1. Introdução e Pressupostos Metodológicos
A escolha do aporte teórico dos estudos culturais para mobilizar as análises do objeto de estudo em questão, o Museu do Festival de Cinema de Gramado (http:// www.museufestivaldecinema.com.br), relaciona-se ao fato de tratar-se de um campo de estudos interdisciplinar que, de acordo com Wortmann et al. (2015), tem viabilizado a proposição de questionamentos sobre a produtividade da cultura nos processos educativos em curso na sociedade contemporânea. Nesta direção, destaca-se o conceito de pedagogias culturais que para Steinberg (2016) está relacionado à dimensão educativa, haja vista que na contemporaneidade a aprendizagem vem deslocando-se para outros espaços socioculturais e políticos, além da escola:
a educação ocorre numa variedade de locais sociais, incluindo a escola, mas não se limitando a ela. Locais pedagógicos são aqueles onde o poder se organiza e se exercita, tais como as bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames, livros, esportes etc. (Steinberg & Kincheloe, 2004, pp. 101-102)
A partir do entendimento de que o Museu do Festival de Cinema de Gramado possui uma dimensão educativa, o presente estudo pretende investigar que significados culturais são produzidos e disseminados pela exposição museográfica permanente desse museu aos seus visitantes.
Em termos metodológicos, foram realizadas visitas ao museu, dentro de uma perspectiva etnográfica de observação participante e de registros que pretenderam capturar, conforme Souza e Lopes (2002), a materialidade dessa exposição, conferindo ao observador uma visão sobre as representações mais recorrentes produzidas em seus diversos materiais. Cada uma das incursões in loco realizadas, bem como as anotações e fotografias registradas em cada oportunidade, integram o esforço investigativo etnográfico que buscou produzir o material empírico da pesquisa. Vale salientar que autores como Coffey (1999) reconhecem que, muitas vezes, essa metodologia está associada ao “eu” do pesquisador, configurando-se como uma autoetnografia. Por conseguinte, esse estudo viabilizou-se por meio de uma prática autoetnográfica que demandou, como já mencionado, visitas a esse espaço museal, cujas observações foram registradas em um diário de campo, composto por apontamentos dos pesquisadores e fotografias por eles capturadas. Já as análises foram desenvolvidas a partir do aporte das análises culturais que, segundo Silva (2010), se propõem questionar visões naturalizadas acerca dos espaços culturais do museu e dos significados que são produzidos e compartilhados pelos visitantes desses espaços. Tendo em vista essas contribuições, a escolha pela autoetnografia firma-se pela sua potencialidade para avaliação e reavaliação das observações do pesquisador e dos resultados da sua investigação. Essa é, portanto, a premissa metodológica que se adotou nessa pesquisa.
No que se refere ao entendimento teórico sobre os museus na sociedade contemporânea, compartilhamos com Hudson (1999) a noção de que os museus vêm vertiginosamente deixando de ser meros armazéns, unidades independentes de preservação de símbolos nacionais, para converterem-se em centros culturais e poderosas instâncias educacionais, conforme discutir-se-á na seção 3.
Inicialmente, faremos uma breve incursão histórica sobre o Festival do Cinema de Gramado, para compreender esse museu do festival como um artefato cultural, que em sua exposição permanente produz representações sobre esse evento de cinema e acerca da cidade de Gramado, contribuindo, assim, para incrementar o turismo cultural local. De acordo com Lasanski (2004), considera-se que esse museu é simultaneamente um produto cultural e um produtor de cultura que promove o turismo cultural na medida em que identifica e atribui interpretações particulares aos patrimônios culturais da cidade de Gramado. Nesse sentido, busca-se analisar essa potencialidade híbrida do Museu do Festival de Cinema de Gramado como uma instância cultural interativa, que constrói estratégias representacionais sobre o Festival de Cinema e acerca dessa cidade. Assim, algumas questões são fundamentais nesse estudo: que estratégias representacionais são acionadas na expografia desse museu? Que representações culturais o museu comunica sobre o Festival de Cinema e a cidade de Gramado? Que possíveis pedagogias culturais o museu dissemina para seus visitantes? Essas são algumas das questões que se pretende contemplar nesse artigo.
2. O Festival de Cinema de Gramado
A gênese do Festival de Cinema encontra-se associada ao primeiro evento turístico que ocorreu em Gramado, quatro anos após a emancipação da cidade: a Festa das Hortênsias, em 1958, a qual, segundo a Secretaria Municipal de Educação de Gramado (1987), era uma simples festa alusiva à flor, símbolo do município.
No entanto, a Festa das Hortênsias teve uma repercussão inesperada, promovendo a cidade como o primeiro marco da história do turismo organizado do Rio Grande do Sul. Na época, o então secretário do Conselho Municipal de Turismo, Romeu Dutra, pensou em dar um cunho cultural ao evento, por meio da inclusão de mostras cinematográficas. Conforme Daros (2008), o primeiro cinema da cidade, denominado 3 de Outubro, inaugurado em 1929, localizava-se em um casarão de madeira na Praça Major Nicoletti. Quintans (2008) afirma que esse prédio também servia para outras atividades da comunidade, pois seguidamente as poltronas eram retiradas para liberar o centro do salão para a dança ou para a patinação. Com o surgimento do filme sonoro em 1936, esse cinema recebeu poltronas novas e uma tela mais moderna, passando a se chamar Cine Splendid, o qual teve uma importância fundamental para a comunidade, sendo considerado, na época, o “point da cidade”. Contudo, no início da década de 60, devido à precariedade do prédio, o Cine Splendid encerrou suas atividades.
Foi somente a partir de 1964, durante a gestão do Prefeito José Francisco Perine, que teve início a construção de um novo cinema. Em 1967, é inaugurado o Cine Embaixador e na ocasião da “VI Festa das Hortênsias”, entre 6 a 8 de janeiro de 1969, ocorreu a “I Mostra do Cinema Nacional de Gramado”. De acordo com Quintans (2008), compareceram artistas de destaque do cinema nacional da época, como Eva Wilma e John Herbert. Dado o sucesso do evento, em 1971 ocorreu uma segunda edição, ainda de caráter amadorístico e sem premiações.
Foi, segundo Quintans (2008), a partir da gestão do Prefeito Horst Volk, com a criação da Secretaria de Turismo, que as mostras cinematográficas se tornaram um festival de cinema de projeção nacional. O autor explica que o poder público da época, a partir dos contatos com produtores de cinema do Rio de Janeiro, ofereceram patrocínio para que a cidade fosse cenário de produções cinematográficas, o que foi fundamental para a criação do Festival de Cinema de Gramado. Conforme os relatos do então Secretário de Turismo, Romeu Dutra:
nós, então, ajudamos e patrocinamos todas as despesas dos artistas durante as filmagens. E nesse ínterim, a gente aproveitou para discutir com nomes importantes, como Paulo José, o Lewgoy, a realização de um festival em Gramado. Quem marcou a primeira audiência para conversar com o presidente do Instituto Nacional de Cinema, que era Ricardo Cravo Albin, foi o Lewgoy. (Quintans, 2008, p. 40)
Assim, de 11 a 14 de janeiro de 1973, ocorreu a primeira edição do Festival de Cinema de Gramado que gerou algumas polêmicas na cidade. Quintans (2008) relata que nessa época Gramado ainda não tinha hotéis com piscinas. Então, os artistas frequentavam o Gramado Tênis Clube, que era o espaço recreativo dos moradores no verão. E, nesse local, as estrelas de cinema faziam topless, prática que impactou os gramadenses, conforme descreve o autor: “de fato, foi um escândalo! O padre fez discurso na igreja sobre a ameaça que o festival representava para a família gramadense, fomentando dúvidas sobre a continuidade do evento que havia sido tão arduamente realizado” (Quintans, 2008, p. 45). Entretanto, Quintans (2008) ressalta que o evento ocorreu mesmo assim, pois Horst Volk, de volta à presidência de sua empresa, os Calçados Ortopé, financiou o Festival, de modo que, nessa edição, a cidade, que na época tinha 24.000 habitantes, recebeu, aproximadamente, 16.000 visitantes.
Desde a primeira edição do Festival de Cinema, a última noite do evento era reservada para a entrega das premiações. Quintans (2008) relembra o desejo de Horst Volk de que o troféu fosse uma escultura em forma de hortênsia. Contudo, o “Kikito”, o Oscar brasileiro, surgiu pelo trabalho de Elisabeth Rosenfeldt, na sede do Artesanato Gramadense, antes mesmo da criação do Festival de Cinema em 1966. Tratava-se de uma pequena estatueta de chumbo que, segundo Daros (2008), foi criada por essa artista plástica para ser distribuída às pessoas que lhe eram mais próximas, como símbolo de amizade e respeito, sendo conhecido, carinhosamente, como o “Deus do bom humor”. Em 1972, o Kikito foi o troféu da Feira Nacional do Artesanato, que ocorreu em Gramado. E, em 1973, passou a ser o prêmio máximo do Festival de Cinema, distribuído aos melhores artistas e diretores.
Com a expansão do evento, a cada edição, o Cine Embaixador passou a ser pequeno com seus 600 lugares para abrigar o festival. Em 1987, segundo Daros (2008), com recursos coletados da comunidade e, também, por meio de um empréstimo realizado pela Prefeitura, investiu cerca de 55.000.000 cruzados em obras e melhorias técnicas para assegurar o mais alto padrão para a sede de um dos maiores eventos do cinema nacional. Vale destacar que, nessa reforma, o cinema passou a ter capacidade para 1.100 pessoas e, além disso, destaca-se, principalmente, o seu estilo arquitetônico, bávaro, que já era predominante na cidade desde o início da década de 60, com o intuito de atribuir a Gramado uma identidade vinculada à arquitetura, como pode ser observando nos relatos de Romeu Dutra:
foi naquela época que se estabeleceu o estilo bávaro, para as construções de Gramado. Nós pensamos em muitas coisas, e quem nos deu muitas ideias nessa parte do estilo de Gramado foi o Frantz Habeler, que era dono do Hotel das Hortênsias. Era um alemão que tinha vendido os bens dele em Porto Alegre e foi construir aquele hotel diferente do estilo quadrado que imperava na época, daquelas casas quadradas. (Quintans, 2008, p. 38)
Daros (2008) salienta que com essa reforma, principalmente pela incorporação do estilo bávaro ao prédio, a sede do cinema recebeu um novo nome: Palácio dos Festivais. Transcorridos cinco anos da sua inauguração, a permanência do Festival de Cinema ficou ameaçada por falta de apoio governamental. Contudo, conforme o Sebrae (2022), os realizadores lançaram uma edição iberoamericana em 1992, premiando filmes e estrelas internacionais, como o autor Javier Bardem e o cineasta Pedro Almodóvar.
Em 2006, antes de ocorrer sua 33.ª edição, o Festival de Cinema de Gramado foi elevado à categoria de patrimônio histórico e cultural do Rio Grande do Sul, pela Lei de n.º 12.529, de 6 de junho de 2006. Zeca Brito, diretor da Lecine, e Beatriz Araújo, Secretária de Estado da Cultura, em uma seção editorial do catálogo da 50.ª edição do Festival, elaborada pela Gramadotur, destacaram:
como parte fundamental do patrimônio cultural gaúcho. Nos últimos 50 anos, Gramado vem projetando o Rio Grande do Sul para todo o Brasil e exterior, o que faz com que o município seja uma referência no campo cultural e turístico. Gramado é um ecossistema de economia criativa, que se desenvolveu a partir da existência de um calendário de ações cinematográficas. (Brito & Araújo, 2022, p. 17)
Nesse sentido, o evento marcou a consolidação da atividade turística em Gramado, pois, segundo Brito e Araújo (2022), o reconhecimento do município como um caso turístico de sucesso deu-se, principalmente, a partir do Festival de Cinema. Gramado passou a ser representada como a “capital brasileira do cinema” (Secretaria Municipal de Educação, 1987, p. 87).
Em decorrência da pandemia do coronavírus, nos anos de 2020 e 2021, o festival foi realizado no formato on-line. Em 2022, com o retorno presencial do evento, comemorou-se a realização de sua 50.ª edição com dois grandes acontecimentos: a aprovação da Assembleia Legislativa Municipal ao Projeto de Lei do Legislativo n.º 028/2022 (2022), que elevou o Kikito a categoria de patrimônio cultural da cidade de Gramado (“Cerimônia Oficializa Kikito Como Patrimônio Cultural de Gramado”, 2022); e a reinauguração do Museu do Festival de Cinema de Gramado, cujas origens remontam ao ano 2000. Porém, a instalação do museu foi viabilizada, somente, a partir de 2015, por intermédio de um projeto de lei do poder executivo municipal.
3. O Museu do Festival de Cinema Sob as Lentes Teóricas dos Estudos Culturais
De acordo com Urry (2001), na contemporaneidade, com o declínio da hegemonia das narrativas históricas nacionais, “ocorreu um notável aumento do âmbito das histórias dignas de serem representadas” (p. 175) nos museus. Assim, o teórico afirma que os museus pós-modernos passam a expor histórias alternativas, com vieses sociais, econômicos, populares, feministas, étnicos e industriais. Ademais, o autor chama a atenção para a mudança na interação do público visitante com os museus:
já não se espera mais que os visitantes fiquem boquiabertos diante das exposições. Agora dá-se mais ênfase a seu grau de participação nelas. Os museus “vivos” substituem os museus “mortos”, os museus ao ar livre substituem os museus fechados, o som substitui murmúrios impostos pelo silêncio e os visitantes não estão mais separados por divisórias de vidro daquilo que é exposto. (Urry, 2001, p. 176)
Essa interatividade, bem como o incremento do grau de participação dos visitantes com relação às exposições, segundo Hudson (1999), resultam da modificação do escopo dos museus que passaram a propor questionamentos ao público, ao invés de lhe endereçar respostas, encorajando-o a interagir e elaborar suas compreensões através do que observam, escutam e manipulam. Segundo Lumley (1988), os museus híbridos acionam em suas exposições estilos interativos, que ensejam a produção de um ambiente midiático. Nesta perspectiva, Anico (2005) afirma que os museus contemporâneos não se concentram mais na aquisição desenfreada de objetos, mas sim na comunicação com o público. De acordo com a autora, houve uma mudança no “ethos museológico”, pois onde antes se valorizava os objetos, agora o visitante passou a ser o foco central. De acordo com a autora, o público torna-se “simultaneamente agente e produto da mudança política, social e cultural” (Anico, 2005, p. 83). E, particularmente em museus interativos, como é o caso do Museu do Festival do Cinema de Gramado, o projeto expográfico estabelece uma postura ativa do público visitante com os acervos digitais.
Nessa direção, ao apropriar-se desses pressupostos teóricos, o presente estudo procura examinar o Museu do Festival de Cinema de Gramado não apenas como um repositório informacional deste evento, mas, principalmente, como uma instância produtora de cultura, que dissemina e comunica representações sobre o Festival de Cinema e a cidade de Gramado, incrementando assim o turismo cultural local. A seguir, discute-se o processo de implantação desse museu e as análises que foram viabilizadas a partir das visitas realizadas.
4. O Museu do Festival de Cinema de Gramado
As origens da implantação deste museu remontam a duas décadas atrás, a partir da Lei 1738/00 (2000), de 15 de junho de 2000, que autorizou a instituição do Arquivo e do Museu dos Festivais de Gramado. Nessa época, o museu estava sob tutela da historiadora gramadense Iraci Koppe e localizava-se junto ao Centro Municipal de Cultura, que abriga, ainda hoje, o Arquivo Histórico Municipal.
Em 2015, por meio do Projeto de Lei do Executivo - PLE 042.15 (2015), o poder público de Gramado realizou a concessão de uso de imóvel público, localizado ao lado do Palácio dos Festivais, para ser destinado à implantação e exploração do Museu do Festival de Cinema. Essa concessão deu-se por meio de projeto licitatório, divulgado mediante edital de concorrência pública, sendo que no local também poderia ser instalada uma cafeteria e uma loja de souvenirs. Nessa legislação, justifica-se a criação deste museu pois desde o ano de 2006, através da Lei n.º 12.529, o Festival de Cinema de Gramado tornou-se integrante do Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul, o qual é realizado, ininterruptamente há 43 anos, sendo referência nacional e internacional. Através deste projeto propomos a Implantação do Museu do Festival de Cinema de Gramado, a partir da aprovação desta Lei. (Projeto de Lei do Executivo - PLE 042.15, 2015, p. 2) E destaca ainda que ele deve ter como objetivos:
gerar visibilidade para o Museu junto aos seus públicos-alvo, posicionando-o como uma atração de interesse entre as tantas opções oferecidas por Gramado. Estimular um alto fluxo de visitantes às instalações do Museu. Associar o nome do Museu à imagem de prestígio é a marca consagrada que é o Festival de Cinema de Gramado, promovendo sinergias positivas entre os esforços de comunicação de um e de outro. (Projeto de Lei do Executivo - PLE 042.15, 2015, p. 2)
Pode-se observar que o Museu do Cinema de Gramado surge articulado ao Festival de Cinema, como uma atração cultural que busca reforçar o turismo na cidade de Gramado. Assim, em 26 de outubro de 2016, inaugurou-se o Museu do Festival de Cinema, cujo acervo compõe-se de pôsteres do Festival de Cinema, reportagens jornalísticas, fotografias, painéis com recursos audiovisuais para apresentar tanto informações sobre a origem do evento, a despeito de suas edições, como também para contar a história do desenvolvimento da sétima arte no mundo e no Brasil.
Durante a pandemia de coronavírus, entre os anos de 2020 e 2021, o museu esteve fechado, mas reabriu em 2022, no aniversário da 50.ª edição do Festival de Cinema, priorizando a interatividade do público com o acervo, o que lhe valeu o título de primeiro museu de cinema interativo contemporâneo da América Latina.
Com o propósito de investigar os significados e as pedagogias culturais mais recorrentes que o Museu do Festival de Cinema produz e dissemina aos seus visitantes na sua expografia, produziu-se observações registradas em um diário de campo, a partir das 10 visitas realizadas a esse espaço museal durante quatro semanas. Para as análises, selecionamos quatro eixos temáticos, conforme segue.
4.1. O Prédio e a Arquitetura do Museu do Festival de Cinema
O prédio do Museu do Festival do Cinema é contiguo ao Palácio dos Festivais e sua entrada é o próprio hall que sedia o Festival de Cinema, apresentando, portanto, uma planta compartilhada com o Palácio dos Festivais, o que faz com que os vínculos entre ambos sejam potencializados para os visitantes de um ou de outro. Por outro lado, o estilo arquitetônico bávaro reforça a imagem turística da cidade de Gramado como uma cidade europeia, como demonstra a Figura 1.
O estilo arquitetônico bávaro, cujas origens remontam à Alemanha, alude aos colonizadores da cidade e está presente em muitas outras edificações da cidade, como é o caso do prédio do Banco do Brasil e dos Correios. Sob a perspectiva teórica de Urry (2001), essa variante pode explicar o “desejo aparente, por parte das pessoas que vivem em determinados lugares, de conservar ou de implementar edificações, pelo menos em seus espaços públicos, que expressam aquela localidade particular na qual elas vivem” (p. 170). O teórico acrescenta, ainda, o efeito dessa variante para atrair o olhar do turista, pois, segundo ele, quando as pessoas visitam cidades do interior, chamam-lhes à atenção as edificações que distinguem esse lugar de outras localidades. Nessa inter-relação entre a arquitetura e turismo, observa-se que a arquitetura é simultaneamente um local, um evento, um signo, em decorrência de ser planejada como um processo de representação, recepção, uso, espetacularização e comodificação.
Após ingressarmos no Museu, logo observa-se uma grande estátua de concreto do Kikito (Figura 2), produzida por Elisabeth Rosenfeldt em seu ateliê, em 1967, e, posteriormente, comprada pelo casal Berg, que a doaram à Prefeitura Municipal de Gramado. Foi transferida para o hall de entrada do Palácio dos Festivais durante a 23.ª edição do evento em 1996. O Kikito é o prêmio máximo concedido aos melhores artistas e diretores do Festival de Cinema em cada uma de suas edições. Chama-se assim pela escolha de sua criadora, Elisabeth Rosenfeldt, sendo conhecido, também, como o “Deus do bom humor”, e seu sorriso, conforme Daros (2008), representa um convite às pessoas, para aprender um ensinamento de sua idealizadora: “sorria com ele e aprenda a lição de sua Mãe Elisabeth: quando se tem bom humor, alegria e se faz com prazer o que se precisa fazer, então, a vida tem a beleza e a felicidade que todos buscamos” (p. 265).
Ao passar pelo grande Kikito, em direção às escadas que conectam o Palácio dos Festivais ao prédio do Museu, visualizam-se várias telas digitais, cujas imagens se alternam, exibindo os banners e cartazes de divulgação de cada uma das 50 edições do Festival de Cinema, conforme ilustrado na Figura 3.
Chama atenção o fato de muitos pôsteres de divulgação do Festival de Cinema articularem o evento a imagens das hortênsias, marcadores turísticos da cidade, associando, assim, o museu a esse ícone do turismo de Gramado, conforme pode ser visto na Figura 4.
Segundo Daros (2008), a hortênsia chegou ao município pelas mãos de Leopoldo Lied, um de seus primeiros moradores, quando Gramado ainda pertencia à cidade de Taquara, no início da década dos anos 30. Ela foi plantada, principalmente, nas encostas a fim de evitar a erosão. Contudo, a historiadora salienta que, de agente ecológico, a flor tornou-se um atrativo turístico da região:
A imprensa foi nos mostrando melhor o valor do nosso trabalho de plantio e cuidados com as hortênsias. Chamavam isso tudo de “admirável espetáculo”, que se parecia estar “num pedaço do céu” E acordamos para algo maior, que foi o TURISMO. Um turismo que germinou em nossa terra, junto às raízes das hortênsias foi plantado e pensado. (Daros, 2008, p. 229)
A partir desse fragmento textual, depreende-se que a atividade turística em Gramado foi impulsionada pelas hortênsias, flor símbolo da cidade, tendo inclusive um dia no calendário municipal reservado à sua comemoração. Rojek e Urry (1997) salientam que as práticas turísticas não implicam simplesmente a compra de bens e serviços específicos, mas envolvem o consumo de signos. Nessa direção, os autores consideram os turistas como semioticistas que buscam marcadores que confiram extraordinariedade ao lugar. Com base nos constructos teóricos desses autores, depreende-se que as hortênsias foram associadas à cidade de Gramado como práticas de representação de apelo turístico. E sua presença nos pôsteres de divulgação do Festival de Cinema exemplifica a amplitude desses sistemas representacionais no Museu do Cinema. Essas telas digitais que demarcam a entrada do museu exemplificam alguns dos inúmeros recursos tecnológicos presentes nesse espaço, os quais serão discutidos no próximo tópico.
4.2. Estratégias Museográficas e Interatividade no Museu do Festival de Cinema
A priori de apresentar as especificidades do espaço desse museu, principalmente ao que tange a maciça presença de recursos tecnológicos, é imprescindível discutir acerca dos efeitos que esses conferem à exposição, sendo que, dentre eles, avulta-se o conceito de interatividade, o qual, consoante Lupo (2021),
tem sido amplamente utilizado como premissa para a estruturação institucional de museus, sendo comumente introduzido no espaço museológico nas décadas recentes. A museografia interativa frequentemente aparece como alternativa para a apresentação de acervos formados a partir de bancos de dados digitais, participando ativamente da constituição de museus encarados como centros de referências e da criação das narrativas museais. (p. 401)
Nesse sentido, entrevê-se que a museografia interativa estabelece-se como alternativa para irrupção dos chamados “museus sem acervo”, pela recorrente dificuldade em conformar um conjunto de bens para a exposição, como no caso do Museu do Futebol, no Rio de Janeiro, conforme exemplifica Lupo (2021), despontando-se, também, como uma oportunidade para apresentar a crescente diversidade de temas considerados como objeto de musealização e patrimonialização.
Os acervos digitais que passam a constituir muitos dos museus do tempo hodierno vêm conferindo, também, a maior participação do público com o conteúdo exposto, pois “a interatividade surge como mediadora fundamental para garantir a relação entre o museu e seu público, sugerindo e estimulando a participação ativa dos visitantes nos processos de significação empreendidos pela instituição museal” (Lupo, 2021, p. 405).
A respeito do Museu do Festival de Cinema, dentre suas estratégias museográficas digitais, destaca-se uma linha de tempo complementada por painéis explicativos para as respectivas datas assinaladas (Figura 5), além de sistemas de recepção acústica, disponíveis aos visitantes para apresentar tanto a história do festival, como o surgimento e desenvolvimento da sétima arte no país e no mundo.
No painel “Festival em Décadas”, observa-se a presença de recursos audiovisuais que, por meio um conjunto de cinco telas, apresentam as premiações e fatos relevantes do Festival do Cinema em cada uma das cinco décadas de sua história (Figura 6).
Outra estratégia comunicacional são as telas digitais, apresentando destaques da mídia para cada uma das edições do Festival, exibindo os cartazes dos filmes que foram premiados ao longo de meio século do evento (Figura 7).
Ademais das estratégias interativas citadas, chama a atenção a presença de um quiz interativo (Figura 8), com perguntas sobre cinema e artistas nacionais, onde o público participa girando a peça onde está inscrito o questionamento.
Essa mudança no formato das exposições que valoriza a participação do público por intermédio da interatividade tecnológica está relacionada, também, às dinâmicas que vêm ocorrendo no meio social, que passam a dar ênfase à cultura oral, incitando os museus, conforme Lumley (1988), a deixarem de ser “silenciosos”. Para esse autor, muitos desses espaços converteram-se em museus híbridos, combinando telas com tabelas e dispositivos interativos, a fim de instaurar o hiper-realismo e, também, para que a participação prevaleça sobre a observação, com vistas a torná-los mais atrativos para uma ampla audiência, principalmente para o público jovem.
Vale ressaltar, ainda, que essa mudança que vem ocorrendo nos museus, no sentido de uma hibridização - que conforme Canclini (1990/2006) pode ser entendida como processos socioculturais onde estruturas que existem de forma isolada ou separadas como, nesse caso, a mídia e o Museu, combinam-se para gerar novas práticas - está sendo impulsionada na contemporaneidade, pela chamada “cultura de participação”, a qual, segundo Jenkins (2015), refere-se ao fomento do engajamento e da participação da audiência nas relações entre produtores e consumidores de conteúdo.
4.3. Ah, se o Cine Embaixador Falasse…
O projeto museográfico também concede destaque à história da implantação do cinema na cidade de Gramado, desde os seus primórdios, com o Cine Splendid, passando pelo Cine Embaixador (Figura 9), até ao prédio do Palácio dos Festivais.
Simultaneamente, utilizam-se cartazes e publicações da imprensa local que exibem os apelos do poder público da época, convocando a comunidade gramadense para garantir a continuidade do evento (Figura 10).
Ao refletir-se acerca das narrativas escritas nesses cartazes, à luz das lentes teóricas dos estudos culturais, depreende-se que, por meio de estratégias de representação - as quais, segundo Hall (2013/2016), envolvem o emprego de signos e imagens para produção e o compartilhamento de significados na cultura -, o governo municipal representa os gramadenses como sujeitos simpáticos ao Festival, o qual é representado como fundamental para a economia da cidade de Gramado. Apropriando-se de Hall (2013), quando o autor assinala que as identidades são construídas no interior da linguagem e por estratégias representacionais, é possível inferir que o Museu convoca os moradores locais a desenvolverem laços de pertencimento com a cultura do cinema em Gramado.
No entanto, são recentes as iniciativas do poder público no que concerne à participação da comunidade local no Festival de Cinema. Visto que, somente no ano de 1997, na 34.ª edição do evento, observa-se a intencionalidade de se estabelecer um elo entre o Festival e a comunidade, com o projeto Cinema nos Bairros, propondo-se sessões de cinemas para serem exibidas nos bairros da cidade (Figura 11).
Ressalta-se que a expografia do museu não apresenta fotos ou informações mais detalhadas que ilustrem esse momento de integração da comunidade ao evento. Logo, ao refletir-se sobre as dimensões educativas desse museu, depreende-se que um dos seus principais efeitos pedagógicos é acionar a comunidade para apoiar e comprometer-se com a manutenção do Festival do Cinema que, por meio das contribuições dos moradores e de empréstimos da Prefeitura, converteu o Cine Embaixador no Palácio dos Festivais. Esses ensinamentos que o museu busca difundir aos seus visitantes acerca do Festival de Cinema, da cidade de Gramado e de seus moradores, são construídos sob a égide da memória nostálgica coletiva, a qual, segundo Hewison (1999), muitas vezes, subverte aspectos negativos dos fatos, com o propósito de harmonizar crises e reforçar uma identidade unificada para o local.
Assim, conforme Chagas (2006), os museus são espaços políticos, de memórias e de silêncios e não podem ser considerados como instâncias artístico-culturais “inocentes”, haja vista que, além de comunicar fatos do passado, também “naturalizam formas de ver o mundo, que legitimam, hierarquizam e ordenam culturas e identidades” (Machado & Zubaran, 2013, p. 137). Nessa direção, o Museu do Festival de Cinema de Gramado cria narrativas que privilegiam alguns fatos em detrimento de outros, como é o caso dos silêncios sobre a participação da própria comunidade na construção das memórias do cinema na cidade de Gramado.
4.4. O Kikito e Sua Marca Para a Cidade de Gramado
É fundamental examinar, ainda, uma última estratégia expográfica desse museu, aquela que trata do Kikito, o prêmio máximo do Festival de Cinema. Para apresentar a história da estatueta do Oscar brasileiro, o Museu exibe, em uma tela, um vídeo protagonizado pelo Secretário Municipal de Turismo da época, Romeu Dutra, e, também, por Orival da Silva Marques, que trabalhou no Artesanato Gramadense com Elisabeth Rosenfeldt. Além do vídeo, na parede contígua à tela, também se apresenta um painel com biografia do conhecido “Deus do bom humor” (Figura 12).
A narrativa do vídeo realça a importância dessa escultura não só para o Festival de Cinema, como também para cidade de Gramado, conforme se ilustra através da Figura 13, Figura 14 e Figura 15.
As imagens do vídeo evidenciam que a cidade de Gramado, com o advento do Festival de Cinema, construiu mais um signo identitário, o Kikito. A importância da estatueta para o município é reforçada, inclusive, por suas réplicas produzidas nas tradicionais fábricas e lojas de chocolate e levadas pelos turistas no retorno às suas casas. Além disso, encontra-se a presença de várias delas pela cidade, reiterando a ideia de que Gramado é a cidade de Kikito, como pode ser visto na sequência de imagens a seguir
(Figura 16, Figura 17 e Figura 18), retiradas desse vídeo exibido no museu.
Retornando as teorizações de Lumley (1988), quando explica que o museu pode ser entendido como um meio de comunicação e, apropriando-se de Jenkins (2006/2009), quando realça a presença de uma cultura de convergência na contemporaneidade, caracterizada pelo fluxo de conteúdo entre múltiplos suportes midiáticos, é possível observar que o Museu do Festival de Cinema de Gramado se impõem como um veículo de comunicação midiático que articula o apelo turístico de Gramado ao Festival de Cinema e, principalmente, ao Kikito. Vale destacar, nesse contexto que, inclusive, a logomarca do museu é representada por um Kikito estilizado (Figura 19).
Portanto, na narrativa expográfica criada no Museu do Festival de Cinema de Gramado, o Kikito é representado como um ícone da cidade de Gramado e do Festival de Cinema e, neste sentido, torna-se também um produto turístico, que maximiza a potencialidade turística desse município.
Ressalta-se, ainda, que na parte do Museu destinada a apresentar os artistas e diretores que foram premiados ao longo das cinco décadas do evento, evidenciam-se outros prêmios além do Kikito (Figura 20 e Figura 21).
Dentre os troféus apresentados, chama atenção aquele intitulado “Troféu Cidade de Gramado”, que homenageia pessoas ligadas ao Festival e que de alguma forma contribuíram para a divulgação da cidade. Nesse sentido, o Festival conecta-se ao turismo local, reiterando a articulação entre a cidade, o Festival de Cinema e o Museu do Festival, numa espécie de movimento sinérgico que se evidencia, também, no Projeto de Lei do Executivo - PLE 042.15 (2015), que estabeleceu os marcos legais para a implantação desse museu.
Ressalta-se que determinadas representações como “a capital nacional do cinema”, “a cidade das luzes”, “a cidade do Kikito”, produzidas e disseminadas pelo Festival de Cinema e pelo Museu do Cinema, são também apelos turísticos que criam desejos e que vão ao encontro do conceito de consumo cultural, proposto por Canclini (1993), entendido como “o conjunto de processos de apropriação e usos de produtos nos quais o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e de troca ou em que ao menos estes últimos se configuram subordinados à dimensão simbólica” (p. 34). Logo, para o público visitante do Festival e do Museu, essas representações culturais e simbólicas potencializam o desejo de muitas pessoas em visitar a cidade de Gramado.
5. Considerações Finais
Nesta análise, que elegeu como objeto de estudo o Museu do Festival de Cinema de Gramado e que teve por escopo suscitar reflexões a despeito das estratégias representacionais acionadas por esse museu na comunicação com seus visitantes, observou-se que essa instância artística cultural, além de acionar as memórias do Festival de Cinema de Gramado, também exerce uma função educativa e midiática.
Acerca das estratégias representacionais acionadas por esse Museu, destaca-se a interatividade e a ampla utilização de recursos tecnológicos, que tornam o visitante um explorador ativo do acervo museal, na perspectiva da cultura da participação, na qual o público vem passando a interagir cada vez mais com os produtores de conteúdo.
Além disso, as análises empreendidas demonstraram uma grande articulação cultural entre o Museu, o Festival e o turismo cultural local, produzindo ícones e símbolos que interagem e reforçam a visão da cidade de Gramado como um destino turístico.
Por fim, salienta-se que por inscrever-se no campo teórico dos estudos culturais, esse estudo não buscou produzir explicações totalizantes e unidimensionais sobre o Museu do Festival de Cinema de Gramado, mas propôs-se a chamar a atenção sobre a importância de suas narrativas expográficas junto ao público visitante para o incremento do Festival do Cinema e do turismo cultural na cidade de Gramado.