1. Introdução
A artroplastia da anca (AT) é das cirurgias mais comuns em ortopedia (Konopitski et al., 2023; Ramezani et al., 2022), estimando-se que no ano de 2030 se realizem cerca de 635 000 cirurgias anualmente (Learmonth, 2007). É um procedimento altamente eficaz, que contribui para o alívio da dor e o aumento da função física, com impacto na condição de vida (Yin et al., 2022), especialmente em pessoas com coxartrose (Konopitski et al., 2023) ou fratura proximal do fémur (Zhao et al., 2022). Embora prevalente em idades mais avançadas, este procedimento tem-se verificado mais frequente em clientes com menos de 30 anos, ainda que com resultados variáveis (Konopitski et al., 2023).
Tendo evoluído na sua técnica ao longo dos últimos anos (Konopitski ET AL., 2023; Ramezani et al., 2022), a AT ainda representa um elevado custo económico nos sistemas de saúde (Lavernia, Hernandez & Rossi, 2007). Ainda assim, é relativamente consensual que os clientes submetidos a AT tradicional costumam ter uma preparação deficiente no período pré-operatório, levando a complicações pós-operatórias, nomeadamente ineficaz controlo da dor, exercícios de reabilitação mal realizados e frequentes luxações da prótese após a alta (Zhong et al., 2021).
A alta prevalência das lesões da anca e de AT, levam a uma maior procura pela garantia da qualidade e segurança cirúrgica, assim como uma preocupação pela intervenção no período perioperatório e na qualidade de vida da pessoa (Meng & Yu, 2022). Por outro lado, na sua revisão sistemática, Konopitski et al. (2023) verificam que, embora exista uma evolução clara nas técnicas da realização deste procedimento, -como o desuso de cimento, o tipo de abordagem e a robótica- com aumento da longevidade da prótese da anca, ainda assim não se verificam resultados clínicos mais positivos.
Neste sentido, ao longo dos anos apura-se um crescimento do número de estudos e projetos de intervenção no período perioperatório, como o programa Enhanced Recovery after Surgery (ERAS®) (Yin et al., 2022) ou programas de cirurgia fast-track (Zhao et al, 2022; Zhong et al., 2020). Estes consistem, de uma forma geral, em intervenções multidisciplinares no período perioperatório ao nível da educação, gestão e alívio da dor, correta avaliação pré-operatória (incluindo avaliação nutricional), exercícios de reabilitação, intervenção precoce pós-operatória, apoio nutricional e apoio psicológico (Zhao et al., 2022; Zhong et al., 2020; Yin et al., 2022). Vários destes programas, apontam nas suas equipas multidisciplinares a ação de Enfermeiros Especialistas de Reabilitação (EER). De facto, a intervenção precoce do EER após a cirurgia demonstra uma melhoria do estado psicológico, melhor atenção e cuidado aos exercícios de reabilitação, contributo na gestão da dor e um progresso mais linear no plano de reabilitação (Zhao et al., 2022).
Em Portugal, a Ordem dos Enfermeiros refere-se ao EER como o profissional que procura o diagnóstico precoce e o desenvolvimento de ações preventivas de reabilitação, prevenindo complicações e evitando incapacidades, de forma a promover a manutenção ou recuperação da independência e funcionalidade da pessoa (Ordem dos Enfermeiros, 2010). Desta forma, a sua ação demonstra-se essencial em programas de recuperação (ou manutenção) da funcionalidade, inclusive aqueles direcionados ao cliente cirúrgico.
Esta investigação assenta, assim, numa preocupação em conhecer o estado de arte e justificar a criação e implementação de programas de enfermagem de reabilitação no período perioperatório da pessoa submetida a AT. Desta forma, e dada a necessidade de conhecer e sumarizar o conhecimento existente relativamente ao benefício da intervenção da enfermagem de reabilitação no perioperatório da pessoa submetida a AT, foi utilizada a metodologia Rapid Review (RR).
2. Metodologia
Foi conduzida uma RR seguindo as diretrizes referidas por Khangura et al. (2012) e as guidelines da Cochrane Collaboration`s sumarizadas por Garritty et al. (2021), também recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (Tricco, Langlois & Straus, 2017). As RR surgiram como uma ferramenta metodológica eficaz para obter evidências mais céleres e são consideradas parte das metodologias de síntese do conhecimento. Este tipo de revisão permite simplificar/limitar alguns passos da revisão tornando-a mais eficiente em termos de recursos e tempo na sua realização. Além disso, as RR devem ser orientados pela necessidade de evidências oportunas para fins de tomada de decisão (Trico et al., 2015), como é o caso das motivações que dão origem ao presente estudo. Este tipo de revisão rápida permite fazer uma avaliação do que já se sabe sobre um determinado assunto recorrendo a algumas das orientações utilizadas nas revisões sistemáticas da literatura para analisar criticamente a evidência existente (Garritty et al., 2021).
A estratégia metodológica foi definida seguindo os seguintes passos: elaboração da questão de partida, identificação dos descritores adequados, delimitação dos critérios de inclusão e exclusão, identificação da informação nos artigos que dá resposta à questão de partida, análise dos artigos, sumarização da informação pertinente e discussão da mesma.
Após envolver todos os investigadores, nomeadamente profissionais de enfermagem na prática clínica e peritos na área, definiu-se a seguinte questão de investigação, tendo por base o acrónimo PI(C)O (Population, Intervention e Outcome): Quais os benefícios (Outcome) da intervenção do EER (Intervention) no período perioperatório da pessoa submetida a AT (Population)?
Inicialmente, para identificar os descritores mais adequados, três revisores realizaram leitura de literatura cinzenta e artigos relevantes sobre a temática, pesquisados em motores de busca como Google e mais especificamente Google Scholar. De seguida, realizou-se uma pesquisa estruturada através da plataforma ESBCOhost, restringindo a mesma às bases de dados CINAHL, MEDLINE Complete a 25 de fevereiro de 2023. Na pesquisa foram utilizados descritores indexados no MeSh, CINAHL Headings e linguagem natural, emergindo a seguinte equação de pesquisa: (MH "Rehabilitation Nursing") OR (MH "Rehabilitation+") OR nurs*) AND (MH "Arthroplasty, Replacement, Hip") OR ("HIP PROSTHESIS") AND (MH "Perioperative Care+").
Os critérios de inclusão e exclusão utilizados na seleção dos artigos foram definidos com o contributo de todos os autores e estão descritos na tabela seguinte:
A pesquisa inicial na EBSCOhost, foi realizada por três revisores. Após aplicação dos critérios língua portuguesa e inglesa, limitação temporal e texto integral obtiveram-se vinte e três (23) artigos. Destes, realizou-se triagem através da leitura do título e resumo por dois revisores sendo selecionados catorze (14) artigos. Outro autor examinou todos os artigos excluídos, para chegar a um ponto de consenso e resolver eventuais conflitos, havendo concordância quando à seleção realizada.
Um dos revisores filtrou todos os artigos de texto completo incluídos e um segundo revisor filtrou todos os artigos de texto completo excluídos. A leitura cega dos catorze (14) artigos foi realizada por três revisores após a qual, aplicando os critérios de inclusão e exclusão foram rejeitados dois (2). No final foram selecionados doze (12) artigos, existindo heterogeneidade na tipologia de estudos considerados para extrair dados e que permitiam dar resposta à questão de investigação. A estratégia de pesquisa encontra-se no fluxograma Prisma apresentado na figura 1.
Foi criado um formulário para extração dos dados que foi utilizado por todos os autores a fim de calibrar e testar o mesmo. Três revisores realizaram a extração dos dados, utilizando o formulário criado e uma tabela contemplando o título do artigo, autores, tipo de estudo e principais conclusões. Os restantes dois autores, verificaram a exatidão e integridade dos dados colhidos, certificaram a confirmação da qualidade dos estudos e avaliaram o risco de viés, aplicando as ferramentas disponibilizadas pela Joanna Brigs Institute (Apóstolo, 2017). Os doze estudos apresentaram baixo risco de viés.
Os dados foram sumarizados na tabela 2, apresentada do capítulo seguinte.
3. Resultados e Discussão
Os dados que dão resposta à questão de partida são neste capítulo sintetizados e organizados. Foi ainda realizada uma discussão dos mesmos face ao conhecimento atual sobre a problemática.
A AT é comumente considerada um dos procedimentos mais frequentes e com maior expressão para o tratamento de osteoartrose, da fratura de anca e da dor, com elevada expressão no presente e futuro. Considerando os artigos analisados neste estudo, analisaram-se os benefícios, o tipo de intervenções e os outcomes avaliados nos estudos referentes a programas de reabilitação à pessoa submetida a AT. Verificou-se, ainda, que alguns estudos (Brennan & Parsons, 2017; Fernandes et al., 2017; O’Reilly et al., 2018; Prinsloo & Keller, 2022; Wainwright et al., 2020) abordam a AT e AJ dada a sua importância na comunidade, o que sugere uma transversalidade das intervenções de reabilitação.
Numa perspetiva mais macro, três conceitos evidenciaram-se nesta análise - pre-habilitation (Szilágyiné Lakatos et al.,2022), fast-track (Zhang & Xiao, 2020) e as guidelines da ERAS Society® (Ping, Ling & Dong, 2021; Wainwright et al., 2020). Estes conceitos, já explorados no início deste artigo, evidenciam as áreas de maior foco de intervenção de reabilitação e, embora tratados de forma independente, encontram-se intimamente ligados. De facto, as guidelines da ERAS Society® integram os princípios dos conceitos pre-habilitation e fast-track como medidas a implementar para uma recuperação mais célere e segura (Wainwright et al., 2020).
A pre-habilitation é referida por Gonçalves e Groth (2019) como um processo que permite aumentar a capacidade funcional e psicológica da pessoa através de intervenções iniciais de pré-habilitação, focam-se primariamente na melhoria da função física no período pré-operatório para diminuir os efeitos negativos do processo cirúrgico no pós-operatório.
Ao nível das intervenções, a evidência sugere que se dividem em dois momentos do perioperatório da pessoa submetida a AT - o pré-operatório e o pós-operatório.
No momento pré-operatório, associado ao conceito de pre-habilitation, os estudos demonstram um período desde as oito (8) semanas prévias ao procedimento, como no caso do estudo de Fernandes et al. (2017), até à admissão em bloco operatório. A análise permite agrupar as intervenções de reabilitação em sessões de educação para a saúde e em sessões de ensino e realização de exercícios de reabilitação. Ao nível das intervenções educativas, estas encontravam-se direcionadas para o aumento do conhecimento sobre a cirurgia em si e às suas possíveis complicações, avaliação psicológica e avaliação nutricional, bem como ensino de exercícios de reabilitação respiratória, motora e treino de AVD (Fernandes et al., 2017; Gurcayir & Karabulut, 2017; Ping et al., 2021; Zhang & Xiao, 2020;). Nos estudos que evidenciaram intervenções mais especificas no âmbito das sessões de reabilitação, a sua frequência por vezes está pouco clara, sendo possível observar desde frequências bissemanais a diárias. Alguns autores, fazem referência a programas pré-operatórios incluindo sessões com exercícios de reabilitação e ensinos sobre os mesmos, contudo não especificam o conteúdo (Brennan& Parsons, 2017; O’Reilly et al., 2018; Torisho et al., 2019). Por sua vez, outros estudos referem mais pormenorizadamente programas pré-operatórios que contemplam sessões de reabilitação motora com exercícios de aquecimento, circuito programado, arrefecimento, exercícios com pesos (a imitar funções da rotina diária), alinhamento correto da anca-joelho-pé, treino de AVD, sentar e marcha (Fernandes et al., 2017; Gurcayir & Karabulut, 2017) e ainda reabilitação respiratória com exercícios de respiração diafragmática e ensino da tosse (Gurcayir & Karabulut, 2017).
No período pós-operatório, associado ao conceito de fast-track, verifica-se a utilização de exercícios de reabilitação respiratória, posicionamentos anti-álgicos, anti-luxantes e exercícios de reabilitação motora (Schultz et al.,2017), sendo dado especial ênfase a estes últimos. Nestes inserem-se o levante precoce, a transferência cama-cadeira, a marcha (utilização de auxiliares de marcha), treino de escadas, treino de AVD e adaptação à realidade no domicílio (Gurcayir & Karabulut, 2017; Schultz et al., 2017; Zhang & Xiao, 2020).
Dada a amplitude do objetivo desta revisão, foram considerados benefícios todos os outcomes avaliados pelos estudos analisados. Desta forma, verifica-se uma grande dispersão de resultados, os quais agrupámos em outcomes de saúde, de eficiência e gerais.
Quanto aos outcomes de saúde, os estudos das intervenções de reabilitação no período perioperatório sugerem um aumento do conforto, da força muscular, da independência e da funcionalidade da pessoa (especialmente ao nível da flexão de anca), assim como a diminuição das consequências da imobilidade, da dor, da rigidez articular e da ansiedade (Gurcayir & Karabulut, 2017; Meng & Yu, 2022; Ping, Ling & Dong, 2021; Prinsloo & Keller, 2022).
Relativamente aos outcomes de eficiência, a maioria da evidência sugere que os programas de reabilitação reduzem o tempo de internamento entre 2 a 5 dias (Brennan & Parsons, 2017), não sendo consensual em todos os estudos. Surge, ainda, evidência relativa à eficiência económica (custo-benefício favorável) (Fernandes et al., 2017; Zhang & Xiao, 2020) e à prevenção de complicações futuras, como fenómenos tromboembólicos (Meng & Yu, 2022).
Quanto aos outcomes gerais relacionados com o cliente, verificam-se aumentos na qualidade de vida da pessoa, na sua satisfação relativa aos cuidados de saúde (Ping, Ling & Dong, 2021; Prinsloo & Keller, 2022), bem como do seu conhecimento em relação ao circuito cirúrgico e após a alta.
Os dados colhidos nos estudos são corroborados por outros autores, existindo evidência que a implementação de programas de reabilitação precoces no pré-operatório aumenta o conhecimento das pessoas sobre a cirurgia, a sua motivação e a adesão aos programas de reabilitação conduzindo a uma maior segurança e efetividade dos mesmos (Heering & Engelke, 2017). Se a intervenção de reabilitação no pré-operatório -pre-habilitation - é fundamental, a sua continuação no pós-operatório vai ser fulcral para garantir os outcomes pretendidos pelos programas de fast-track, nomeadamente no que diz respeito à redução do tempo de internamento, à mobilização e levante precoces, que conduzem à rápida recuperação da independência funcional pretendida (Mori et al., 2017).
Importa referir que autores como Husted et al. (2011) referem que a implementação destes programas tem algumas limitações na maioria dos hospitais, estas, encontram-se relacionadas com a falta de profissionais de saúde, nomeadamente com formação especializada, cuidados de saúde baseados na imobilidade e levante tardio, assim como défice de critérios de alta pouco estruturados.
4. Considerações Finais
A revisão conduzida permitiu de forma eficiente dar resposta ao objetivo do estudo reunindo-se evidência sobre a intervenção do EER na pessoa com AT e os seus principais benefícios. A intervenção na área da reabilitação é vasta e tem imensos benefícios na recuperação destas pessoas. Numa perspetiva de utilização da investigação para a prática dos autores, a evidência sugere que os benefícios produzidos pela intervenção de reabilitação justificam e corroboram a necessidade de criar equipas de reabilitação, em serviços de cirurgia, onde o EER se insere, produzindo ganhos em saúde e incrementando a eficiência económica das instituições de saúde.
O EER, no âmbito das suas competências tem como objetivo ajudar a pessoa submetida a AT a restaurar a funcionalidade, capacitando-a para o autocuidado e maximizando o seu potencial para que consiga uma recuperação o mais precocemente possível. Deste modo, promove a sua integração na vida social e familiar. Estes cuidados diferenciados, constituem indicadores sensíveis aos cuidados de enfermagem de reabilitação e como os estudos corroboram, aumentam a qualidade de vida, o bem-estar e a satisfação com os cuidados de enfermagem. (Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Reabilitação, 2018).
Como limitações deste estudo verifica-se um diminuto número de estudos que contemplam os benefícios das intervenções de reabilitação na pessoa submetida a AT. Tal facto, sugere assim, uma emergência da realização de mais estudos na área, incluindo a caracterização de programas de reabilitação estruturados dirigidos à população estudada, assim como os profissionais que as realizam. Deste modo, julga-se importante a incrementação de estudos sobre a efetividade e os ganhos em saúde das intervenções dos EER, em populações acompanhadas por estes profissionais em todo o período perioperatório.
Os estudos analisados contemplam, maioritariamente, equipas de reabilitação multidisciplinares, nas quais se inserem médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e enfermeiros (incluindo EER). Ainda assim, e tendo em conta as várias intervenções contempladas nos estudos, verifica-se que estas vão ao encontro das competências do EER na sociedade onde se inserem os autores, pelo que se sugere a sua mais-valia na implementação de programas semelhantes.
Importa também considerar a variabilidade de métodos e escalas de avaliação utilizados para medir resultados das intervenções de reabilitação, os quais se encontram maioritariamente associados à funcionalidade, independência, conforto e qualidade de vida da pessoa. Na análise deste ponto, sugerimos o potencial benefício de estudos futuros identificarem estratégias comuns de avaliação de resultados, de forma a possibilitar uma análise mais objetiva.
Por último, ao realizar revisões de estudos qualitativos e quantitativos como esta, é possível sintetizar o conhecimento existente sobre determinada área, e por outro lado, aumentar o nível de evidência científica. No caso da Rapid Reviw, esta metodologia permitiu ter acesso a esta evidência de forma mais célere, para dar resposta às necessidades dos investigadores no contexto da clínica.