1. Introdução
No contexto global de economias baseadas no conhecimento, universidades de diferentes países e continentes têm buscado alcançar e manter posições competitivas em termos de pesquisa e de ensino. Em Portugal, como efeito das políticas e estratégias de internacionalização do ensino superior, que não podem ser desligadas do espaço geopolítico lusófono-europeu e de uma “impressão neocolonial” (França, Alves e Padilha 2018, 335), verificou-se na última década, até à crise pandémica, a intensificação dos fluxos de estudantes das antigas colónias, principalmente do Brasil (DGEEC 2019). Tal como tem sido preocupação de outros estudos (Merçon 2020), interessa-nos, neste caso, perceber como é vivenciada a receção e presença de estudantes brasileiras no ensino superior português, tendo como foco essencial as interações sociais e académicas, frequentemente intersectadas por representações estereotipadas das condições e identidades étnico-raciais, de género e de nacionalidade, que, por sua vez, são passíveis de ser interpretadas por referência a estruturas de poder com ressonâncias históricas coloniais.
Trata-se de um fenómeno complexo, justificando assim a opção pela abordagem pós/(des)colonial e pela metodologia da interseccionalidade quali-quanti na análise dos dados estatísticos e de outros elementos recolhidos através de questionários e entrevistas com estudantes em mobilidade. Género, raça, nacionalidade e outras variáveis importantes não devem ser estudadas de forma isolada uma vez que há níveis sobrepostos de desigualdade que, “à primeira vista, estão invisíveis” (Lutz 2015, 39) ou costumam ser “negligenciados” (Mackinnon 2013, 1020). Mesmo que estudar no exterior do Brasil seja ainda um privilégio da (vulgarmente considerada) elite branca, estudantes negras/os1 e pobres têm sabido aproveitar as quotas de acesso ao ensino superior e conseguido vencer os filtros de seletividade e as barreiras de discriminação negativa que, tradicionalmente, as/os impedem de percursos mais longos de escolarização (Borges, 2018).
Este artigo tem o objetivo de ressaltar a latência, no contexto português, de um imaginário de subalternidade estereotipada em torno das estudantes brasileiras, que muitas, sobretudo as que se autodeclaram negras, descobriram ao frequentar o ensino superior. Os dados analisados (235 respostas a questionários online e oito entrevistas) referem-se à mobilidade estudantil Brasil-Portugal ocorrida entre 2012 e 2020, e fazem parte de uma investigação mais ampla e aprofundada (Borges 2020)2. Trechos de testemunhos apresentados aqui são-no apenas a título exemplificativo, com o propósito de abrir espaço a vozes que denunciam constrangimentos vividos ou presenciados, e que podem ser genericamente referenciados à colonialidade de poder que intersecciona género, raça e nacionalidade.
2. Contextos histórico-culturais Brasil-Portugal e a colonialidade de poder
A mobilidade de estudantes do Brasil para Portugal é um fenómeno que pode ser estudado privilegiando várias vertentes. A opção, no que diz respeito a este texto, foi a de dar centralidade ao conceito de colonialidade de poder, o qual vem sendo trabalhado por intelectuais, notadamente latino-americanos, que se inscrevem na perspetiva descolonial, descontruindo “um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista”, e que assenta sobre a “imposição de uma classificação racial/étnica da população mundial como pedra angular do referido padrão de poder que opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões, materiais e subjetivas, da existência quotidiana e em escala social” (Quijano 2014, 285).
A raça (como sinalização da diferença e da desigualdade) é interpretada como invenção do imperialismo europeu ocidental para viabilizar a economia capitalista. Conforme Mignolo (2007, 13), no transitar do século XV para o XVI, “não havia índios nos continentes americanos até à chegada dos colonizadores espanhóis [e dos portugueses]; e não havia negros até ao começo do comércio massivo de escravos no Atlântico”. Em outros termos, a ideia de raça serviu como “eficaz instrumento de dominação social” (Quijano 2000, 192) para “dar sentido às novas relações de poder” entre os povos originários das Américas e os conquistadores ibéricos (Quijano 2005, 18). A designação raça negra emergiu em meados do século XVI no contexto do colonialismo ibérico na América e a de raça branca bem depois, no avançar do século XVIII, na área do colonialismo britânico na América e nas Antilhas (Quijano 2005, 18).
Completava-se assim um sistema de classificação racial da população mundial que naturalizava as (ir)racionalidades de um sistema-mundo moderno/colonial para a dominação e a exploração de seres humanos. Estavam traçadas as “linhas abissais” (Santos 2010) entre o mundo dos colonizadores (homens europeus brancos) e os mundos das pessoas racializadas e colonizadas. Mas essa violência colonial não se expressava somente em termos étnico-raciais, interligando-se também a hierarquias de género (mundo masculino e patriarcal), de conhecimento (ciência europeia) e de modo de produção (capitalista). Uma sequência de colonialidades inter-relacionadas não extintas com a independência das colónias e a (re)produzir desigualdades e injustiças.
No entanto, nas interações sociais quotidianas, a colonialidade não é algo explícito ou imediatamente identificável. Pelo contrário, reconstituir a sua origem e explicar como se atualiza em novas desigualdades e racismo(s) exige uma postura crítica na investigação, nomeadamente através de uma metodologia interativa (Garcia Filice e Carnaúba 2019) e um compromisso com práticas e alternativas emancipatórias. No caso que estudámos, argumentamos que as experiências e biografias das estudantes brasileiras carregam cicatrizes produzidas historicamente pelo colonialismo (e suas consequências), as quais emergem nas relações sociais e académicas como expressão da colonialidade de poder, persistente no contexto português (do antigo colonizador), induzindo, assim, uma nova consciência crítica que pode permitir o despertar de um capital descolonial (Borges 2020). Nesse sentido, ouvir estas estudantes que experienciam a internacionalização é muito importante na construção de um diálogo crítico descolonial no espaço académico Brasil-Portugal.
Uma questão prévia importante tem a ver com as diferenças existentes nos dois países em relação ao registo das identidades étnico-raciais. No Brasil, estas informações são recolhidas de forma censitária desde o final do século XIX e, ainda que se possa e se deva questionar a inadequação das categorias elencadas, elas têm sido importantes para as lutas de reparação de injustiças sociais historicamente produzidas. Por sua vez, esses dados inexistem em Portugal, muito embora a recolha tenha sido recomendada recentemente pelo United Nations Human Rights Office (2017)3.
Para as estudantes brasileiras que integraram este estudo, as visões e posições diferenciadas no trato das questões étnico-raciais propiciaram estranhamentos, comparações e reflexões críticas. Mesmo que diferentes expressões da colonialidade de poder estejam presentes e se reatualizem quotidianamente nos dois lados do Atlântico, os testemunhos recolhidos das estudantes em Portugal, brancas e negras, revelam situações de tensão e constrangimento que as surpreendem e subalternizam. Ter nascido no Portugal europeu parece suscitar uma pretensa superioridade em relação a quem vem do Brasil. Esta é a interpretação crítica de algumas entrevistadas, como relata uma paulista de 28 anos, autodeclarada branca, egressa de escola pública, de família com dificuldades financeiras e que precisou contar com a ajuda da avó para estudar por alguns meses em Portugal:
A hierarquia é uma coisa a se pensar, a origem, de onde você vem, essa questão hierárquica da colonização, da cidadania europeia, tudo isso foi constatado aqui. Não vão te achar inferior porque você tem ascendência italiana. Agora se você é afrodescendente, já é uma pessoa a se olhar torto [porque] a sua origem não é boa o bastante. Se você falar que tem origem de índio, então é como se fosse nada, como se fosse muito mais inferior […]. (Estudante de graduação que cumpriu mobilidade em Direito na Universidade do Minho)
Este despertar descolonial não resulta apenas, ou necessariamente, das vivências decorrentes de uma situação socioeconómica precária, ou de uma condição étnico-racial indutora de experiências de uma “verdadeira subalternidade” (Spivak 2021, 128). Segundo resultados da investigação aqui referida, estudantes brancas/os e de classes com elevado capital económico também expressaram uma consciência crítica em relação à colonialidade de poder quando esta entrelaça nacionalidade, género e raça. Nesse sentido, o que estas estudantes nos lembraram é que a identidade brasileira (ou, melhor, a origem no Sul global4) não se encontra liberta do legado colonial, continuando a ser representada, pelo menos em alguns segmentos da sociedade portuguesa, como uma condição de subalternidade.
A existência ou inexistência de políticas de quotas para acesso ao ensino superior também parece interferir na forma como são construídas determinadas representações sociais, neste caso, relativas à identidade étnico-racial. A este propósito, aliás, convém reconhecer que Brasil e Portugal têm avançado de modo distinto em políticas de ação afirmativa e de combate ao racismo e outras formas de discriminação. O acesso por quotas é um exemplo com desdobramentos recentes nos dois países. Enquanto política de Estado, a reserva de vagas em instituições públicas brasileiras de ensino superior completa dez anos (Lei n.º 12.711 de 29 de agosto de 2012) e as discussões atuais seguem com foco na defesa e aprimoramento de ações afirmativas para a década 2022-2032 (Vieira 2021, 362). Em Portugal, o princípio da discriminação positiva, que fundamenta a criação de quotas para acesso a instituições de ensino superior e a cursos técnicos superiores profissionais, encontra acolhimento no âmbito do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025 - Portugal contra o Racismo (PNCRD - 2021-2025), aprovado em 15 de julho de 2021 (Presidência do Conselho de Ministros 2021), nomeadamente no que se refere a alunas/os das escolas TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária). No entanto, ao privilegiar o território, este Plano não assume explicitamente o critério das desigualdades étnico-raciais, talvez por poder ser uma questão fraturante.5 Sabemos, no entanto, que a experiência brasileira dá conta de que as quotas promovem maior diversidade social nas universidades (Santana et al. 2021), o que não significa que o problema das desigualdades no ensino superior fique resolvido. A busca por justiça social no campo da educação apresenta-se como uma luta constante que impõe novos desafios a nível das políticas afirmativas e antidiscriminatórias, e demanda, nomeadamente por parte da investigação em sociologia e ciências da educação, um olhar interseccional para múltiplas e combinadas situações de (re)produção de colonialidades.
A análise interseccional empregada no já referido estudo empírico mais amplo (Borges 2020), e que nos serve de partida, revela que as políticas de fomento à internacionalização Brasil-Portugal, em ambos os países, apresentam lacunas e acionam mecanismos que contribuem e atuam para uma seletividade social e racial favorável a estudantes brancas/os, com maior domínio da língua inglesa (Borges e Afonso 2018), provenientes de escolas privadas e de famílias com elevado capital económico. Entretanto, outros resultados deste mesmo estudo mostram que estudantes pertencentes a grupos historicamente marginalizados, ainda que em número consideravelmente menor, estão a frequentar, devido também a estratégias de resistência proativa, instituições no exterior, das quais tradicionalmente estiveram excluídas/os. A este propósito, escutemos a voz de uma estudante natural do Nordeste do Brasil, proveniente de escola pública e de família pobre, que se identificou como parda. Na ausência de um programa de bolsas para internacionalização, a exemplo do extinto programa Ciência sem Fronteiras, ela precisou trabalhar enquanto estudou por alguns meses em Portugal:
Eu me custeio aqui. Eu vendi meu carro, passei um ano economizando, fiz rifas, essas coisas. Até mesmo na época em que houve o Ciência sem Fronteiras eram poucas as oportunidades, principalmente para a área de Humanas. Era [um programa] restrito às pessoas que tinham condição financeira melhor porque na hora da seleção era pedido o inglês e a gente sabe que pobre no Brasil não fala inglês. Agora como já não há bolsas, continua sendo as mesmas pessoas, com dinheiro, ou então alguém como eu que vende as coisas e vem. (Estudante que frequentou o curso de Sociologia na Universidade do Minho)
Este testemunho é importante em dois sentidos: porque revela a dimensão social da política de quotas no acesso ao ensino superior no Brasil e porque denuncia os reflexos das desigualdades (regionais, económicas, raciais e de género) que afetam estudantes em mobilidade internacional. Embora as políticas afirmativas implementadas no Brasil tenham contribuído para um maior acesso e presença, em instituições federais de educação superior, de estudantes das classes sociais historicamente privadas ou cerceadas nos seus direitos sociais e educacionais, esta assimetria, comparativamente com outras classes, manteve-se em relação às probabilidades de estudar fora do país. Neste sentido, os riscos de perpetuação de desigualdades também devem ser problematizados no que diz respeito a programas como o Ciência sem Fronteiras e outras ações públicas voltadas para a internacionalização dos estudos. Afinal, o ingresso nesses programas de mobilidade estudantil tem sido um mérito para quem? (Borges 2018).
Mesmo que a internacionalização esteja mais vinculada à classe social e não seja ainda uma oportunidade justa e igualitária para estudantes em função da nacionalidade, identidade étnico-racial e género, a maior diversidade brasileira nos campi universitários portugueses amplia as possibilidades de mútuas aprendizagens entre estudantes dos dois países, as quais vão além do currículo académico formal, uma vez que há mais “interconectividade de suas experiências heterogéneas” (Collins e Bilge 2021, 240). Por conseguinte, instituições de ensino superior mais plurais, democráticas e igualitárias, nomeadamente em termos epistémicos e pedagógicos, bem como étnico-raciais, de género, de classe e de nacionalidade, são necessariamente espaços de educação/formação fundamentais para desocultar criticamente como se atualizam práticas genericamente referenciáveis à colonialidade de poder (e, mais especificamente, à colonialidade dos micropoderes presentes nas relações e interações quotidianas). E, para além disso, são lugares igualmente capazes de potenciar o pensamento de alternativas e possibilitar práticas mais emancipatórias. Todavia, como veremos a seguir, há muito caminho a percorrer para alcançar estes objetivos.
3. O despertar descolonial parcelar nas vozes das estudantes
Apesar dos obstáculos que derivam, sobretudo, das fortes desigualdades de classe, raça e género, e que pesam fortemente na construção dos seus projetos de vida, muitas/os estudantes conseguem vir para Portugal e increver-se no ensino superior, passando a conhecer uma realidade social e educacional que as/os coloca perante novos desafios, não isentos de emoções, tensões e vivências contraditórias. Na pesquisa que realizámos, encontrámos instituições de ensino superior onde, apesar do predomínio de estudantes portuguesas/es, existe uma notória e crescente diversidade de outras nacionalidades e identidades, para a qual têm contribuído as/os estudantes brasileiras/os.
Nesta seção apresentamos uma breve análise das respostas de 235 estudantes brasileiras a um questionário online6, que revelam o que podemos designar de despertar descolonial parcelar, no sentido em que as suas críticas apenas articulam ou referenciam alguns dos eixos da matriz colonial de poder (capitalismo/ exploração/ dominação, eurocentrismo, patriarcado, racismo…). O que é compreensível, considerando que eram estudantes jovens (86,5% na faixa etária de 18 a 24 anos), e que nem todas tinham uma ampla consciência política. Importante ressaltar que os relatos, extraídos das entrevistas ou das questões abertas nos inquéritos online, foram coletados de modo a preservar a autenticidade e a evitar o que se designa de imposição de problemática.
Empregámos nas nossas análises as expressões estudante(s) branca(s) e estudante(s) negra(s), entendendo-as não como categorias singulares de classificação racial em oposição binária, mas como designações que comportam múltiplas e complexas (ou mesmo contraditórias) identidades. Por exemplo, a designação parda apresenta ambiguidades, sobretudo por poder referir-se tanto a matrizes indígenas quanto africanas. Por outro lado, alguns estudos mostram que muitas pessoas no Brasil se declaram brancas por desconhecerem a genealogia familiar ou por não terem tido acesso às memórias e histórias orais que possam conter outras informações étnico-raciais - não sendo esse facto indiferente, em muitos casos, aos apagamentos simbólicos e culturais das matrizes identitárias, por força (também) de uma certa ideologia de supremacia branca, disfarçada por discursos oficiais de democracia racial e multicultural.
Na abertura do seminário “Não sou pardo, sou indígena: o pardismo em debate”, transmitido em 11 de abril de 2021 pela TV Tamuya no YouTube, Ailton Krenak chama a atenção para o apagamento da identidade indígena nas décadas de 1970 e 1980, quando o Movimento Negro agrupa pretas/os e pardas/os (ou mestiças/os) na categoria de negras/os. Com isso, segundo ele, ocorre o etnocídio indígena na categoria parda. A ideia, no entanto, do Movimento Negro era (re)unir as chamadas minorias étnico-raciais para reforçar a luta por direitos e pela não subalternização histórica das suas identidades. Como ressalta Rita Segato, são dois lados de uma luta com carga ideológica. Assim, o pardismo compõe o “entre-mundo da mestiçagem” tanto pelo branqueamento quanto pelo enegrecimento, ou seja, identidades forjadas ideologicamente a partir do sequestro do sangue “não branco” (negro e indígena) na “brancura”, e do sangue “branco” no processo de “reconstrução do mundo indígena e afrodescendente” (Segato 2012, 115).
Em termos históricos, a ambiguidade em torno da identidade parda também pode ser explicada a partir da consagração oficial, em 1872, do sistema de classificação racial da população brasileira que, para além das categorias branca e preta, adotou também as de parda, mestiça e cabocla. Somente em 1991, “depois de 101 anos de ausência”, a categoria indígena seria reintroduzida em definitivo (Petruccelli 2013, 24). Porém, ainda que inadequadas e insuficientes, branca, preta, amarela, parda e indígena são as cinco categorias utilizadas desde 2000 na recolha censitária de dados étnico-raciais no Brasil. Essa categorização reflete, em grande medida, o mito homogeneizante das três raças formadoras do povo brasileiro (o europeu, o africano e o indígena, assim mesmo no singular), desconsiderando outros povos e outras miscigenações produzidas, por exemplo, a partir de descendências com pessoas de origem asiática (japonesa, chinesa, coreana, libanesa, síria, entre outras) e imigrantes da própria América Latina. Portanto, há também que ter em conta a ideologia racial e as funções de dominação subjacentes a essas classificações. Afinal, elas são uma das expressões da colonialidade de poder.
Neste artigo, na categoria negras estão as respostas das estudantes que se autodeclararam pretas, pardas, amarelas ou indicaram uma ascendência étnico-racial que resulta da miscigenação. Das 235 estudantes da amostra produtora de dados, 169 declararam ser brancas; 47 pardas; 9 pretas; 8 amarelas; 1 miscigenada branca com amarela, e 1 branca com parda. Nenhuma estudante se declarou indígena. Estes dados já nos informam alguma coisa sobre a desigualdade racial presente na internacionalização de estudantes do Brasil para Portugal7. Entre as estudantes brancas, 61% vinham de famílias de classe média e média alta, com renda mensal entre quatro e vinte salários mínimos; entre as estudantes negras, 68,3% vinham de famílias com rendimento mensal inferior a quatro salários mínimos. Importante destacar que 52,7% das estudantes que indicaram pertencer a famílias mais pobres estudavam em Portugal com bolsas concedidas pelo governo brasileiro. Na nossa perspetiva, tratando-se, em qualquer dos casos, de estudantes com percursos bem-sucedidos em termos académicos, fica bem claro que, sem políticas afirmativas, de reconhecimento, redistribuição e representação (convocando aqui Nancy Fraser 2007), os tradicionais critérios meritocráticos (ligados ao esforço e capacidades individuais), por si só, são insuficientes. Como mostram, aliás, as novas estratégias educacionais das classes médias e médias-altas, que passam pela internacionalização dos estudos das/os filhas/os, não é por acaso que os percursos de excelência escolar têm maior probabilidade de acontecer numa articulação virtuosa entre os quesitos da velha meritocracia e os recursos da parentocracia, ou seja, pela via da neomeritocracia (Afonso 2017).
A seletividade social na internacionalização opera também por género e domínio científico. Na altura da coleta dos dados, nas ciências exatas e engenharias, áreas que em Portugal concentraram metade (50,3%) das bolsas do extinto programa Ciência sem Fronteiras, somente 35,9% beneficiaram mulheres. A maior presença feminina foi verificada nas ciências biológicas e da saúde (60,4%). No âmbito de ingressantes pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e por programas privados ou institucionais de mobilidade internacional, a maior participação das estudantes registou-se nas ciências sociais e humanidades (73,3%). Repete-se, assim, em Portugal, o que já se tinha verificado nos Estados Unidos, ou seja, uma predominância masculina em cursos de engenharias e tecnologias (Borges 2018).
A razão pela qual essas últimas assimetrias persistem passa por perceber a “segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas” (Louro 2014, 21). Antes mesmo de ser engendrada na matriz patriarcal e racializada que se constituiu na América colonizada, a supremacia heterossexual já era reforçada pelo construto reacionário político-ideológico da “fraqueza da mente e do corpo” servindo para legitimar a própria exclusão das mulheres burguesas brancas da esfera de poder público, da produção de conhecimento e dos principais controlos sobre os meios de produção (Lugones 2007, 206). Mas é a partir da violência colonial e escravista no contexto do capitalismo na América Latina que a dominação de género embrutece e racializa. Lugones chama a isto o dark side do sistema de género. Por conseguinte, para as mulheres indígenas e africanas resta a posição mais subalternizada, inclusive em nível de inferiorização em relação aos homens negros colonizados.
Contudo, os fragmentos da violência colonial e a imagem deturpada da mulher brasileira manifestam-se em discriminações, por vezes mais veladas e subtis, nos (des)encontros entre estudantes brasileiras/os e portuguesas/es, colocando em questão o valor da diversidade na agenda política e académica de um Portugal multicultural. Na crítica de Marta Araújo, atrás do discurso de um país generoso e acolhedor de outros povos, o que se tem é um Portugal a reatualizar o “mito de uma convivialidade colonial”, que guarda origem nas “teses luso-tropicais” de Gilberto Freyre (Schneider 2012). Com efeito, aos passos lentos de uma revisão descolonial da história dos (chamados) descobrimentos tem-se contraposto, a passos largos desde a década de 1990, a narrativa da interculturalidade portuguesa, com o racismo colocado como “fenómeno marginal” (Araújo 2018, 11-12).
Nesse sentido, pode perguntar-se que expressões de colonialidade podem ser percebidas nas universidades portuguesas em relação às estudantes brasileiras? Em que medida podemos associar a considerável dificuldade relatada pelas estudantes, de se sentirem integradas no contexto académico, como sendo consequência de certas representações sociais e estereótipos sexistas relacionados (ou não) a um enviesamento etnocêntrico?
A resposta transparece nas vozes de estudantes brancas:
Nunca me senti tão rejeitada e excluída, pois apesar de falar uma língua semelhante, muitos portugueses sofrem do complexo de superioridade em relação aos brasileiros. Sou grata pelos amigos brasileiros que fiz, pois foram os únicos que fizeram com que eu aguentasse tanto tempo. (Estudante que frequentou Ciências Sociais Aplicadas na Universidade de Coimbra)
Na minha universidade, acho que em todas do Brasil, se vem uma pessoa de qualquer lugar, a gente: ‘Meu Deus, como que é no seu país?’ E recebe e faz isso e aquilo. E aqui não tem isso. Não senti nenhum acolhimento por parte dos portugueses. (Estudante que cumpriu mobilidade em Letras e Ciências Humanas na Universidade do Minho)
Eu achei que as pessoas agiriam de uma maneira mais política, e com mais aceitação em relação ao outro. Eu não achei que numa universidade que recebe estudantes o tempo todo, eu ia ter que sofrer um bullying no primeiro dia em que eu aparecesse porque eu era uma brasileira, entende? Eu achei, sim, que eu ia chegar aqui, que é uma universidade internacional, e que eles iam saber respeitar as pessoas dentro da sala de aula. (Estudante que cumpriu mobilidade em Direito na Universidade do Minho)
Se os diálogos interculturais não estão sendo possíveis, há que perguntar o porquê. Das estudantes brasileiras que participaram da nossa pesquisa e frequentaram o ensino superior em Portugal entre 2012 e 2020 mais de metade assinalou algum tipo de discriminação. A análise dos dados revela que estas denúncias foram mais frequentes entre as negras (56,1%), em comparação com as brancas, o que confirma a interferência da condição étnico-racial. O testemunho a seguir é revelador:
Eu comentei que, por vezes, pensava na escolha de Portugal com arrependimento, esta, que foi motivada por uma questão financeira, me colocou em uma situação de vulnerabilidade social que hoje me permite compreender e lutar contra as contradições do meu país, como professora de artes nas escolas públicas, como artista. Minha saúde mental foi sendo comprometida pelos constantes assédios. A forma como fui acolhida engatilhou situações de xenofobia, racismo, misoginia; a visão portuguesa é de que somos, menos que sujeitos, objetos de exoticidade e subalternidade. (Estudante de Linguística, Letras e Artes que cumpriu mobilidade como bolsista na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro)
Por outro lado, quando olhamos para as respostas dos estudantes, constatamos um percentual bem menor (31,6%) de discriminação, ainda que consideravelmente maior entre os negros (43,5%) em relação aos brancos (26,4%). Considerando género e raça, a experiência dos constrangimentos revelou-se comparativamente mais acentuada entre as estudantes negras.
Considerações finais
Os resultados apresentados são, em muitos aspetos, convergentes com os de outros estudos, sobretudo daqueles que mostram que as instituições de ensino superior portuguesas ainda não estão preparadas para lidar com a diversidade multicultural de estudantes internacionais (Nada e Araújo 2019). No nosso caso, quisemos salientar o que muitas estudantes brasileiras sentiram devido ao efeito ampliado das desigualdades nas interações sociais em contexto académico, sobretudo quando sobrepostas as condições étnico-raciais, de género e de nacionalidade. Foi neste sentido que a análise interseccional pôde potenciar a revelação da persistência da colonialidade de poder. As denúncias destas formas de opressão, (re)atualizadas na experiência da mobilidade internacional, partiram com mais frequência das estudantes negras. O ecoar das suas vozes mostra a urgência de estabelecer diálogos interculturais críticos - papel que deve ser protagonizado por instituições de ensino superior, públicas e democráticas, dos dois lados do Atlântico (e não só). Mas, para isso, estas instituições não poderão deixar de fazer a crítica à hegemonia epistémica euro-norte-americana, assumindo a abertura a saberes, pedagogias, olhares e projetos alternativos que contribuam para descolonizar as práticas sociais e académicas. É, por isso, pertinente refletir e indagar que tipo de internacionalização do ensino superior poderá contribuir para nos libertar das nossas “imaturidades coloniais” (Stein e Evelyn da Silva 2020, 563).