variáveis sensíveis associadas ao consumo das principais substâncias psicoativas nos estudantes do ensino superior da população estudada. A recolha de dados em pleno contexto pandémico ajudou também a perceber que os fenómenos de consumos abusivos em intervalos curtos de tempo se mantiveram e que no geral o consumo das principais substâncias psicoativas aumentou, exceto o álcool.
Os resultados e as principais conclusões permitem definir em que grupos é possível fazer intervenção. A enfermagem enquanto ciência do conhecimento e de ação poderá dar um contributo importante no desenvolvimento de medidas de sensibilização e promoção da saúde, com a participação dos estudantes, em áreas críticas para a sua qualidade de vida e bem-estar. Os programas nacionais de saúde escolar, em que os enfermeiros já participam ativamente, visam, entre muitos outros aspetos, a capacitação dos jovens para identificar riscos e potenciar medidas protetoras. A transição e adaptação ao ensino superior exige um trabalho árduo de capacitação, de promoção de contextos educativos positivos, seguros e inspiradores, tendo em conta a missão das instituições de ensino superior. É importante uma integração académica dos estudantes bem-sucedida, identificando atempadamente situações de risco para a saúde, bem como garantir a articulação e o encaminhamento para cuidados de saúde diferenciados, se assim se justificar.
Na população em estudo seriam importantes mais medidas de sensibilização e promoção sobretudo aquando da integração dos estudantes. Programas de cessação tabágica e de sensibilização às consequências das práticas de consumos exagerados (binge drinking/smoking). Relevante também existir maior apoio psicológico a estudantes com doença crónica e do sexo feminino, por serem mais propícios ao consumo de medicamentos psicoativos.
Embora parte dos resultados se revejam com a literatura, importa referir que este estudo foi desenvolvido num contexto específico de pandemia COVID-19 e em apenas uma instituição do ensino superior, pelo que os resultados não podem ser extrapolados a um contexto não pandémico e a toda a população de estudantes do ensino superior.
Estudos semelhantes são importantes para a comunidade científica identificar quais os comportamentos e que grupos de risco estão associados ao consumo das principais substâncias psicoativas nos estudantes do ensino superior.