Henry Kissinger descobriu tarde a sua vocação para a política internacional. Filho de refugiados judeus que fugiram da Alemanha nazi para os Estados Unidos, começou por estudar direito, no City College de Nova Iorque, e engenharia, no Lafayette College, antes de entrar em Harvard, como veterano da Segunda Guerra Mundial, em 1947.
Com 24 anos, Kissinger não tinha nenhuma formação nas humanidades e o seu tutor, William Yandell Elliott, mandou-o ler os clássicos da filosofia política, que colecionou na tese de mestrado,The Meaning of History.
Na versão original, o ensaio de Kissinger tinha mais de 300 páginas não só sobre Spengler, Toynbee e Kant, mas também sobre Hegel e Schweitzer, e ainda Collingwood, Dante, Darwin, Descartes, Dostoievski, Goethe, Hobbes, Holmes, Homero, Hume, Locke, Platão, Sartre, Espinosa, Tolstoi, Vico, Virgílio e Whitehead, sem contar com os autores remetidos para o anexo sobre a lógica do significado.
Por essa altura, Kissinger já sabia que queria estudar política internacional. Escolheu o Congresso de Viena e o Concerto da Europa como tema da tese de doutoramento para ler tudo sobre a história internacional e para se educar a si próprio. A sua análise da reconstrução europeia no fim das Guerras da Revolução e do Império é uma teoria das relações internacionais e vai ser o primeiro dos 15 livros que publicou, ao longo de sessenta e cinco anos, como académico, como diplomata e como intelectual.
O académico
No fim dos seus estudos, Kissinger fica em Harvard como professor de Ciência Política e é responsável pelo Seminário Internacional, que funda em 1952, até partir para a Casa Branca como conselheiro nacional de Segurança do Presidente Richard Nixon, em 1969. Nesse intervalo, publicaA World Restored- a sua tese doutoral;Nuclear Weapons and Foreign Policy- um dos primeiros estudos sobre a estratégia nuclear;The Necessity for Choice- um livro sobre a política externa norte-americana;The Troubled Partnership- um ensaio sobre os problemas da aliança transatlântica; eAmerican Foreign Policy- um conjunto de artigos que preparam o exercício das suas futuras responsabilidades políticas.
O título original da sua tese -Peace, Legitimacy, and Equilibrium: A Study of the Statemanship of Metternich and Castlereagh- resume o programa de investigação deA World Restored, que é uma referência clássica da Escola Realista das Relações Internacionais1. Para Kissinger, os perigos da guerra e da revolução, inerentes na natureza do sistema de Estados, tornam prioritária a procura da ordem internacional, cuja estabilidade depende do reconhecimento da sua legitimidade, que define como «o acordo internacional sobre os arranjos práticos, os fins e os métodos permissíveis da política externa»2. A ordem internacional é legítima não por ser justa, mas por ser reconhecida como tal pelo conjunto das potências. Nessas condições, a guerra pode ser substituída pela diplomacia - «a arte de relacionar os Estados uns com os outros pelo acordo mais do que pelo exercício da força, pela representação de um campo de ação que reconcilia as aspirações particulares com um consenso geral»3.
A ordem tem precedência sobre a paz:
«Quando a paz - a ausência de guerra - é o principal objetivo de uma potência, o sistema internacional fica à mercê do membro da comunidade internacional com menos escrúpulos; quando a ordem internacional reconhece que os seus princípios não podem ser comprometidos, nem sequer para manter a paz, a estabilidade assente num equilíbrio das forças é concebível»4.
O equilíbrio é a condição geral de estabilidade, assente numa balança do poder cujo funcionamento é assegurado pelo método das alianças.
A criação da ordem internacional e a garantia do equilíbrio geral são obra dos estadistas: «As escolas do determinismo social reduziram o estadista a uma alavanca na máquina chamada “história”»5, mas Kissinger quer reabilitar a posição dos dirigentes políticos que têm a intuição do sentido da história e que «moldam a realidade de acordo com os seus fins»: Metternich, Castlereagh, os «estadistas do equilíbrio», e Bismarck, o dirigente carismático que consegue unificar a Alemanha sem perturbar a balança europeia, são os seus heróis6.
A reconstrução da ordem internacional é necessária para pôr fim a um período revolucionário. Na definição de Kissinger, uma potência revolucionária não é uma mera potência revisionista: «A característica distintiva da potência revolucionária não é sentir-se ameaçada, é que nada a pode fazer sentir-se segura. Só a segurança absoluta - a neutralização do opositor - é uma garantia suficiente»7. Essa condição extrema define o período das Guerras Napoleónicas, que é um precedente da Guerra Fria, em que os Estados Unidos têm de fazer face a duas potências revolucionárias - a União Soviética e a República Popular da China. Nesse sentido, estudar o Concerto Europeu é o primeiro passo para enunciar uma estratégia norte-americana que possa transformar a Guerra Fria e criar uma ordem internacional legítima e estável.
O primeiro livro de Kissinger é não só o melhor, o mais original e o menos vendido dos seus livros, como inclui os temas centrais que os seus trabalhos posteriores vão desenvolver. O segundo, publicado no mesmo ano, é o relatório independente de Kissinger sobre os debates do Grupo de Estudos sobre as Armas Nucleares do Council on Foreign Relations, que reúne em Nova Iorque os principais especialistas civis e militares da estratégia nuclear, cuja revisão é urgente depois da União Soviética ter posto fim ao monopólio nuclear dos Estados Unidos.
Desde logo,Nuclear Weapons and Foreign Policyé o primeiro livro que explica concretamente as consequências de uma guerra nuclear, com a destruição maciça das cidades e milhões de baixas nos Estados Unidos e na União Soviética. Por outro lado, o estudo consolida a doutrina norte-americana da dissuasão estratégica nuclear: «O resultado de uma guerra nuclear é que ambos os contendores só a podem perder»8. Por último, Kissinger toma partido ao lado dos que defendem a possibilidade de uma guerra nuclear limitada: na sua fórmula, a dissuasão nuclear é análoga à Linha Maginot e é necessário poder contar com armas nucleares táticas para criar alternativas que evitem a escolha impossível entre o suicídio de uma guerra nuclear total e a paralisia perante a expansão do bloco soviético9.
Em 1960, Kissinger entra na política, como conselheiro de Nelson Rockefeller, seu amigo e candidato à nomeação presidencial do Partido Republicano, que perde para Nixon. No ano seguinte, publicaThe Necessity for Choice, o primeiro dos seus três livros sobre a política externa dos Estados Unidos, que convergem num esforço inglório para transcender as teses dominantes sobre o excecionalismo norte-americano. Kissinger, que é próximo de McGeorge Bundy, o principal conselheiro do Presidente John Kennedy, concentra-se nas questões cruciais da agenda da nova Administração democrata - a dissuasão nuclear, a guerra limitada e o controlo dos armamentos; as relações entre os Estados Unidos, a República Federal da Alemanha e os aliados europeus; e a competição com as potências comunistas sobre o alinhamento dos novos Estados independentes nas periferias. O livro inclui ainda uma crítica sobre os malefícios da burocracia para a política externa - a «estagnação administrativa» - e uma reflexão sobre a influência dos intelectuais na decisão política10.
Kissinger torna-se um «professor conselheiro» escutado na Casa Branca e um interlocutor de boa parte dos intelectuais e dos dirigentes europeus na República Federal da Alemanha, em França ou na Grã-Bretanha. Todos os anos, no fim do último semestre em Harvard, atravessa o Atlântico para ser recebido, por vezes ao mais alto nível, em Bona, em Paris, em Londres e em Bruxelas. EmThe Troubled Partnership, que reúne três conferências no Council on Foreign Relations, Kissinger resume o essencial das suas posições sobre a crise transatlântica aberta pelas divergências do general de Gaulle. Em 1965, contra a posição dominante na Administração norte-americana, Kissinger justifica as posições gaullistas, tanto mais porque a sua principal preocupação são as tendências nacionalistas e neutralistas alemãs, que se vão revelar, quatro anos depois, com aOstpolitikde Willy Brandt e Egon Bahr11.
Kissinger considera que o sucesso da ressurgência da Europa - o principal objetivo da estratégia norte-americana no pós-Guerra - torna obrigatória uma nova política dos Estados Unidos na NATO em relação aos aliados europeus. Desde logo, é preciso antecipar o futuro da Alemanha e garantir que a Aliança Atlântica tem capacidade para definir o quadro em que se possa realizar a reunificação alemã12. Por outro lado, critica a Força Multilateral (MLF) como uma forma tosca de legitimar a hegemonia nuclear dos Estados Unidos na NATO e sublinha que Washington não pode aceitar a Grã-Bretanha como uma potência nuclear e depois condenar o programa nuclear da França; a potência dominante na aliança ocidental não pode escolher entre Bona, Paris e Londres: historicamente, a estabilidade europeia reclama a convergência entre a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha. Por último, é preciso transformar a aliança militar numa aliança política - transformar a NATO numa «Comunidade Atlântica»13, não com a formação dos Estados Unidos da Europa, como quer Jean Monnet, mas como um diretório entre as principais potências, como quer de Gaulle - naturalmente, acrescentando a República Federal da Alemanha e, eventualmente, a Itália, à proposta original do general14.
O diplomata
Em 1969, Kissinger volta a apoiar Rockefeller nas primárias republicanas e reúne três ensaios num segundo livro sobre a política externa norte-americana, desta vez publicado antes da eleição presidencial dominada pela Guerra do Vietname15.
Os seus temas são, no essencial, os mesmos: os estadistas não podem ser reféns da burocracia; as armas nucleares exigem a limitação absoluta dos conflitos; a NATO está em crise por causa do declínio da preeminência das superpotências e da emergência da multipolaridade política; e, sobretudo, é indispensável transcender o excecionalismo americano:
«O entusiasmo, a crença no progresso e a convicção invencível de que os remédios americanos funcionam em toda a parte têm de dar lugar à compreensão das tendências históricas, um ordenamento das nossas preferências e uma compreensão da diferença que as nossas preferências podem realmente fazer»16.
Com efeito, as consequências da Guerra do Vietname, que divide a comunidade política norte-americana, antecipam o declínio dos Estados Unidos e reclamam uma nova estratégia de retraimento, marcada por uma crescente relutância sobre a intervenção em conflitos externos e pela devolução de responsabilidades aos aliados: «Os agrupamentos regionais apoiados pelos Estados Unidos têm de assumir a responsabilidade principal pelas suas áreas, enquanto os Estados Unidos se concentram no quadro geral do ordenamento mais do que na gestão das questões regionais»17.
Logo a seguir à eleição, o Presidente Nixon convida Kissinger para ser o seu conselheiro de Segurança Nacional: é a primeira vez que um cidadão que não nasceu norte-americano vai ocupar uma posição da mais alta responsabilidade na diplomacia dos Estados Unidos, ainda mais num momento decisivo de revisão da estratégia internacional. Nixon está determinado a retirar os Estados Unidos do pântano vietnamita e, para tal, precisa da União Soviética e da China. Kissinger tem a fórmula diplomática necessária, que inseriu num discurso de Rockefeller - os Estados Unidos devem criar um «triângulo subtil com a China comunista e a União Soviética» para «melhorar as nossas relações com os dois e pôr à prova a vontade de paz de ambos»18; e conhece o método para fazer funcionar a dupladétentecom as duas potências comunistas rivais, na esteira da estratégia diplomática de Bismarck que procurava fazer com que a Prússia estivesse sempre «mais próxima dos contendores do que estes um do outro»19.
Embora Kissinger não tivesse nenhuma experiência relevante como diplomata, o novo conselheiro de Segurança Nacional vai ser o responsável tanto pelas conversações secretas entre Washington e Pequim sobre a normalização das relações diplomáticas bilaterais, como pelas negociações paralelas entre Washington e Moscovo sobre os primeiros acordos de limitação das armas estratégicas nucleares. Esse processo extraordinário culmina em 1972, quando o primeiro Presidente dos Estados Unidos a visitar a China - Nixon vai a Pequim para se encontrar com o Presidente Mao Tsé-Tung em fevereiro - está três meses depois em Moscovo para se reunir com o Presidente Leonid Brezhnev e assinar os acordos SALT I.
O sucesso da estratégia dedétentenorte-americana, que torna possíveis os acordos de Paris e a saída dos Estados Unidos da Guerra do Vietname, estão descritos no primeiro livro das memórias diplomáticas de Kissinger, publicado em 1979, três anos depois do fim do seu segundo mandato como secretário de Estado de Nixon e do Presidente Gerald Ford.
Como era previsível, Kissinger não quis deixar por mãos alheias o registo histórico dos seus mandatos sucessivos como conselheiro de Segurança Nacional e como secretário de Estado dos dois presidentes republicanos que serviu entre 1969 e 1977. Os três livros de memórias são incontornáveis não só pela qualidade da escrita, pelo rigor da análise e pela densidade da exposição de todos os episódios relevantes dos oito anos de Kissinger no poder, mas também pela sua extensão - três livros, 93 capítulos, 3955 páginas.
O primeiro volume -White House Years, dedicado a Rockefeller20 - trata do primeiro mandato do Presidente Nixon e do seu conselheiro de Segurança Nacional, juntos em 28 das 40 fotografias escolhidas por Kissinger: as conversações com a China e com a União Soviética e as negociações com os dirigentes do Vietname dominam o livro. O segundo volume -Years of Upheaval, dedicado à sua Mulher21 - trata do período entre a reeleição de Nixon em 1972 e a sua demissão em 1974 - o Watergate ocupa três dos 25 capítulos do livro. Em 1973, Kissinger é nomeado secretário de Estado, funções que acumula com as de conselheiro de Segurança Nacional -, outro facto inédito na história da diplomacia norte-americana. A China, a União Soviética, a Europa Ocidental - Kissinger decide que 1973 é o Ano da Europa, com resultados desastrosos - e o Chile são etapas importantes num livro dominado pela Guerra do Yom Kippur, em que as qualidades do novo secretário de Estado são decisivamente postas à prova numa negociação que reinventa os equilíbrios do Médio Oriente. O terceiro volume -Years of Renewal ,dedicado a sua Mãe22 - trata do mandato presidencial de Gerald Ford, que substitui Nixon entre 1974 e 1976 e mantém o seu secretário de Estado. Kissinger é reconhecido como o estadista indispensável da Administração republicana e o último volume das suas memórias tem um número importante de capítulos sobre a política americana. De resto, trata de todas as dimensões da política externa dos Estados Unidos, incluindo, pela primeira vez, África, cuja saliência resulta da intervenção soviética e cubana na descolonização de Angola, na sequência da Revolução portuguesa. A prestação de contas vai exigir mais dois livros - uma monografia sobre a retirada norte-americana da Guerra do Vietname e uma revisão da Guerra do Yom Kippur e dos últimos dias da Guerra do Vietname, depois da divulgação das transcrições de conversas telefónicas de Kissinger no exercício das suas funções oficiais23.
O intelectual
Kissinger demorou vinte anos a completar as suas memórias diplomáticas, mas depois da saída do primeiro volume recomeçou a publicar outros livros - uma seleção de discursos, em 1981, e uma nova recolha de intervenções e ensaios, quatro anos depois24. Em 1994 publicou o primeiro dos cinco livros que vão marcar o seu percurso intelectual nos últimos trinta anos, durante os quais o Presidente da Kissinger Associates, Inc., a mais conhecida empresa mundial de consultoria política, se desdobrou como conselheiro de todos os príncipes, incluindo todos os presidentes dos Estados Unidos e todos os secretários-gerais do Partido Comunista da China, e como umsagecuja palavra podia contar nas crises internacionais.
Diplomacyé uma extensa análise sobre a estratégia das grandes potências desde os tratados da Vestefália até ao pós-Guerra Fria, que remete para um projeto inacabado e retoma a problemática da sua tese doutoral. Com efeito,A World Restoreddevia ter sido o primeiro de três livros sobre a história internacional desde o Congresso de Viena até à tragédia da Grande Guerra de 1914-1918 e, em 1957, Kissinger escreveu partes dos dois volumes inacabados da trilogia, que se referem, respetivamente, aos períodos antes e depois da demissão de Bismarck25.
Kissinger assume o seu novo personagem:
«Os intelectuais analisam as operações dos sistemas internacionais, os estadistas têm de os construir; o analista pode escolher que problema estudar, os problemas impõem-se ao estadista; o analista pode gastar o tempo necessário para chegar a uma conclusão clara, a pressão do tempo é o maior desafio do estadista; o analista não corre riscos e pode escrever outro tratado se as suas conclusões estiverem erradas, o estadista tem de adivinhar à primeira e os seus erros são irrecuperáveis; o analista está na posse de todos os factos e é julgado pelo seu poder intelectual, o estadista só tem as suas avaliações que não podem ser provadas quando as está a fazer e é julgado pela história pela forma como geriu as mudanças inevitáveis e como preservou a paz»26.
Na primeira parte do livro, Kissinger analisa a ascensão sucessiva da França de Richelieu, da Inglaterra de Pitt, da Áustria de Metternich e da Alemanha desde Bismarck até Hitler. Na segunda parte, concentra-se na Guerra Fria e na ordem resultante da ascensão dos Estados Unidos desde Theodore Roosevelt a Franklin Roosevelt. Na parte final, interpreta a transição pós-bipolar que culmina com o fim da Guerra Fria. Para
Kissinger, só existiram duas ordens internacionais estáveis - o Concerto Europeu, no século XIX, e a ordem criada pelos Estados Unidos no sistema bipolar do pós-Guerra, que garante a sua vitória na Guerra Fria.
O pós-Guerra Fria é um novo sistema internacional em que regressa a ordem do equilíbrio, com seis grandes potências - os Estados Unidos, a Europa, o Japão, a China, a Rússia e talvez a Índia -, a maior parte das quais não têm experiência da diplomacia num sistema de Estados multipolar. Os Estados Unidos não podem nem isolar-se, nem dominar o novo sistema: o seu declínio económico e militar é inevitável, tal como a emergência de um novo equilíbrio que, pela primeira vez, é realmente global, e cuja ordem, pela primeira vez, tem de ser construída por estadistas que representam culturas muito diferentes27.
A ordem internacional é o problema teórico central de Kissinger, antes e depois de ter tido a possibilidade de reconstruir a balança entre as potências na Guerra Fria; a política externa dos Estados Unidos é o seu tema eletivo nos momentos cruciais de viragem da política internacional. Em 2001, terminada a publicação das suas memórias, o antigo secretário de Estado publica o terceiro e último livro sobre a estratégia norte-americana, a seguir à eleição presidencial de George W. Bush e antes dos atentados terroristas de 11 de setembro de 200128.
Na viragem do milénio, os Estados Unidos têm uma posição de poder sem rival e sem precedente histórico. Para Kissinger, é uma oportunidade extraordinária para os Estados Unidos reconfigurarem a ordem internacional num mundo em transição, dominado pela crise sistémica da ordem vestefaliana: o princípio da não-intervenção foi substituído pela intervenção universal humanitária; os Estados nacionais estão a ser reconstruídos a partir de duas tendências contraditórias: a sua decomposição em componentes étnicas e a sua dissolução em agrupamentos regionais; e a globalização económica, que não é um substituto da ordem mundial, é acompanhada por uma dinâmica de fragmentação regional29.
Porém, os Estados Unidos não estão preparados para transformar a vitória na Guerra Fria numa nova ordem: «No apogeu do seu poder, perante as mais profundas mudanças que o mundo já conheceu, os Estados Unidos não conseguiram desenvolver conceitos relevantes para as realidades emergentes»30. A mudança mais forte é a divisão regional, que pode criar múltiplos sistemas internacionais na América, na Europa, no hemisfério ocidental, na Ásia do Norte, na Ásia do Sudeste, no Médio Oriente e em África.
A comunidade transatlântica está dominada por tendências centrífugas: «Na Guerra Fria, a integração era um método para reforçar a parceria atlântica; hoje é um modo de criar um contrapeso aos Estados Unidos»31. Para inverter a tendência, a principal potência ocidental deve reconhecer que «a capacidade militar da Europa é um paralelo lógico à emergência da Europa como uma entidade política» para redefinir as relações entre a NATO e a União Europeia: «A UE deve afirmar a sua determinação em salvaguardar a sua integridade territorial. A NATO deve afirmar que a integridade territorial da UE é um interesse vital da NATO»32. A Ásia, que reproduz o padrão da rivalidade estratégica da Europa do século XIX, está dominada pela ascensão da China: «Os Estados Unidos devem facilitar e não obstruir a participação da China numa ordem internacional estável», mas se estiverem confrontados com uma ameaça de hegemonia na Ásia «devem resistir como fizeram com a ameaça do Japão na Segunda Guerra Mundial e da União Soviética durante a Guerra Fria»33.
A fúria democrática desencadeada pelo «11 de Setembro» e as ilusões sobre a possibilidade de reconstruir o sistema internacional aceleram o declínio da ordem americana do pós-Guerra Fria. Kissinger também tem as suas ilusões, como fica patente dez anos depois no seu livro sobre a China, que é, ao mesmo tempo, o testemunho insubstituível de um responsável político que tem uma intervenção importante nas relações entre as duas principais potências internacionais durante mais de quatro décadas e a expressão de uma visão irrealista sobre a emergência de uma comunidade do Pacífico, assente na convergência sino-americana, que deve substituir a comunidade transatlântica como a chave da ordem internacional no novo século34.
Em 2014, Kissinger regressa ao problema da ordem mundial no contexto em que se confrontam uma variedade de conceções civilizacionais do conceito de ordem na construção da primeira ordem global35. O princípio hierárquico universal que sustenta a ordem imperial chinesa é incompatível com a visão da república norte-americana que quer impor a paz pela difusão dos princípios democráticos. Para Kissinger, os princípios vestefalianos da independência nacional, da soberania dos Estados e da não-interferência são «os únicos fundamentos geralmente reconhecidos do que existe como uma ordem mundial»36. Existe o risco de uma divisão do sistema internacional em espaços regionais e esferas de influência que podem adotar modelos distintos de ordenamento e pôr em causa a unidade da ordem mundial. Essa tendência pode ser limitada se for possível impedir a rutura entre Washington e Pequim:
«Os Estados Unidos e a China são ambos pilares indispensáveis da ordem mundial. A China não tem precedente para o papel que querem que desempenhe como um grande Estado entre outros. Os Estados Unidos também não têm a experiência de interagir com um país comparável pelo seu tamanho, a sua projeção e o seu desempenho económico, mas que abraçou um modelo diferente de ordem interna»37.
A alternativa a uma fórmula que combine a balança do poder e a parceria diplomática é repetir o precedente de 1914, em que a desconfiança crescente precipitou numa guerra geral que nenhuma das potências queria travar.
No seu centenário, Kissinger nomeia os seis estadistas seus contemporâneos cujas estratégias considera exemplares e faz os seus retratos num último livro -Leadership38. O chanceler Konrad Adenauer, o Presidente Charles de Gaulle, o Presidente Richard Nixon, oRaisAnwar al-Sadat, o primeiro-ministro Lee Kuan-Yew e a primeira-ministra Margaret Thatcher são, como Kissinger, os herdeiros da segunda Guerra dos Trinta Anos que moldaram a política internacional na segunda metade do século XX. Kissinger não faz qualquer hierarquia entre os seis, que entram em cena por idades; o retrato mais interessante é o de Nixon, com quem Kissinger fez adétentetriangular, o mais íntimo é o de Sadat, com quem Kissinger construiu a paz possível no Médio Oriente; o mais admirativo é o de de Gaulle, o único dos seis com quem o retratista nunca teve uma relação pessoal ou direta.
Kissinger tem um lugar próprio entre os homens de Estado do século XX e fez antecipadamente o seu retrato: «O estadista é como um dos heróis num drama clássico que teve uma visão do futuro, mas não a pode transmitir directamente aos seus concidadãos e que não pode validar a sua “verdade”»39.