A crise ecológica é um dos maiores desafios que a humanidade enfrenta neste século.
As alterações climáticas e a degradação dos ecossistemas constituem ameaças reais para o futuro da vida no planeta1. Contudo, ainda que a segurança global e a sobrevivência sejam temas-chave no estudo académico das relações internacionais, as questões ambientais permaneceram, durante as últimas décadas, à margem da disciplina2. Esta realidade parece estar a mudar com a publicação de um número crescente de trabalhos que procuram repensar a disciplina e a prática da política mundial sob a lente da ecologia3, apelando a uma transformação política para responder à crise4, e que desafiam a tradicional abordagem institucionalista dominante na literatura, centrada na análise da cooperação intergovernamental e na eficácia das instituições internacionais ambientais, como os regimes do clima e da biodiversidade da Organização das Nações Unidas (Nações Unidas).
A literatura crítica e interdisciplinar em emergência na área reconhece que a existência humana transcende agora o internacional ou mesmo o global, sendo também planetária. Tal é evidenciado pela subversão antropogénica dos processos fundamentais do planeta. As ações humanas e a globalização das questões económicas, sociais e políticas não afetam apenas o mundo social; elas modificam a estrutura natural e física que regula o funcionamento do sistema terrestre5. Por outras palavras, a ideia de um sistema terrestre crescentemente instável e profundamente alterado pela atividade humana - consubstanciada no conceito de antropoceno, uma nova proposta de época geológica6 - revela a existência de um complexo sistema socioecológico planetário e evidencia a necessidade de transformar o modo como pensamos e nos relacionamos com os outros e com o planeta. Estamos perante desafios (socio)ecológicos sem precedentes, que abrem portas para conceções alternativas de ontologia, ética e política. Para as relações internacionais em particular, esta realidade implica adotar uma perspetiva «pós-antropocêntrica» da política mundial, que abrace a sua interligação inerente com o sistema terrestre; isto é, um quadro teórico, conceptual e analítico capaz de incorporar o papel permanente que a natureza desempenha no mundo social e vice-versa, integrando as relações entre a humanidade, o planeta e as espécies não humanas que o habitam em todas as análises da política mundial7.
É neste quadro que o presente dossiê se insere, sendo formado por cinco ensaios que abordam criticamente o desafio da crise ecológica planetária, contribuindo para a construção de uma perspetiva pós-antropocêntrica da política mundial e abrindo caminhos para investigação futura. Os autores exploram temas como a justiça climática e multiespécies e a transição ecológica e energética em particular. Carlota Houart inicia o dossiê com um ensaio no qual tece uma crítica ao antropocentrismo e ao estatocentrismo que caracterizam a política mundial e o seu estudo (ou as sociedades humanas modernas, de forma mais ampla), e que impossibilitam uma abordagem holística da crise ecológica. Em particular, a autora argumenta que a inclusão de uma perspetiva de justiça multiespécies na análise e tomada de decisão política é fundamental para pro- mover a sustentabilidade global. Esta perspetiva, alicerçada em princípios e cosmovisões de povos indígenas e outros para lá do Ocidente, reconhece as complexas relações entre humanos, animais, plantas, ecossistemas e elementos como a água, bem como a dependência humana em relação à natureza e a subjetividade e agência de múltiplos seres e formas de vida. Para ilustrar a justiça multiespécies, Houart recorre ao caso dos rios e a algumas iniciativas destinadas à proteção destes ecossistemas, inspiradas no paradigma contra-hegemónico dos direitos da natureza. A autora conclui o ensaio com uma breve reflexão sobre possíveis caminhos para a reinvenção multiespécies das relações internacionais, entre eles a democracia ecológica (cosmopolita)8 e a diplomacia interespécies9, bem como a criação de redes colaborativas de produção de conhecimento que envolvam as ciências naturais, sociais e humanas e os saberes tradicionais indígenas e de outras comunidades locais10.
Segue-se o ensaio de Mariana Riquito, em que a autora analisa criticamente a narrativa predominante sobre a crise climática e os esforços em curso para a transição energética, nomeadamente o «novo extrativismo» ou «extrativismo verde», de que é exemplo a corrida à exploração de lítio na região montanhosa do Barroso, situada no distrito de Vila Real, em Portugal11. Tal como Houart, Riquito rejeita a ontologia dualista moderna que separa a sociedade e a natureza. Para além disso, salienta a dicotomia entre clima e ecologia presente nos principais discursos académicos e políticos. O entendimento do não humano como simples matéria-prima a ser explorada, assim como o foco quase exclusivo na redução de emissões de carbono, legitimam práticas social e ecologicamente destrutivas e reduzem as respostas e políticas públicas às alterações climáticas ao objetivo da acumulação de capital, muitas vezes através de soluções tecnológicas, suprimindo possibilidades de diálogo acerca de alternativas12. A autora apela assim a uma «transformação ontológica». Tal implica o reconhecimento da coexistência de mundos e realidades plurais e em inter-relação, humanos e não humanos - o pluriverso13. Inspirada na literatura ecofeminista, Riquito fala-nos numa ética de cuidado para com todos os seres da Terra e incita-nos a pensar as montanhas do Barroso como entidades vivas e guardiãs da vida e, assim, a repensar os princípios e valores que dão forma à transição «verde».
O tema da transição energética é também o foco do ensaio de Vera Ferreira. Mais especificamente, a autora aborda a democracia energética, um conceito que abrange o controlo democrático sobre a indústria da energia, a redistribuição do poder político e económico, o reconhecimento do direito universal às energias renováveis e a promoção da justiça social e ambiental por oposição ao «capitalismo verde», e que, argumenta Ferreira, fornece uma perspetiva única tanto para analisar de maneira crítica as implicações políticas, socioeconómicas e ambientais das mudanças no sector energético, como para imaginar futuros alternativos. No seu artigo, encontra-se um conjunto de critérios para a identificação e análise de ferramentas de democratização energética no cenário nacional. Portugal assumiu o compromisso de se tornar uma economia neutra em carbono até 2050, sendo, pois, fundamental assegurar que o custo da transição energética não seja injustamente suportado pelos grupos mais vulneráveis. Ferreira aponta igualmente linhas de investigação futura relevantes para as áreas da política comparada e das relações internacionais, tais como a análise da aplicação e desenvolvimento da democracia energética no contexto da União Europeia, procurando entender as semelhanças e diferenças entre os Estados-Membros, e o estudo da evolução internacional da democracia energética, abordando os desafios na formação de um movimento global, questionando o seu euro- centrismo e avaliando a sua aplicação em regiões do Sul Global14.
O dossiê prossegue com o ensaio de Lorenzo Feltrin e Emanuele Leonardi acerca do ambientalismo da classe trabalhadora, em particular da convergência entre a luta pelos direitos dos trabalhadores e a justiça climática rumo a uma transição ecológica que parta do local. Os autores criticam as políticas públicas de mitigação das alterações climáticas orientadas ao crescimento económico, em detrimento do bem-estar social. Feltrin e Leonardi relembram que a classe trabalhadora desempenhou um papel fundamental na politização das questões ambientais, especialmente durante as décadas de 1960 e 1970, por ocasião das lutas contra a poluição industrial, e argumentam que a transição ecológica só será eficaz se considerar as preocupações dos trabalhadores (industriais, informais, desempregados) e das comunidades em que estes se inserem. Os autores destacam o exemplo da luta dos operários da fábrica automóvel GKN, em Florença, Itália, que se uniram a movimentos de justiça climática para exigir uma transição ecológica mais justa e democrática, propondo a criação de uma cooperativa de trabalhadores para produzir e distribuir componentes para veículos elétricos como uma alternativa sustentável à produção de peças destinadas a carros de luxo. O estudo deste e de outros casos de associação entre a classe trabalhadora e o movimento ambientalista poderá ajudar-nos a compreender como e em que condições os trabalhadores estão dispostos a organizar-se em prol da transição ecológica15.
Thais Lemos Ribeiro e Verônica Korber Gonçalves encerram o dossiê com um ensaio dedicado à negociação de créditos de carbono com o povo indígena munduruku no âmbito da aplicação do mecanismo de redução das emissões por perda e degradação das florestas (REDD+), uma iniciativa internacional negociada sob o regime do clima das Nações Unidas. As autoras investigam como este mecanismo interage com considerações de governança local e de justiça, explorando cinco perspetivas analíticas-chave fornecidas pelo Projeto Earth System Governance (uma rede de investigação dedicada ao avanço do conhecimento na interface entre a mudança ambiental global e a governança), nomeadamente «arquitetura e agência», «democracia e poder», «justiça e alocação», «antecipação e imaginação» e «adaptação e reflexão». O estudo de caso acerca dos munduruku revela a complexa interação entre a governança global do clima, os direitos indígenas e a justiça ambiental, ilustrando a necessidade de um quadro REDD+ mais inclusivo, justo e transparente, que considere as diversas visões do mundo e os interesses de todas as partes envolvidas. Ribeiro e Gonçalves contribuem assim para a nossa compreensão das intrincadas relações entre a governança global do clima e os atores no terreno, enfatizando a importância de explorar espaços onde diferentes cosmovisões se encontram, bem como de reconhecer e respeitar, em iniciativas ambientais e outras, os direitos e conhecimentos das comunidades locais16.
Pela sua natureza crítica, os contributos que integram o presente dossiê incitam-nos a pensar (e a investigar) a crise que o planeta enfrenta e a transição ecológica para lá dos limites do paradigma convencional que molda a política mundial. Em especial, desafiam-nos a olhar a crise e as suas possíveis soluções com imaginação e criatividade, sob o ponto de vista dos mais vulneráveis, daqueles que permanecem invisíveis (o não humano, as populações indígenas e outras comunidades locais, a classe trabalhadora, entre outros), rumo à construção de um mundo verdadeiramente mais justo e sustentável para todos os seres - humanos e não humanos - que o habitam. Esta é uma das formas possíveis (e mais desejáveis) de construir a tão necessária perspetiva pós-antropocêntrica das relações internacionais contemporâneas e futuras.
Na época da crise ecológica planetária, mudar é imperativo. Todavia, a mudança necessária jamais se concretizará se não nos permitirmos encontrar e explorar outras perspetivas e possibilidades, ou os vários mundos que coexistem no planeta.