Apresentação do tema e objetivos do artigo
As mulheres formam, na maioria dos países, pelo menos metade do eleitorado, mas encontram-se em minoria em lugares de decisão política, mesmo em países que adotaram legislação tendente a assegurar a paridade (Freidenvall e Dahlerup 2013). Os estudos que abordam este fenómeno centram-se maioritariamente nos parlamentos nacionais, descurando o conhecimento sobre os patamares locais de governação; no entanto, é no governo local que a sub-representação política permanece globalmente mais acentuada (ONU 2019), fator que o qualifica como terreno fértil de pesquisa.
Em Portugal, espelhando a situação internacional, verifica-se uma insuficiência de estudos sobre o “poder local”2. Este artigo problematiza a relação entre ambos os fenómenos, a imparidade política entre mulheres e homens no plano local e a escassez de estudos sobre o tema.
Após o 25 de abril de 1974, Portugal assumiu o compromisso com a igualdade na representação política, percurso que teve por expoente a aprovação da Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto, designada Lei da Paridade, que estatuiu quotas, fixadas em 33,3% (DR 2006). Embora os estudos internacionais demonstrem que a introdução de quotas não é condição necessária ou suficiente para assegurar o aumento da representação política das mulheres (Freidenvall e Dahlerup 2013), em Portugal, esta medida influenciou positivamente a proporção de mulheres eleitas. Contudo, esse movimento não tem sido igual nos três patamares políticos abrangidos pela Lei da Paridade (Santos, Teixeira e Espírito-Santo 2018), destacando-se negativamente os órgãos do governo local relativamente à Assembleia da República (AR) e Parlamento Europeu (PE).
Com efeito, considerando os últimos atos eleitorais realizados em cada patamar político3, na AR a eleição de mulheres ascendeu, em 2019 (6 de outubro), a 40% (92M/230HM) (IPU 2019); no Parlamento Europeu, nesse mesmo ano (26 de maio), o valor foi superior com 43% de mulheres eleitas (9M/21HM) (PE 2019), ou seja, o limiar de paridade em vigor no momento da eleição foi ultrapassado. Nos órgãos locais - a saber, dois deliberativos, a Assembleia Municipal (AM) e a Assembleia de Freguesia (AF); dois executivos, a Câmara Municipal (CM) e a Junta de Freguesia -, verificou-se situação diversa. Em 2017, a percentagem de mulheres eleitas foi a seguinte: AM (34,6%), AF (33,2%), CM (29,2%), não estando disponível o valor percentual de mulheres eleitas para a JF (Santos, Teixeira e Espírito-Santo 2018, 28). No ato eleitoral precedente, em 2013, existem dados relativos à percentagem de mulheres eleitas nos quatro órgãos locais que totalizaram 31,1% (Tavares et al. 2016, 283)4.
Os dados disponíveis sobre o patamar local permitem verificar que a representação nos órgãos deliberativos é superior relativamente aos executivos. Nas presidências dos órgãos é muito baixa, como ilustra a CM, onde a barreira dos 10% de representação só foi ultrapassada em 2017, ano em que foram eleitas 32 presidentes (no universo de 308 municípios). Assim, apesar de a proporção de mulheres ter aumentado na política local, não acompanha a subida verificada nos demais patamares de governo, nem atingiu o objetivo mínimo fixado na Lei da Paridade, exceto na AM, permanecendo acentuadamente baixa em alguns órgãos e cargos.
Uma possível explicação para o impacto diferenciado da Lei da Paridade relaciona o desacerto desta solução legislativa perante as idiossincrasias locais. A Lei previu (art.º 8.º) uma reapreciação do impacto sobre a promoção efetiva da paridade, decorridos cinco anos da entrada em vigor, a realizar pela AR; no entanto, as duas alterações verificadas aconteceram já em 2017 e 20195. Neste âmbito, sublinha-se a possibilidade de avaliação em sede académica, quer de anteprojetos de leis a apresentar ao parlamento, ex ante (Pequito Teixeira 2009), quer do impacto de medidas legislativas através de investigação empírica, ex post (Espada 2002), o que tem ocorrido, embora as sugestões, críticas e pareceres apresentados nem sempre sejam adotados.
No que se refere especificamente às medidas de política aplicadas às desigualdades de género, sublinha-se que, apesar da curta existência dos estudos de género em Portugal, estes têm contribuído para avaliar e corrigir as políticas e seus efeitos (Torres 2016). No entanto, as investigações que abordam a política sob uma lente de género incidem maioritariamente sobre o patamar político nacional (Teixeira 2016). Significa isto que a democracia local é irrelevante para a temática da igualdade?
Esta questão espoletou a reflexão que está na base deste artigo, que explora a hipótese de as insuficiências no desenho da Lei da Paridade refletirem a falta de conhecimento sobre as especificidades locais. Para aceitar ou rejeitar a validade deste raciocínio, procurou apurar-se o que se sabe e o que deveria saber-se sobre o tema.
A procura de respostas foi realizada através do levantamento dos estudos existentes, complementado com a identificação e contacto com os/as investigadores/as significativos/as, procedimento detalhadamente descrito na secção do artigo dedicada à metodologia. Segue-se a cronologia do processo de implementação de quotas legislativas e análise do quadro legal mais amplo que influencia a representação política das mulheres localmente. Este enquadramento legislativo precede e contextualiza a revisão de literatura sobre representação política local na perspetiva de género. Procurou-se, deste modo, explicar a insuficiência dos estudos e evidenciar a necessidade de acrescentar conhecimento ao tema para aperfeiçoar a democracia local.
Ainda que apresentados resumida e parcelarmente, estes resultados constituem uma ferramenta útil para um questionamento informado sobre a sub-representação política no governo local, porque só a informação “promove a consciencialização de todos e, em particular, daqueles que beneficiam com as mudanças” (Beleza 1998, 66). A pertinência desta análise é acentuada perante a realização de eleições locais no último quadrimestre de 2021, sujeitas a um conjunto de alterações legislativas, já que se mantém atual a observação da primeira autora nacional a abordar a representação política no governo local sob a perspetiva de género: a reflexão sobre este problema está “sujeita ao ciclo das eleições” (Jordão 2003,19)!
Metodologia e dados
Foi efetuado um levantamento exaustivo da literatura sobre a representação política das mulheres no governo local, tendo a análise consistido em fazer o recorte de contributos que de forma substantiva esclareçam porque é menos equilibrada relativamente à AR e PE, patamares políticos igualmente abrangidos pela Lei da Paridade. Foi estabelecido como critério de seleção dos estudos a existência de um escrutínio prévio, que decorre da revisão anónima por pares, no caso dos artigos, e do exame científico a que estão sujeitos os trabalhos académicos (dissertações e teses). Pretendeu-se, assim, garantir a qualidade da amostra, já que o reconhecimento prévio pelos pares atesta a “credibilidade e aprovação” das fontes (Silvestre e Silvestre 2012, 47).
Como critério de pesquisa foi estabelecido que os estudos seriam recolhidos prioritariamente on-line, já que o trabalho se iniciou durante o primeiro confinamento da crise pandémica que impossibilitou o acesso a centros de documentação e bibliotecas, situação que veio acrescentar valor às características positivas já conhecidas deste meio, como a rapidez e acessibilidade.
A pesquisa bibliográfica realizou-se: (i) no Google Scholar, que reúne publicações de conteúdo científico, artigos académicos publicados em revistas científicas, contendo também as dissertações e teses dos Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP); (ii) na Biblioteca do Conhecimento Online (b-on), que acrescenta aos conteúdos anteriores publicações e e-books sem acesso livre, que disponibiliza aos seus membros. A consulta das duas bases de dados fez-se através da utilização de um conjunto de palavras-chave: Portugal, “representação política”, género, mulheres, democracia, lei, paridade, “poder local”, “Governo local”, municípios6.
Para a constituição da amostra final foram observadas várias etapas. Foram escrutinadas as primeiras 100 entradas de cada base de dados através da leitura dos resumos, de que resultaram 23 artigos/estudos. Efetuou-se a revisão das referências bibliográficas com o intuito de identificar novos títulos adequados ao tema, o que fez sobressair o conjunto de autoras e autores significativas/os para o campo em estudo, ou seja, quem é invariavelmente citada/o. Foram consultadas as respetivas páginas na Internet para apurar quais os que permanecem “investigadores activos” (Silvestre e Silvestre 2012, 48), seguindo-se o contacto via email com: Albertina Jordão, Ana Espírito-Santo, Ana Lúcia Teixeira, Diana Maciel, Lígia Amâncio, Manuel Lisboa, Maria Antónia Pires de Almeida e Maria Helena Santos. Porque verificado que, salvo exceção (Jordão 2000, 2003), os/as investigadores/as recorrem a dados secundários (resultados eleitorais oficiais), foi também contactada Sónia Tavares, na qualidade de Chefe de Divisão Jurídica e de Estudos Eleitorais da Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (DGAI/SGMAI).
O contacto direto teve por intuito confirmar se a lista de estudos sobre o tema que se apresentou a cada autor/a se encontrava completa; se estavam a desenvolver nova pesquisa; ou consideravam fazê-lo7. No caso da DGAI/SGMAI, pretendeu-se apurar se o estudo periódico “Perfil do autarca - caracterização dos eleitos locais” conheceria edição quanto aos resultados de 2017; verificar a existência de uma lista de presidentes de CM eleitos/as entre 1976 e 2017. Este procedimento revelou-se muito vantajoso porque permitiu completar a seleção de estudos, já que foram recebidos conference papers, apresentações em workshops/aulas, relatórios, que representam informação útil para identificar pistas de análise e observar a relevância do tema na academia, bem como conhecer os contornos alargados do tema. Foi também recebida a lista sistematizada pela DGAI/SGMAI de presidentes de CM, o que permitiu ultrapassar discrepâncias encontradas nos estudos quanto ao número de mulheres eleitas e sistematizar os dados que se apresentam na Tabela 1 (em anexo), com o número e percentagem de mulheres eleitas presidentes de Câmara por distrito (1976-2017)8. Estes contactos revelaram, também, que há trabalhos em processo de publicação e outros em perspetiva, principalmente pela curiosidade científica que desperta um novo ato eleitoral9.
Porque constituem uma via de resposta complementar às questões orientadoras (causas para a escassez de estudos; o que se sabe e o que deveria saber-se sobre o tema que explique o impacto diferenciado das medidas legislativas), os trabalhos recebidos foram adicionados à amostra inicial, que no final integrava 43 títulos.
Uma das limitações desta metodologia relaciona-se com a possibilidade de não terem sido contempladas algumas publicações pertinentes que não se enquadraram nas palavras-chave definidas, embora as etapas que se sucederam possam ter reduzido essa falha.
A sub-representação política das mulheres no governo local é irrelevante?
Quadro legal: implementação de quotas e medidas promotoras da paridade local
Os direitos políticos das mulheres portuguesas antes do 25 de abril eram muito limitados (Melo 2017). A partir de 1974, o Estado português assume o compromisso político com a igualdade, e a Constituição da República Portuguesa (CRP), aprovada em 1976 (DR 1976), vem proporcionar garantias legais para o exercício dos direitos políticos das mulheres. Com a revisão constitucional de 1997 (DR 1997) fica consagrado o princípio da igualdade material, que admite a aprovação de iniciativas legislativas que favoreçam o acesso das mulheres aos cargos políticos.
Esta alteração foi influenciada por uma corrente de pensamento desenvolvida no Conselho da Europa (CE) a partir do questionamento sobre a relação da igualdade de género e o conceito de democracia (Sineau 2003). A génese concetual da “democracia paritária” dá-se num Seminário realizado pelo CE, em 1988, e ganha definição na Declaração de Atenas, em 1992, adotada na primeira Conferência Europeia sobre as Mulheres no Poder, afirmando-se como a “full integration of women, on an equal footing with men, at all levels and in all areas of the workings of a democratic society, by means of multidisciplinary strategies” (Sineau 2003, 28).
Este renovado entendimento da democracia foi acolhido em Portugal pelas Organizações não Governamentais de Defesa dos Direitos das Mulheres e pela Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres - CIDM, que pressionaram o Estado a tomar iniciativas legislativas que promovessem a igualdade material (Monteiro 2011). O novo preceito constitucional tem origem nas propostas apresentadas à AR pela Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, que preconizava a plena igualdade entre mulheres e homens no exercício dos direitos cívicos e políticos. Contudo, como sublinha Vital Moreira, o texto finalmente aprovado não adota a formulação exercício de direitos, mas antes, promover a igualdade no exercício de direitos cívicos e políticos, “o que não é a mesma coisa” (1998, 51). Ainda assim, subsiste a interpretação de que o legislador nacional ficou “obrigado a uma espécie de obrigação de resultado, consistente em melhorar a proporção entre homens e mulheres no exercício de direitos cívicos e políticos” (Miranda et al., s.d., 30)10, a alcançar, nomeadamente, pela introdução de medidas especiais temporárias (também designadas de discriminação positiva) que a norma constitucional de 1997 veio permitir.
Neste contexto surge, em 1998, a iniciativa legislativa conhecida em termos mediáticos como Lei das Quotas (para mulheres) (Viegas e Faria 2001), que pretendia garantir “a igualização no acesso de ambos os sexos aos órgãos políticos” (DP 1999, 1111). Contudo, restringia-se às listas de candidaturas apresentadas nas eleições para a AR e para o PE, excluindo as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, e os órgãos (eletivos) do governo local. Exceções apresentadas como provisórias e justificadas pelo facto de o problema da sub-representação ter “mais visibilidade e premência” nos patamares nacional e europeu (DP 1999, 1112).
Esta tentativa de promover a igualdade falhou, no sentido em que a Proposta de Lei de 1998 foi rejeitada, mas introduziu na agenda política nacional e no debate público o tema da desigualdade de facto da representação política das mulheres. Apenas em 2006 veio a ser promulgada a denominada “Lei da Paridade” (DR 2006), que estabelece uma representação mínima de 33,3% de cada um dos sexos nas listas eleitorais, ao contrário da situação de paridade, próxima ou equivalente a 50/50, que o seu título anuncia. Requer a ordenação das listas dos/as candidatos/as segundo o sistema fecho éclair (não podendo ser colocadas consecutivamente mais de duas pessoas do mesmo sexo), e a previsão de penalizações para as listas não cumpridoras.
Trata-se de uma solução limitada face ao cenário de paridade traçado em Atenas e às possibilidades oferecidas pela alteração constitucional, mas, ao contrário da Proposta de Lei de 1998, a Lei aprovada abrange os órgãos eletivos locais (exceto os órgãos das freguesias com 750 ou menos eleitores/as e dos municípios com 7500 ou menos eleitores/as), continuando, porém, a não vigorar nas Assembleias Legislativas Regionais.
Como referido, a Lei da Paridade previu a avaliação periódica do seu impacto pela AR e eventual revisão dos seus termos, após 5 anos, o que veio a ocorrer em 2019, passando a intitular-se Lei da Paridade nos Órgãos Colegiais Representativos do Poder Político (DR 2019). O seu âmbito de aplicação foi alargado: (i) aumentou para 40% a representação mínima de cada um dos sexos nas listas de candidaturas; (ii) alterou-se o processamento das listas não conformes, deixando de haver penalizações financeiras e passando, ao invés, a ser rejeitada toda a lista nos casos em que a correção não se realize no prazo previsto na lei eleitoral; (iii) passou a abranger a lista de candidatos/as a vogal das JF11 e as listas de candidatos/as às mesas dos órgãos deliberativos da AM e AF.
Este conjunto de alterações influencia, pela primeira vez, o ato eleitoral de 2021, a que se junta a anulação da exceção de formar listas paritárias para os órgãos das freguesias com 750 ou menos eleitores/as e dos municípios com 7500 ou menos eleitores/as, já que a Lei Orgânica n.º 1/2017, de 2 de maio (art.º 3.º) (DR 2017), que veio revogar esta exceção, entrou em vigor em 2018, ou seja, não conheceu aplicação antes das autárquicas de 2021. Esta exceção fundou-se na alegada escassez de mulheres referida por decisores políticos locais no momento de preencher as listas de candidaturas (Espírito-Santo e Santos 2017). Argumento contrariado por Maria Manuel Leitão Marques (Ministra da Presidência), que justificou não haver esse problema quando “Em mais de 90% das freguesias do país, há mais mulheres do que homens”12.
Outras medidas legislativas podem, tendencialmente, influenciar o aumento da proporção de mulheres na política local, ainda que não fosse esse o objetivo a determinar a sua criação. É o caso da referida Lei Orgânica n.º 1/2017, de 2 de maio, que permite que as candidaturas para a eleição dos titulares dos órgãos políticos locais sejam apresentadas por grupos de cidadãos eleitores em alternativa a partidos políticos ou coligações partidárias, já que a formação de listas independentes (quando encabeçadas por mulheres) possibilita ultrapassar os “constrangimentos que as mulheres encontram nos partidos, no que diz respeito à sua colocação nos primeiros lugares nas listas” (Almeida 2019, 216), ou seja, lugares elegíveis. Há a referir que a maioria das listas locais independentes têm sido constituídas por pessoas dissidentes de partidos (mulheres e homens), ou seja, não emanam da sociedade civil, o que não só desvirtua a independência que deveria caracterizar essas candidaturas (Pequito Teixeira 2009), como não há razões para acreditar que os critérios que norteiam a composição dessas listas se distingam dos adotados pelos partidos e, deste modo, beneficiem candidaturas femininas.
É também o caso da Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto (DR 2005), que veio estabelecer limites à renovação sucessiva de mandatos de presidentes dos órgãos executivos locais, que teve em vista a renovação das elites locais pelo afastamento dos designados “dinossauros”, homens presentes nos executivos locais desde a primeira eleição, em 1976. Esta Lei - aprovada em 2005, mas com efeitos práticos, pela primeira vez, no ato eleitoral de 2013 - suscitou dúvidas, que foram esclarecidas, três semanas antes do dia das eleições, pelo Acórdão Constitucional n.º 480/2013 (DR 2013), o qual determinou que a limitação de mandatos é apenas e meramente territorial e não respeita à função. Assim, o limite apenas impede a eleição do/a mesmo/a candidato/a para um quarto mandato consecutivo na mesma autarquia, interpretação que beneficiou, desde logo, alguns “dinossauros” que se candidataram a municípios diferentes, tendo sido inclusivamente premiados porque as “transições geográficas constituíram mobilidade ascendente” (Almeida 2014, 13), ao serem eleitos em sedes de distrito. Ainda assim, esta Lei, ao impedir a perpetuação dos incumbentes nas autarquias (maioritariamente homens), pode beneficiar a entrada de mulheres (Teixeira 2016).
Sub-representação política local: análise das insuficiências de conhecimento
A insuficiência de estudos sobre a participação política das mulheres no plano local é caracterizada não só pela escassez numérica, como também pelas limitações dos estudos existentes, que são, em geral, institucional, geográfica e temporalmente parcelares (Teixeira 2016).
Quanto ao primeiro fator, há poucos estudos devido a vários constrangimentos à atividade de pesquisa sobre as mulheres. A ideologia ditatorial presente nos sucessivos regimes da Ditadura Militar (1926-1928), Ditadura Nacional (1928-1933) e Estado Novo (1933-1974) não só negou direitos políticos às mulheres como impediu o desenvolvimento científico (Torres 2016), pelo que as ciências sociais surgem nas universidades portuguesas e se institucionalizam apenas com a democracia (Amâncio e Oliveira 2014). Já o género como categoria de análise pontua os trabalhos académicos apenas a partir da década de 1990 (idem). Na área género e política surgem, já no século XXI, as primeiras dissertações de mestrado (Jordão 2003) e teses de doutoramento (Santos 2010), num panorama vazio “de produção e reflexão teórica (...) da filosofia e da ciência política sobre a representação política das mulheres, a cidadania feminina ou os desafios que o feminismo pode trazer à democracia” (Jordão 2003, 91).
Além do surgimento tardio, a falta de estudos sobre as mulheres adensa-se quando estes abordam o campo político, o que está relacionado com a “inexistência de dados sistematizados, de informação estatística desagregada por sexo (apesar das recomendações, por parte de instâncias internacionais)” (Jordão 2003, 93). Há falta de dados oficiais sobre resultados eleitorais (Martins 2011), inacessíveis quanto aos primeiros anos da democracia (Saraiva 2017), ou não divulgados atempadamente quanto a eleições mais recentes (Santos 2010), o que implica que para conhecer o número de mulheres eleitas seja necessário “fazer o exercício de contagem manual, através dos nomes inscritos nos cadernos eleitorais” (Jordão 2003, 92). Nos sufrágios locais acresce a estes fatores a complexidade que aporta o número elevado de candidatos/as e eleitos/as (Saraiva 2014), tendo em conta que o conjunto dos quatro órgãos se traduz (atualmente) em mais de 35 mil mandatos a cada quatro anos; por comparação, a AR apresenta 230 assentos parlamentares, sendo 21 no PE.
Apesar das dificuldades assinaladas de acesso a dados oficiais, no âmbito do Ministério da Administração Interna foram publicados periodicamente, até 2013, estudos com a caracterização sociológica dos/as eleitos/as locais13 que incluíram um capítulo dedicado à caracterização das mulheres eleitas (exceto em 1989). Quanto aos resultados eleitorais de 2017, de acordo com o esclarecimento da Chefe de Divisão Jurídica e de Estudos Eleitorais da DGAI/SGMAI, não existe data prevista para a conclusão do estudo em curso.
Por oposição à falta de fontes surge, em 2013, uma base de dados (atualizada em 2014) com mais de 6000 entradas de dados biográficos dos/as eleitos/as locais para os cargos de presidente e vice-presidente de CM, entre outros cargos locais (Almeida 2013; 2014). Entre as muitas centenas de biografias masculinas surgem as poucas mulheres nomeadas e eleitas naqueles cargos (antes do 25 de Abril até 2013). É apresentada a sua caracterização sociodemográfica e percurso político, um recurso valioso perante a invisibilidade a que as mulheres são votadas, ainda que protagonizando papéis de relevo no espaço público.
As dificuldades e limitações que podem influenciar investigadores/as a não optar por esta temática surgem a par dos argumentos que justificam a incidência de pesquisas nos parlamentos nacionais. Entre esses argumentos está o facto de se tratar de um espaço que favorece a avaliação da participação política das mulheres e das iniciativas relacionadas com a igualdade (Cabrera, Flores e Mata 2012), além de que apurar a proporção de mulheres e homens nessa instância governativa se tornou uma medida padrão para aferir o índice democrático dos países (IPU 2020).
Apesar das razões que explicam a concentração de estudos no patamar político nacional, este não é o único relevante numa perspetiva de género. Não só os/as representantes locais se encontram numa posição privilegiada para identificar e afastar a persistência e a reprodução das desigualdades e promover sociedades igualitárias (Perista e Silva 2008), sendo de assinalar o papel crucial que podem desenvolver na implementação da Agenda 2030 (ONU 2019), como este nível de governo é reconhecido por ser uma escola de participação política para as mulheres (Jordão 2000; OMC 2003), sobretudo a atividade desenvolvida nas JF (Jordão 2000; Saraiva 2017).
Quanto ao segundo fator que qualifica a insuficiência de estudos, o facto de serem genericamente parcelares invalida a sua atualidade e limita a sua capacidade de produzir generalizações de pendor estatístico.
Com efeito, em termos geográficos, não existe um conhecimento uniforme sobre a representação política das mulheres no plano local. A realidade mais estudada no país corresponde ao conjunto dos municípios que integram o distrito (divisão administrativa supramunicipal) de Lisboa, o que se explica tanto pela concentração de universidades e “proximidade geográfica” ao objeto de estudo (Maciel 2008, 59), como por apresentar uma elevada proporção de mulheres a liderar municípios nesta área, o que promove e facilita a realização de entrevistas (Saraiva 2017).
Vários estudos abrangem o território nacional (Continente e Ilhas) (e.g. Espada 2002; OMC 2003; Nunes 2008; Santos 2010; Teixeira 2016; Almeida 2018), focando, na maioria, as presidentes de câmara. Os estudos geograficamente parcelares abrangem: os 16 municípios de Lisboa; alguns dos municípios do distrito do Porto (Gondomar, São João da Madeira, Santa Maria da Feira); os 24 municípios de Viseu; alguns municípios dos distritos de Setúbal (Setúbal, Palmela, Almada, Montijo) e de Portalegre (Portalegre, Nisa, Arronches); ainda mais dispersamente, os municípios de Mirandela/Bragança, Moura/Beja, Rio Maior/Santarém, havendo muitos municípios, distritos e até zonas do país, como o Algarve e as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, não contemplados por qualquer estudo particular.
Os resultados dos estudos circunscritos geograficamente não podem ser extrapolados para o universo de autarquias (municípios e freguesias) do país atendendo à oposição, amplamente sublinhada pelos/as investigadores/as, entre contextos urbanos e rurais, mais e menos populosos, do interior e do litoral, do Norte, do Centro, do Sul e das Ilhas, que ditam diferenças que caracterizam o grupo de representantes e o grupo de representados. Mas mesmo estas dicotomias não são estanques, pelo que se impõe o teste empírico. Por exemplo, os/as presidentes de CM dos municípios de Lisboa surgem num contexto geográfico marcadamente urbano e a Sul, pelo que tendencialmente representam “posições, opiniões e comportamentos mais modernos e igualitários” (Maciel 2008, 115) que outros autarcas do país, o que impede generalizações ao todo territorial. Mas esta situação da capital do país apresenta-se ainda excecional entre outros contextos urbanos e a Sul “dada a proximidade dos centros de decisão política” (Jordão 2019, 185).
Já no grupo dos representados, é destacada a situação dos eleitores residentes em meios mais ruralizados, pouco populosos, em particular no interior, que os estudos identificam com opiniões mais conservadoras, menos igualitárias (Espada 2002; Teixeira 2016), resultado que contende com o facto de vários municípios com essas características terem eleito, entre 1976 e 2017, mulheres para liderar os seus executivos (Saraiva 2017). Entre estes encontram-se, inclusivamente, vários municípios com menos de 7500 eleitores/as abrangidos pela exceção de não cumprimento de listas “paritárias”: Góis/Coimbra, Sardoal/Santarém, Constância/ Santarém, Portel/Évora, Alandroal/Évora, Arraiolos/Évora, Mourão/Évora, Santa Cruz da Graciosa/RAA, Lajes do Pico/RAA, Vila de Rei/Castelo Branco, Vila Velha de Rodão/Castelo Branco, Alvaiázere/Leiria, Castanheira de Pera/Leiria, Nisa/Portalegre, Arronches/Portalegre e Freixo de Espada à Cinta/Bragança.
Outra dificuldade assinalada nos estudos em termos de generalização de resultados prende-se não com a amostra observada, mas com a dimensão do próprio universo, sendo este o caso das presidentes de CM. Com efeito, entre 1976 e 2021, houve 154 mandatos femininos por eleição e 19 por nomeação, exercidos por 77 mulheres14: “perante um universo tão reduzido, a caracterização do grupo das mulheres presidentes de câmara torna-se necessariamente limitada e quase personalizada” (Almeida 2013, 106).
Sub-representação política local: o papel dos partidos políticos
Os estudos demonstram a grande discricionariedade permitida aos decisores políticos, nomeadamente, no momento de constituir as listas de candidaturas e, depois, na atribuição de pelouros. As mulheres são associadas a atividades de apoio, havendo resistência a colocá-las em posições de maior visibilidade e poder (Lisboa et al. 2006), impedidas, por vezes, de fazer uso das suas qualificações (Jordão 2000). Os limites em que se movimenta esta arbitrariedade são o foco de várias pesquisas que analisam a legislação que intenta materializar a igualdade de género na política, principalmente a Lei da Paridade (e.g. Martins 2011; Santos e Amâncio 2012; Espírito-Santo e Santos 2017). Os resultados dos estudos são consensuais ao atribuir aos partidos políticos a maior fatia de responsabilidade pela sub-representação local.
Os partidos políticos (secções locais) são caracterizados como “os canais quase exclusivos da mediação política” (Mendes 1993, 178-179) aos quais cabe garantir a “mobilização e participação de novos grupos sociais que, no período anterior a 1974, não se encontravam representados, quer nos partidos, quer nos órgãos locais de poder” (ibidem), como é o caso das mulheres (Almeida 2018). Os partidos têm poucas mulheres (Costa 2010) “e parece não haver interesse em motivá-las para aderirem ou filiarem-se” (Jordão 2000, 120); já quando lá estão, “não têm acesso ao poder (...) sendo-lhes vedado embora não oficialmente” (Mendes 1993, 181). Permanecem “clubes de homens” (Jordão 2000, 120), ainda que existam secções femininas no interior da maioria dos partidos (Costa 2010; Almeida 2018) e normas nos estatutos partidários relativas à seleção de candidatos/as (Costa 2010; Viegas 2016), e são os homens a sair beneficiados pelos processos de recrutamento pautados por critérios pouco transparentes (Lopes 2009), porque a regra que prevalece é privilegiar quem reúna as características dos três M: “Male, Middle Aged e Middle Class” (Almeida 2019, 218).
Este modus operandi das secções locais dos partidos reflete a sua “excessiva descentralização, e consequente desresponsabilização” (Santos, Teixeira e Espírito-Santo 2018, 19), sendo esta uma das razões que justifica que o incumprimento da Lei da Paridade seja comum no plano local. De acordo com informação consultada na Comissão Nacional de Eleições (CNE s.d.), desde que esta Lei foi implementada, em 2009, são apresentadas listas incumpridoras, mesmo pelos principais partidos (com assento Parlamentar). Tal não ocorre nas eleições para a AR, onde esta prática é esporádica (nos pequenos partidos), e PE, sem registo de incumprimento. Contudo, o grau de visibilidade mediática e impacto na opinião pública destas eleições também é diferenciado, e explica, em parte, a postura dos decisores políticos (Santos, Teixeira e Espírito-Santo 2018).
Vários estudos destacam que a interiorização dos princípios que norteiam a democracia paritária não foi feita por larga maioria dos políticos locais (e.g. Almeida 2014; Jordão 2019), o que ajuda a explicar a ineficácia da Lei da Paridade, mas também é sublinhado que o desenho da Lei faz com que, “ainda que integralmente cumprida, a proporção de mulheres seja reduzida” (Santos, Teixeira e Espírito-Santo, 2018, 20), principalmente, na presidência dos órgãos. Este aspeto ausente na Lei, já que esta se restringe ao aumento da sua presença numérica (Viegas 2016), revela pouca ambição quanto ao objetivo da liderança das mulheres.
Finalmente, os estudos apresentam propostas de alteração à Lei da Paridade que não foram contempladas na atualização de 2019. Também sugerem medidas e descrevem boas práticas que evidenciam que a lógica da paridade política não se reduz à implementação de quotas ou de outras medidas especiais temporárias estabelecidas transitoriamente com vista a compensar uma situação de desequilíbrio (Almeida 2020). Funda-se, antes, no reconhecimento do igual valor social de mulheres e homens e envolve medidas definitivas inscritas no direito, destinadas a repensar a distribuição de poder político em termos de igualdade de género para aprofundar a democracia (Santos 2010).
Discussão de resultados e conclusões
A imparidade política entre mulheres e homens no governo local, em Portugal, subsiste após a promulgação da Lei que introduziu quotas (33,3%), em 2006. Este artigo explorou a hipótese que relaciona a insuficiência legislativa com a lacuna de conhecimento sobre as especificidades locais, e procurou determinar a relevância do tema para a academia. A revisão de literatura, aqui apresentada de forma parcelar e resumida, consistiu no recorte de contributos dos 43 estudos académicos identificados pelo método de seleção exposto, que de forma substantiva permitiram esclarecer estas interrogações; a análise foi complementada pelo contacto via email com investigadoras/es significativas/os, para determinar a sua produção académica e conhecer trabalhos em perspetiva sobre o tema.
Os estudos atribuem às seções locais dos partidos políticos a responsabilidade pela deficitária participação e representação das mulheres na política local. A falta de adesão aos valores da democracia paritária e uma interpretação enviesada da legislação que a promove por parte dos decisores políticos locais manifesta-se, principalmente, nos momentos eleitorais na composição das listas de candidaturas em que as mulheres surgem invariavelmente na 3.ª, 6.ª e 9.ª posições, atuação consentida pela falta de escrutínio mediático e da opinião pública.
Por outro lado, estão por explicar contradições evidenciadas pelo confronto de resultados entre estudos. É exemplo flagrante o facto de vários municípios com populações conotadas com valores conservadores e isentos da obrigação de apresentar listas paritárias (por terem menos de 7500 eleitores/as) elegerem mulheres presidentes de câmara, resultado paradoxal num cenário que prima pela resistência à Lei da Paridade.
Fica evidenciada a reduzida ambição do legislador nacional em contestar o paradigma atual de representação política. A revisão da Lei da Paridade (2019) ainda não acolhe a verdadeira paridade entendida como representação 50/50. Embora inclua alterações dirigidas ao patamar local de governação, continua ausente qualquer medida tendente a promover as presidências nos órgãos locais (paridade horizontal), onde se registam os índices mais elevados de sub-representação, apesar dos compromissos internacionais assumidos, que incluem o objetivo da liderança das mulheres, nomeadamente, a Agenda 203015.
A insuficiência dos estudos não pode confundir-se com a irrelevância do tema para a academia, assunção que é de rejeitar: i) foi identificado um conjunto de investigadores/as ativos/as, que de forma continuada têm renovado a realização de pesquisas sobre o tema a partir dos seus trabalhos iniciais, persistindo apesar das dificuldades, com destaque para a falta de dados desagregados por sexo; ii) há trabalhos em vias de publicação e outros que se perspetivam após o ato eleitoral local de 2021, acrescido de relevo científico por coincidir com alterações legislativas tendentes a influenciar a representação descritiva das mulheres.
Conclui-se, que embora o panorama de conhecimento sobre o governo local seja muito incompleto, os estudos identificados nesta revisão não só explicam a ineficácia diferenciada da legislação que promove a paridade, relativamente à AR e PE, como apresentam várias recomendações, sustentadas pela pesquisa, com vista a contrariar a sub-representação local, por meio de medidas legais e de outra natureza. É, assim, de rejeitar a hipótese que relaciona o desacerto da solução legislativa com a lacuna de conhecimento para explicar o problema da persistente sub-representação das mulheres na política local. Em termos de trabalhos futuros apresenta-se premente desenvolver estudos que abranjam a totalidade do território nacional.