O termo somatização foi introduzido por Sketel em 1911, a partir de um referencial psicanalítico, para designar: o processo pelo qual os conflitos de base neurótica podem se expressar como uma perturbação física através de sintomas viscerais. De acordo com Berrios e Munford, (1995), o conceito do autor para o termo poderia ser um equivalente a compreensão da Conversão. Mas devido ao seu uso impreciso e variado, fez-se necessário esforços para a redefinição da somatização, que ocasionou em diferentes modos de compreensão do conceito, e corrobora com o posto por Quartilho (2016), para o qual, a somatização ainda tem provado ser um conceito não unitário, complexo, ambíguo e polissêmico.
Além de uma ausência de delimitação, o conceito também é comumente confundido com o que se entende por doenças psicossomáticas. Sendo que estas, a partir do novo modelo de compreensão do processo saúde-doença, que supera as teorias etiológicas de caráter linear, unicausal e cartesiana, reitera que todas as doenças são psicossomáticas (Mello Filho, 2010), pois independente do seu grau, todas são determinadas por aspectos psicológicos e sociais presentes em sua evolução. E consequentemente, o entendimento de somatização perdeu o seu teor simplista de influência da mente sobre o corpo, e assume o seu caráter principal de diferenciação para além dos sintomas sem explicação médica (SEM), mas que possui como núcleo central, as representações e significados que o paciente atribui à sua sintomatologia somática e as implicações nos aspectos funcionais e sociais, ou seja, apresenta-se como uma forma de illness, que enfatiza a experiência subjetiva da doença e suas repercussões nas relações sociais (Fortes et al., 2010).
Assim, entre as definições mais recorrentes e aceitas no meio científico, encontra-se a de Lipowski, que compreende a somatização enquanto “uma tendência para sentir e comunicar o mal-estar somático e os sintomas não explicados por quaisquer resultados patológicos, para os atribuir a doença física e procurar a respectiva ajuda médica” (1988, p. 1359).
Desse modo, ao se considerar a falta de uma sistematização e a imprecisão que cercam o fenômeno somático, esse configura-se como um campo nebuloso na área da saúde, no qual a atuação e o manejo com o sujeito que apresenta esse quadro, é demasiado desafiador para toda a equipe de saúde e principalmente para o profissional médico, que pode apresentar dificuldades para lidar com esse tipo de paciente, que extrapola o modelo biomédico tradicional, e demanda uma abordagem integral e centrada na pessoa, respeitando o modelo biopsicossocial (Martins, 2017), pois, apresenta uma doença que é de detecção laboriosa e para a qual os tratamentos habituais não produzem resultados satisfatórios. A equipe de saúde rotineiramente nem cogita quadros somáticos em seus clientes, e quando o fazem, é por meio do diagnóstico de exclusão, quando a patologia orgânica é, sem qualquer dúvida, excluída e verifica-se, que o quadro não possui qualquer explicação orgânica factível. No entanto, essa é uma estratégia problemática, pois sintomas somáticos também podem acompanhar doenças médicas diagnosticadas (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 2014). Além disso, retarda o diagnóstico e, assim, a possibilidade de instituição de tratamento. Para além disso, faz com que o processo de detecção implique elevados custos, com dispêndio de recursos do sistema de saúde pública.
Ademais, o fenômeno da somatização vem sendo explorado por outros agentes especialistas da saúde mental, como os psiquiatras e psicólogos, que acolhem essa demanda, mas também, outros profissionais que têm dirigido o seu olhar para esse campo, tais como, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, entre outros. Pois, o cuidado de qualidade ofertado ao paciente somatizador tem como alicerce, a visão de sujeito a partir do modelo biopsicossocial, que compreenda a sua sintomatologia pelo viés da multicausal, multidimensional e integral, e pelo qual, é imperativa a atuação interdisciplinar (Vieira & Macêdo, 2019).
Não obstante, apesar das pesquisas sobre esse tema se concentrarem predominantemente no público adulto, esse fenômeno está cada vez mais presente na população pediátrica (Schulte & Petermann, 2011, citado por Gonçalves, 2016), e se apresenta de forma mais crítica e intensa nessa etapa do desenvolvimento, o que relaciona-se com o posto por Baseggio (2012), para o qual, a criança ainda está desenvolvendo a capacidade de se comunicar através da linguagem verbal, assim, acaba comunicando-se comumente por meio do não verbal, pela via do corpo. Podendo acontecer em alguns casos, dessa via de comunicação não conseguir se manifestar sadiamente, formando-se então uma outra forma de comunicação, a doença, que através do corpo, pode colocar o sujeito em sofrimento.
Além disso, por se tratar de crianças, os membros da família podem, com efeito, funcionar como modelos de papéis ou reforçar o comportamento de doença (Ferreira, 2014; Schulte & Petermann, 2011). Alguns fatores familiares já são conhecidos como contribuintes para o surgimento de sintomas somáticos na criança, conforme Pinto e Duarte (2008) que ressaltaram como eventos de alta ocorrência nesses quadros, a presença de problemas de saúde e psicológicos na família, ansiedade para experimentar sintomas físicos, perda de pessoas importantes e uso de álcool e drogas por parentes, entre outros.
Dessa forma, o infante de ir aprendendo a lidar com suas emoções e frustrações através de expressões sadias, como a palavra e o brincar num processo de simbolização. Sendo essa, uma fase crucial para a intervenção nesses quadros, conforme estudo de Pihlakoski et al. (2006, citado por Gonçalves, 2016), que encontrou que sintomas somáticos em crianças podem estar associados ao aumento de problemas de externalização e internalização durante a adolescência, o que desvela a potencialidade da atenção prestada para a infância como forma de prevenir agravos ao longo do desenvolvimento.
Desse modo, faz-se importante destacar a relevância dos profissionais de saúde, que são muitas vezes, procurados pelas famílias para tratar a sintomatologia dessas crianças que após exaustivos exames clínicos, não apresentam achados orgânicos, e atuam focados unicamente em sintomas e ignoram o aspecto emocional dessas crianças (Mello Filho, 2010). E essa situação ainda é mais agravante quando se trata de internações hospitalares, que além do acometimento, a criança, mesmo que com um acompanhante, será privada do convívio familiar, do ambiente doméstico, exposto a infecções, e distante da vivência da escola e dos amigos. Esse contexto acarreta graves consequências para o seu emocional e psicológico.
É nesse contexto da infância, que podemos abordar a pediatria, como ramo de atuação da medicina que trata a saúde e os cuidados médicos desde o nascimento das crianças até o fim da adolescência. Muitas vezes, é o pediatra, mais do que o psicólogo ou psiquiatra que primeiro se defronta com o somático na infância e por isso, deve ser capacitado para lidar com esse fenômeno que possui as suas próprias peculiaridades e se apresenta como uma desordem distinta em relação ao adulto.
Entretanto, como esperar que os profissionais estejam capacitados para lidar com tal fenômeno, tendo em vista que a formação profissional em saúde no Brasil é historicamente marcada pela fragmentação do conhecimento, a visão hospitalocêntrica/biologicista, a utilização de modelos tradicionais de ensino que priorizam a superespecialização e a sofisticação dos procedimentos (Gonzalez, 2010). O conhecido relatório Flexner, de 1910, se relaciona com esse modelo, e até hoje influencia o ensino e a prática da medicina e, por extensão, de outras áreas de saúde. Entre diversos aspectos, o paradigma flexneriano envolve o enfoque na doença, conhecimento médico fragmentado em disciplinas, vinculação das escolas médicas à universidade, hospital como espaço de cura e de ensino e mercado de trabalho referido apenas ao consultório (Lampert, 2002, citado por Araújo, 2014).
Contudo, desde a segunda metade do século XX, ações vêm sendo empregadas buscando repensar a conduta médica hegemônica, a partir de diferentes perspectivas, destacando-se, entre elas, as de Jaspers, Balint e Perestrello (Alves & Lima, 2017). Pelos quais, as propostas se centralizam na revisão do olhar lançado para o sujeito que busca ajuda e assim, refletir possibilidades para seu cuidado. Trata-se de uma tentativa de humanização da medicina e da relação existente entre médico e paciente, sensibilizando o profissional para o sofrimento deste.
Essa relação, assim como as teias relacionais do médico com suas atividades de ensino e práticas de saúde, com seus pacientes e familiares, são temas da Psicossomática, e dessa forma são conteúdos de interesse que foram englobados no processo formativo pelo o que ficou designado como Psicologia Médica, que é consideravelmente nova na formação em medicina, e se propõe a estudar os aspectos psicológicos que perpassam desde as vivências enquanto acadêmico de medicina, ao médico formado e as suas relações com seus pacientes e familiares e as demais relações institucionais (Mello Filho, 2010). A psicologia médica é a psicologia da prática médica. E assim, das relações humanas nesse contexto, devendo alicerçar-se na compreensão global do homem em uma perspectiva biopsicossocial.
Se as interrelações entre médico e paciente são essenciais para a compreensão e prognóstico das enfermidades, o mesmo equivale para a enfermagem, que é uma ciência baseada em um conjunto de atividades que visam prestar assistência às necessidades de cuidado do ser humano (Horta, 1979, citado por Oliveira 2016). O enfermeiro se encontra nos cuidados diretos e constantes ao sujeito e as suas intervenções são elaboradas não apenas para a doença, como para o indivíduo, atuando também com sintomas de doenças comportamentais mais do que físicas, com um enfoque holístico. Esse profissional é o elo e a figura central da interação entre o psicológico e o biológico, pois, com o acompanhamento sistemático e constantes ao paciente, o profissional é exposto às angústias desses mais que qualquer outro profissional da saúde (Silva & Macedo, 1993). E por isso, é imprescindível que o profissional de enfermagem esteja capacitado para utilizar de forma produtiva o tempo que passa junto ao leito, que não é apenas para administração pura e simples de medicamentos mas como oportunidade para estabelecer contatos interpessoais significativos conservando a sensibilidade em relação às ansiedades e angústias de seus pacientes.
Porém, pesquisas na área, como a de Alves e Lima (2017) e Assis et al. (2013), evidenciaram a falta de preparo vivida desde a graduação, assim como a insegurança sentida pelos profissionais ao se deparar com pacientes com queixas e indícios psicossomáticos. Conforme afirma Alves e Lima (2017), diante da percepção de um componente emocional na doença, os médicos se veem mobilizados de diversos modos, surgindo também um grande receio em se descartar uma doença orgânica não conhecida durante o diagnóstico em via de um adoecimento de ordem emocional.
Essa insegurança seria fruto de uma formação médica incompleta, e devido à essa falta de preparo durante a formação acadêmica, os médicos acabam não explorando os aspectos psicológicos de seus pacientes. (Grosseman & Stoll, 2008; Zorzanelli, 2011). Diante do que foi exposto, o presente estudo tem o objetivo de caracterizar a percepção de residentes médicos e enfermeiros de uma equipe multiprofissional sobre o fenômeno da somatização, a formação acerca da temática e os cuidados em saúde ofertados ao paciente infantil que manifesta um quadro dessa natureza.
Participantes
A pesquisa possui cunho qualitativo através de estudo descritivo e exploratório sobre a percepção dos profissionais residentes das áreas de medicina e enfermagem do programa de Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente de um hospital-escola de alta complexidade, percorrendo o seguinte caminho: a formação e o contato com o fenômeno somático; a compreensão da somatização e a sua apresentação na infância, e a sua atuação profissional em equipe multiprofissional.
A partir da técnica de amostragem por saturação, participaram do estudo um total de oito colaboradores, com idade entre 23 e 31 anos, predominantemente do sexo feminino. No que tange ao tempo de formação, os entrevistados tinham de 1 a 4 anos de formados. Os demais dados de caracterização do grupo de participantes podem ser observados na Quadro 1.
Optou-se pela escolha desses profissionais específicos, pois são esses que acompanham integralmente a criança durante o período de internação, estando em relação direta com o paciente, suas famílias e a manifestação somática.
Material
Para acesso às percepções e conceitos dos entrevistados acerca de suas vivências relacionadas à somatização, foi utilizada uma entrevista semiestruturada com os mesmos de autoria da própria pesquisadora, que possuíam como fio condutor, questionamentos acerca de algum contato com alguma disciplina ou projeto relacionado ao ensino acerca de somatização durante a graduação, o que entende sobre o fenômeno e se teve algum contato com esse na prática em Pediatria e como foi relacionando aos aspectos do diagnóstico, atendimento à criança e relação com a família. Além disso, fez-se uso do recurso de gravação para a obtenção de todo o material transcrito para posterior análise.
Procedimento
Participaram da pesquisa, os residentes que estavam atuando na enfermaria pediátrica da instituição nos meses de coleta de dados da pesquisa (setembro de 2018 a novembro de 2018) e concordaram em colaborar com o estudo mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e posteriormente, foram homogeneizadas e submetidas ao software "Interface de R pour lês Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires"- IRAMUTEQ.
Os dados colhidos foram analisados a partir de análise estatística descritiva (lexicometria), procedimento que apresenta a quantidade de evocações por meio da análise da ocorrência dos vocábulos, bem como, análises de especificidades e de similitude, que analisa a coocorrência entre os vocábulos, o que evidencia as conexões existentes entre as palavras na evocação e discurso do respondente.
A pesquisa seguiu as determinações da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e as questões éticas foram observadas em todos os momentos do estudo, sendo mantido o sigilo e o anonimato dos participantes, aprovado pelo Comitê de Ética, a partir do número de parecer 2.867.559, CAAE: 90475618.3.0000.5292
Resultados
A somatização é um fenômeno complexo que não pode ser considerada apenas como uma doença que uma criança tem. Segundo Lipowski (1987), a somatização é o problema não resolvido da medicina de mesmo modo que é um grave problema de saúde pública e um desafio para os profissionais da área que penam para lidar com o paciente que foge do modelo biomédico no qual são treinados. O quadro 2 mostra as palavras mais evocadas pelos residentes participantes e a Figura 1 apresenta a coocorrência entre as palavras evocadas.
Atuação Em Equipe Multiprofissional
A palavra proeminente nos discursos, de acordo com o Quadro 2, foi equipe, e se apresentando de forma concomitante com a segunda palavra mais mencionada, criança, que segundo a Figura 1 aparecem referidas em 10 evocações, simultaneamente, o que denota a indispensabilidade de um trabalho de equipe multiprofissional para lidar com o público pediátrico, destacadamente em quadros de somatização que desafiam as práticas convencionais e que apenas a atuação individual não será capaz de dar conta, conforme os seguintes recortes:
Tem que ter uma equipe realmente multiprofissional, em que todo mundo esteja integrado, não só a psicologia separado, não só o médico separado, não só o farmacêutico separado mas todo mundo falar a mesma língua, ter uma comunicação entre si para prestar um cuidado melhor para o paciente (R3, feminino, 26 anos, enfermeira)
Primeiro na constituição da equipe tem que ser uma equipe multidisciplinar, porque eu acho que mesmo que tenha uma cadeira na graduação de medicina ou de enfermagem que fale sobre isso, é diferente de um psicólogo (...) então tem que ter esse apoio primeiro na equipe multidisciplinar. (R7, feminino, 31 anos, médica)
Papel do Psicólogo
Os trechos remetem a necessidade do profissional de ter o amparo de um trabalho em equipe para lidar com o caso, articulando as diferentes profissões para a integração de conhecimentos visando ultrapassar ações fragmentadas para assim, vislumbrar a integralidade do paciente. Evidencia-se também a relevância do profissional da psicologia, que foi citado 15 vezes no discurso, para intervir nesses quadros tanto com a criança em si, como também para auxiliar a equipe nos processos de diagnóstico e manejo.
A gente tem muito o apoio da Psicologia aqui para ajudar, acho que fica mais tranquilo porque a equipe faz esse diálogo, geralmente com o residente da Psicologia para chegar no diagnóstico, agora eu sozinha nunca cheguei nesse diagnóstico não, foi mais com ajuda dos residentes da Psicologia (R7, feminino, 31 anos, médica)
Tava discutindo um caso mês passado, e a equipe percebeu que ele tinha necessidade de um acompanhamento, então nós fomos pessoalmente falar com a psicóloga, porque ele realmente precisava (...) não é só o psicólogo que é responsável por tratar essa criança, por cuidar, e a gente tenta pedir ajuda sempre que não é possível só a gente ajudar. (R2, feminino, 23 anos, enfermeira).
Coisa
Além disso, chama a atenção o terceiro vocábulo mais referido, coisa. que pode expressar a estranheza que circunda a compreensão do que é a somatização. O termo seria a forma de categorizar o inominável para alguns colaboradores seja a definição do fenômeno, a produção de sintoma ou os contextos e eventos psicossociais da vida do paciente, como em:
(somatização) É uma doença que não tem muitas vezes um caráter orgânico ali mas que tem a parte da mente influenciando no orgânico, você não tem muitas vezes uma explicação do porquê que aquilo está acontecendo pela fisiologia mesmo, pela parte orgânica do paciente mas tem a parte da mente que domina ele e às vezes até apresentar o sintoma ou alguma coisa que apresenta de uma forma clínica para gente. (R8, feminino, 28 anos, médica).
É a pessoa tipo acumular certas coisas, sentimentos e que isso pode ser demonstrado em alguma coisa ou afetar em algum sentido. As crianças que tem por exemplo, algum problema familiar, alguma coisa que passa, um trauma e que elas guardam isso e isso pode ser manifestado em alguma coisa depois (R2, feminino, 23 anos, enfermagem).
Os trechos acima corroboram com Martins (2017) que afirma que o conceito de somatização permanece um fenômeno complexo e mal compreendido, o que poderá ser parcialmente devido à relação intrincada entre o mal-estar psicológico e o mal-estar somático. E o sistema de cuidados de saúde orientado por um modelo biomédico, com um foco direcionado para a doença somática, e uma gestão da sintomatologia através de investigações biomédicas, pode representar um potente reforçador da somatização.
Processo Formativo
Outro achado intrigante está relacionado com o processo formativo dos participantes e a vivência da Residência, que quando questionados se já havia se deparado com algum caso de somatização na prática em atenção à saúde da criança, todos relataram ter esse primeiro contato somente durante a residência, conforme:
Foi impactante para mim ver tantos casos de crianças com esse tipo de situação, a gente às vezes acha que é só na população de adultos que a gente vai encontrar muito disso (...) antes da residência eu não tinha essa noção, a gente como profissional antes de entrar na residência não tem muito esse preparo (R5, feminino, 25 anos, médica)
Aqui na residência eu vi que às vezes tem mais paciente assim do que a gente imagina que exista, principalmente na pediatria. Porque a gente acha às vezes a criança não tem tanto isso, mas tem, aparece muito (R8, feminino, 28 anos, médica)
Essas falas revelam a presença cada vez maior de quadros somáticos na população infantil, pois ao se tratar da infância, a somatização torna-se um importante meio de comunicação, uma vez que a criança não adquiriu a capacidade total de comunicação verbal (Baseggio, 2012), existe uma falha, uma lacuna primária de aprendizado que não é preenchida durante a graduação dos discentes da área da saúde.
De acordo com Maia (2014) os currículos surgem no Brasil, com a proposta cartesiana de individualidade do conhecimento e fragmentação dos conteúdos, interferindo na formação dos futuros profissionais de saúde. Demonstra desvinculação da realidade e não associação dos conteúdos para compreender a totalidade do indivíduo. E para Kloh (2014) a formação profissional deve ser voltada para uma atuação que priorize o cuidado integral, humanizado, multiprofissional e que atenda às necessidades da população e do SUS, fugindo da visão curativista e prescritiva pré-estabelecida. Alguns dos colaboradores também apontaram as suas dificuldades no processo de formação e de atuação perante o modelo hegemônico:
Em relação a minha formação, até o contato com a própria pediatria, com a saúde da criança foi muito pouco, muito falho. Então acredito que na verdade esses aspectos da psicologia foram muito pouco abordados na graduação. Então, acredito que desde a grade curricular dos cursos de graduação, eles devem ser abordados, eu falo pela enfermagem, que o nosso curso não dá nenhuma base significativa para isso (R1, feminino, 25 anos, enfermagem)
Que eu lembre, uma disciplina específica não. Mas tinha Psicologia Médica e Psiquiatria foram duas disciplinas que a gente pagou que abordavam queixas, psicopatologia de forma abrangente, mas somatização em si não. (R5, feminino, 25 anos, medicina)
Processo Diagnóstico
Ademais, outra aspecto muito relevante relacionado à somatização e que se tornou presente nos relatos foi referente a realização do diagnóstico, que segundo a literatura, trata-se de um processo difícil e intrincado de investigações extensivas e procedimentos invasivos com resultados negativos e também de receio por parte do profissional ao se desconsiderar uma doença orgânica não conhecida, tomando-a por uma doença de ordem emocional (Alves, 2017), que além do medo de estabelecer essa espécie de diagnóstico, ainda enfrenta mais obstáculos no momento de comunicá-lo ao paciente e sua família, como foi apresentado:
Para estabelecer o tipo de diagnóstico é um processo bem difícil, bem complicado porque muitas vezes tem até casos que a gente acha que possa ser, mas acaba não sendo. Então é um processo bem difícil que a gente tem que observar todo o contexto social, trabalhar junto com a mãe para saber se realmente essas questões, esses sintomas são realmente somáticos ou não (R1, feminino, 25 anos, enfermagem)
É muito difícil porque a família fica sedenta por uma justificativa e muitas vezes você dizer simplesmente que é uma doença psíquica, claro que isso tem que ser muito bem explicado, gera uma desconfiança na família, então é sempre um diagnóstico muito difícil. E às vezes a família pensa que a gente não tá fazendo nada pelo paciente, pede exames e mesmo depois de tantos exames não encontra causa, quando a gente acredita que é uma causa somática é difícil dar esse diagnóstico devido a reação da família (R4, masculino, 28 anos, médico)
Quando a gente chega o diagnóstico de ser psicossomático é como se a família não entendesse, como se aquilo não fosse nada, dissesse que está inventando, então é mentira da criança, como se não tivesse nenhuma gravidade (R6, feminino, 25 anos, médica)
Relação e Assistência ao somático na Infância
Por fim, o último aspecto abordado na pesquisa, diz respeito a como a equipe de saúde deve atuar com o paciente que apresenta um quadro de somatização. E além da necessidade do trabalho da equipe multiprofissional como já foi citado, os participantes também manifestaram sobre as relações que devem ser estabelecidas não só com o paciente como com seus familiares que são pessoas essenciais nesse contexto.
Não deve haver diferença de assistência entre um paciente e outro. Muitas vezes a equipe até fala: “paciente chato, fica falando isso, está com dor, sabe que é mentira”, mas a gente tem que respeitar porque a gente não sabe o que está por trás daquilo (R1, feminino, 25 anos, enfermagem)
Eu acho que tem que excluir as causas orgânicas e estruturais e tratar, tentar minimizar o sofrimento da criança (...) A criança não sabe o que ela está sentindo então a gente tem que mostrar compreensão, mostrar que entende a criança e vai tentar ajudar, se mostrar solícito para a criança e para a família, falar claramente para os pais qual é a hipótese depois de tudo que foi estudado e investigado, chegou-se à conclusão de que provavelmente é um quadro de origem psicológica mas que a equipe está ali para o que for necessário, acho que mostrar mesmo que está presente e não negligenciar a queixa só porque é de origem psicológica (R5, feminino, 25 anos, médica)
A somatização portanto, é muitas vezes uma fonte de sofrimento para o doente, mas que também possui um impacto negativo e interfere diretamente nas suas interações familiares e sociais. Do mesmo modo, pode se constituir como uma fonte de frustração para os profissionais da saúde (Quartilho, 2016) que são confrontados com as dificuldades associadas à compreensão integral e alívio eficaz dos sintomas do seu paciente, um processo intricado que demanda esforços conjuntos de toda a equipe multiprofissional.
Discussão
Os colaboradores da pesquisa não possuem uma compreensão clara do fenômeno somático e se percebem despreparados para lidar com quadros somáticos em seus pacientes, destacadamente na população infantil. Para a maioria dos participantes, foi uma experiência nova e surpreendente se defrontar com tantos casos dessa natureza durante a residência em atenção à saúde da criança. Além disso, todos os participantes evidenciaram as falhas e lacunas em seu processo formativo, destacadamente a graduação, que não forneceu subsídios teóricos e/ou práticos para manejar esse tipo de demanda.
E dessa forma, o já profissional ainda sofre dificuldades ao se defrontar com a realidade da atuação prática e principalmente com esse fenômeno, que se faz cada vez mais presentes nos serviços de saúde. Sendo a Residência em Saúde, uma excelente oportunidade de desenvolvimento para os profissionais da área da Saúde de complementar a sua formação profissional estando em contato direto com a realidade do contexto de saúde brasileiro e com os seus pacientes.
Diante disso, foi observado nesse estudo a necessidade de se problematizar os processos formativos dos profissionais que atuam na área da saúde no Brasil para além de uma formação técnica com foco na doença e sua cura, mas para uma formação mais humana, ética e integrada que englobe os aspectos psicológicos e somáticos de seus pacientes e vise a integralidade do sujeito.
Evidencia-se a necessidade de desenvolvimento de mais pesquisas na área e que englobem outras categorias profissionais, para além dos médicos e enfermeiros, que compõem os serviços de saúde e também se defrontam com o somático, como psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos, entre outros. Fomentando, assim, produções científicas que promovam uma maior compreensão da temática, mas que principalmente, também forneçam os devidos subsídios para uma atuação em equipe bem articulada e que possibilite prestar a melhor assistência ao paciente. Além disso, fazem-se necessários mais estudos direcionados para a apresentação do fenômeno na infância e adolescência, tendo em vista que as poucas publicações existentes são em sua maioria voltada para o público adulto.
Desse modo, visa-se ter contribuído para o aperfeiçoamento dos profissionais de saúde e para a atuação em equipe multiprofissional. A partir das dificuldades e lacunas encontradas no processo formativo e dos desafios vivenciados para manejar o paciente pediátrico com sintomas somáticos, como próximo passo, almeja-se propor mudanças, a priori na grade curricular e formação da Residência, tanto médica quanto multiprofissional, por esse ser um período de especialização, para abarcar aspectos psicológicos e somáticos do processo saúde-doença, tendo em vista que são fenômenos cada vez mais presentes nas instituições hospitalares. Para que assim, seja possível prestar uma assistência mais humanizada e eficiente para o tratamento e minimização do sofrimento desses pacientes, que usualmente vivenciam grande angústia nos serviços de saúde que, em sua maioria, não estão capacitados para lidar adequadamente com o fenômeno de somatização.