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Economia Global e Gestão

 ISSN 0873-7444

     

 

Evolução recente da situação social no Brasil

Ladislau Dowbor

 

Em 2006, a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou que o governo dispunha de forte aprovação dos segmentos mais pobres, mas foi apenas com o atraso natural dos processos de pesquisas que surgiram os números reais sobre a evolução das condições de vida do brasileiro. Recentemente, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) de 2006 e a Síntese dos Indicadores Sociais 1996-2006, um balanço dos últimos 10 anos. A imagem que emerge daí é relativamente clara e vale a pena ser analisada. Ela pode explicar não apenas os votos da última eleição como apontar o caminho que temos pela frente.

O dado que mais salta aos olhos é a criação de 8,7 milhões de postos de trabalho durante a primeira gestão de Lula. Isto representa um avanço imenso para um país em que grande parte da população se vê excluída do direito de contribuir com o desenvolvimento geral. Entre 2005 e 2006, este avanço foi ainda mais expressivo: 2,1 milhões de pessoas entraram no mercado de trabalho, um aumento de 2,4%. O destaque foi a expansão do emprego entre as mulheres, que registrou crescimento de 3,3,%. Entre os homens, o aumento foi de 1,8%. A formalização também foi significativa: três em cada cinco postos de trabalho criados tinham carteira assinada. No total, 30,1 milhões de trabalhadores foram contratados com carteira assinada em 2006, um aumento de 4,7% em um ano.

Apesar do progresso apresentado, o quadro continua dramático. Como apontou o IBGE, «[no período analisado], mais da metade da população ocupada – 49,1 milhões de pessoas – continuava formada por trabalhadores sem carteira assinada, por conta própria ou sem remuneração»1.

O segundo resultado que mais chamou a atenção foi a elevação em 7,2% dos rendimentos dos trabalhadores entre 2005 e 2006. O dado, que ocupou as manchetes de todos os jornais, manteve coerência com os dos anos anteriores: desde 2003, a remuneração vem desenhando uma curva ascendente. Considerando que a desigualdade é nosso maior problema, tal índice demonstra melhoria efetiva nesse aspecto da vida dos brasileiros. O número é um reflexo direto dos avanços na criação de postos de trabalho e do aumento do salário mínimo, que teve um ganho real de 13,3% em 2006. Segundo analistas do PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego), 26 milhões de trabalhadores teriam sido favorecidos pelo aumento. Além disso, como o salário mínimo é referência para o reajuste das aposentadorias, outros 16 milhões provavelmente foram beneficiados.

Tudo isso representa um grande salto para os trabalhadores que estão na base da pirâmide econômica. Afinal, um aumento de 100 reais para uma família que tem rendimento de 10 000 reais não é muito significativo. Mas 100 reais para pessoas que têm de sobreviver com pouco mais do que isso por mês representa alívio imenso e torna-se um diferencial na hora de comprar um alimento melhor ou um medicamento necessário.

Outro ponto interessante é a avaliação dos rendimentos. Desta vez, a PNAD utilizou o domicílio como referência e não somente o trabalhador. Esse método permitiu agregar todas as fontes de renda da família e apresentou como resultado um aumento da renda média domiciliar de 5% em 2005 e de 7,6% em 2006. É bom lembrar, para quem tem menos intimidade com este tipo de números, que um aumento de 7% ao ano significa que o rendimento dobra a cada dez anos.

Detalhando a cifra acima, vemos que no Sudeste a renda do trabalhador cresceu 6,6% e no Nordeste subiu 12,1%. O mesmo acontece no rendimento por domicílio: no Sul e no Sudeste o crescimento foi de 7% e no Nordeste chegou a 11,7%. Além disso, o rendimento domiciliar médio nordestino correspondia, em 2005, a 52,8% do rendimento do Sudeste e, em 2006, passou a ser 57,8%. Ou seja, não só melhorou o conjunto, como houve um crescimento acelerado na região mais atrasada, cujo avanço é essencial para reequilibrar o cenário nacional. Em outros termos, pela primeira vez a desigualdade regional está sendo corrigida. E com números significativos, apesar de insuficientes. A diferença também está diminuindo entre homens e mulheres. Elas já representam 47,7% das 90 milhões de pessoas ocupadas hoje no país e os dados das pesquisas apontam um aumento salarial considerável. A remuneração da mulher relativamente ao homem era de 58,7% em 1996, 63,5% em 2004, 64,4% em 2005 e 65,6% em 2006.

Nota-se uma lenta progressão, partindo de um nível que já é em si extremamente desigual. Ou seja, aqui também a direção é positiva, mas precisamos de muito mais.

Ao mesmo tempo, constatamos, com satisfação, que as mulheres estão progredindo rapidamente nos estudos. Segundo a PNAD, 43,5% delas concluíram o ensino médio, enquanto apenas um terço dos homens possui este grau de instrução. O ensino superior também está mais feminino: em 1996 elas representavam 55,3% dos estudantes e em 2006 eram 57,5%.

Porém, a situação da mulher é particularmente dura quando se analisa a desagregação familiar. Na Síntese dos Indicadores Sociais, o número de famílias caracterizadas como «mulher sem cônjuge com filhos» passou de 15,8 milhões em 1996 para 18,1 milhões em 2006. Como há um pouco menos de 60 milhões de famílias no país, isto significa que quase um quinto delas são sustentadas pelas mães, que têm uma decisão cruel a tomar: ou não trabalham e não têm renda ou trabalham e enfrentam grandes dificuldades para cuidar dos filhos. Entre trabalho, estudo e ter de dar atenção para a família, as mulheres ficam sobrecarregas, no limite do suportável. A Síntese de Indicadores Sociais comenta que «com relação à jornada média semanal despendida em afazeres domésticos, verifica-se que as mulheres trabalham mais que o dobro dos homens nessas atividades (24,8 horas)».

Ou seja, apesar de constatarmos avanços na remuneração relativa, nos estudos e na força de trabalho, tudo continua muito injusto. Os desequilíbrios estruturais herdados são simplesmente muito grandes.

Essa situação é um dos alvos centrais do programa Bolsa-Família, cujo sucesso se deve em grande parte ao fato das mulheres gerirem melhor os recursos obtidos. Aos que criticam os programas redistributivos, é bom lembrar um outro dado da PNAD, segundo o qual «cerca de 31% das famílias em que a mulher era referência viviam com rendimento mensal até meio salário mínimo per capita»2.

Outra dimensão amplamente documentada pela PNAD e pela Síntese de Indicadores Sociais é a educação. O Brasil tem 55 milhões de estudantes, 43,7 milhões na rede pública e 11,2 milhões na rede privada. Se somarmos a eles todos professores e funcionários administrativos, concluímos que quase um terço da população do país está envolvido com o ensino.

A maior expansão quantitativa da educação ocorreu na segunda gestão de Fernando Henrique Cardoso. E os avanços continuam. Em 1996, o índice dos que não frequentavam a escola na faixa etária de 5 a 6 anos era 35,8%. Em 2001, diminuiu para 23,8%. Em 2006, atingiu 14,7%. No grupo entre 7 e 14 anos, o mesmo indicador caiu de 8,7% em 1996 para 3,5% em 2001 e para apenas 2,3% em 2006. Entre os alunos de 15 e 17 anos, 30,5% não estavam na escola em 1996. Em 2006, eram 17,5%. O tempo de estudo entre as pessoas acima dos 10 anos de idade também subiu, registrando aumento de 3% de 2005 para 2006, e alcançou a média de 6,8 anos nos bancos escolares.

Já o ensino superior experimentou um crescimento de 13,2% entre 2005 e 2006, graças à expansão das faculdades privadas. O papel público de redução das desigualdades apareceu na distribuição regional entre dos dois sistemas. Segundo a PNAD, «enquanto nas regiões Norte e Nordeste, 41,9% e 36,6% dos estudantes de nível superior frequentavam a rede pública, nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, estes percentuais eram de 18,2%, 22,1% e 26,5%, respectivamente». Como no caso dos demais indicativos, constata-se que a direção está correta, mas o atraso a recuperar é imenso.

Entre os que já estão no mercado de trabalho, a PNAD também constatou um aumento da escolaridade. As pessoas com 11 anos ou mais de estudo eram apenas 22% em 1996. Dez anos depois, atingiram 38,1%. O esforço educacional das mulheres foi o principal responsável pela progressão. Na outra ponta, temos 15 milhões de analfabetos com mais de 10 anos de idade. Nesse caso, a redução foi de apenas 0,6%. Já o analfabetismo funcional, que atingia 23,6% das pessoas com mais de 10 anos, diminuiu 1,3%. Evidentemente, entre os dois extremos está a imensa massa dos subqualificados.

Se resumirmos toda a evolução apontada acima, constatamos uma forte expansão do emprego, principalmente com carteira assinada, o aumento da renda do trabalhador e uma progressão significativa da escolaridade e da remuneração femininas, além da ampliação da população ocupada com 11 ou mais anos de estudo e a redução do trabalho infantil, entre outras tendências que não comentamos aqui. Estes números são coerentes entre si e convergem para uma conclusão evidente: muito está sendo feito e os resultados apareceram rapidamente.

Alguns apresentam essas políticas como assistencialistas, mas isso não faz sentido. Os 12,5 bilhões de reais destinados à agricultura familiar são um apoio e um estímulo à produtividade e os 8,5 bilhões do Bolsa-Família são um excelente investimento na próxima geração, que estará melhor nutrida. Junto com esses programas, o aumento do salário mínimo passou a dinamizar a demanda popular e a estimular pequenas atividades produtivas locais3. Ou seja, estamos atingindo um limiar a partir do qual a renda gerada na base da sociedade começa a se transformar em mecanismo de propulsão própria. O que está em jogo aqui não é apenas ajudar a massa de excluídos deste país; é gerar uma dinâmica em que renda, educação, apoio tecnológico, crédito e outras iniciativas organizadas permitam um rompimento real com as estruturas que geraram e reproduzem a desigualdade. A pressão sobre este governo é positiva, mas isto quando se leva em consideração os avanços realizados e se reivindica a ampliação das políticas, não a sua desmoralização4. Afinal, o que se torna evidente ao analisarmos estes dados é que a população menos favorecida do país votou em Lula não por desinformação, mas por sentir que sua situação estava melhorando.

Falar mal do governo entre nós é quase um reflexo, acompanhado de cerveja e amendoim. Falar bem dele parece até suspeito, como se fosse menos «objetivo». Porém, muito mais importante é entender o que está acontecendo. Por trás do palco da política oficial que a imprensa nos apresenta a cada dia – e que é o lado mais visível dos grandes discursos –, há o imenso trabalho organizado de milhares de pessoas que estão tocando programas e tirando leite de pedra numa máquina de governo que, por herança histórica, foi estruturada para administrar privilégios, e não para prestar serviços. Do ponto de vista econômico, maximizar a utilidade dos recursos do país envolve o aumento da renda dos mais pobres. Isto vale tanto do ponto de vista social, em termos de satisfação gerada, como em geração de demanda e dinamização das atividades econômicas: o pobre não faz especulação financeira, compra bens e serviços. Tirar as pessoas da pobreza não é caridade; é bom senso social e econômico.

 

NOTAS

1. IBGE – PNAD 2006 – <www.ibge.gov.br>. A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio constitui o principal instrumento de avaliação de como anda a situação das famílias no país. A PNAD 2006 entrevistou 410 241 pessoas em 145 547 domicílios. Tal levantamento apresenta a situação real de maneira confiável, ainda que desagregável apenas por grandes regiões ou de estados, o que encobre desigualdades locais, perdidas nas médias. Os dados estão disponíveis online, nos «Comentários 2006», em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2006/comentarios2006.pdf.

2. Ver os dados na Síntese de Indicadores Sociais 1996-2006, do IBGE, Gráfico 4.1 e páginas seguintes. O documento completo, «Síntese de Indicadores Sociais 2007 – Uma análise das condições de vida da população brasileira 2007» está disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2007/indic_sociais2007.pdf. Sobre as tendências de desagregação da família, ver o nosso artigo «Economia da Família», na seção Artigos Online do site http://www.dowbor.org.

3. Vale a pena consultar o sistema de seguimento dos 149 programas sociais distribuídos entre vários ministérios, disponível em «Geração de Emprego e Renda» no site http://www.mds.gov.br. Cada programa é apresentado com os seus objetivos e custos, além de contato para quem precisar de mais informação.

4. Para o conjunto de propostas relativas à dinamização do ‘andar de baixo’ da economia, ver «Política nacional de apoio ao desenvolvimento local», em htttp://www.dowbor.org, na seção Artigos Online.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IBGE (2006), «Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Síntese de Indicadores 2006: Comentários». http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2006/comentarios2006.pdf         [ Links ]

IBGE (2007), «Síntese de Indicadores Sociais 2007 – uma análise das condições de vida da população brasileira 2007». http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2007/indic_sociais2007.pdf.

 

Ladislau Dowbor

ladislau@dowbor.org

Doutor em Ciências Económicas (Escola Central de Planeamento e Estatística de Varsóvia), Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e consultor de diversas agênciasdas Nações Unidas. É autor de A Reprodução Social: Propostas para uma Gestão Descentralizada, O Mosaico Partido: A Economia além das Equações, Tecnologias do Conhecimento: Os Desafios da Educação, todos pela editora Vozes, além de O que Acontece com o Trabalho? (Ed. Senac) e co-organizador da colectânea Economia Social no Brasil (ed. Senac). Os seus numerosos trabalhos sobre planeamento económico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org.

Phd in Economic Sciences (Central School of Planning and Statiscs of Varsovia), Professor of Economics at the Catholic University of São Paulo, consultant to various United Nations agencies, and author of over twenty books concerning problems of economic and social development. Main publications: A Reprodução Social, Editora Vozes, Petrópolis, 2003; The Broken Mosaic: For an Economics Beyond Equations, Zed Books, London/New York 2003. Books and papers can be found (full text) on http://dowbor.org.